quarta-feira, 6 de abril de 2011

OS MONSTROS DO NOSSO TEMPO

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MÁRIO SOARES, opinião – DIÁRIO DE NOTÍCIAS – 05 abril 2011

1. A União Europeia vive um dos momentos mais difíceis da sua história, desde que foi criada pelo célebre Tratado de Roma, em 1957. A economia especulativa, engendrada pelo neoliberalismo, comanda em absoluto a política, através desses monstros sagrados que são os sacrossantos mercados.

São eles que, impunemente, obrigam os Estados a ajoelhar-se, sempre que necessário, em função dos interesses do momento, mediante a vontade dos multimilionários que os controlam, com a ajuda dessa invenção diabólica: as chamadas agências de rating, que classificam os Estados e os bancos nacionais, sem qualquer objectividade, em virtude dos interesses (que variam) dos senhores dos mercados. Mas nunca falam dos escândalos dos paraísos fiscais nem dos negócios multimilionários da chamada economia virtual...

Tudo isso, e a dependência intolerável da política, em relação à economia - e não, ao contrário, como sempre sucedeu, até à vitória do neoliberalismo -, bem como o conúbio entre certos políticos e o negocismo, e a perda dos valores éticos, conduziu-nos à crise global, que paralisa a União Europeia que está a levar-nos à decadência e, porventura, à desintegração.

Trata-se de uma situação que aflige todos os Estados-membros da União Europeia, uns mais e outros menos, como é natural, sobretudo os da Zona Euro - mas não só, tenha-se em conta a dramática situação do Reino Unido - e das respectivas populações, que cada vez menos se revêem nos seus líderes...

Como sair, então, desta tão grave crise, global e múltipla? Falo agora do Ocidente e, em especial, da União Europeia, à qual Portugal pertence e deve continuar a pertencer. Respondo: só vejo um caminho, dado o colapso evidente da ideologia neoliberal: mudar o modelo de desenvolvimento económico - como disse o Presidente Obama, no discurso que proferiu na cerimónia de posse e que ainda não conseguiu concretizar -, criando um novo paradigma. Curiosamente, como demonstra a rapidez do tempo actual, em escassos vinte anos assistimos ao fracasso de duas ideologias contrárias, que marcaram o século xx: o comunismo e o neoliberalismo.

Estamos agora a viver uma nova revolução, que espero seja pacífica, até ao fim: criar um novo paradigma, que reestabeleça o primado da política, com valores éticos estritos, sobre a economia, que controle e regularize os mercados, acabando com os paraísos fiscais, as economias virtuais, as agências de rating e todas as malfeitorias do género, punindo os responsáveis sem escrúpulos, políticos e económicos, que nos conduziram à crise em que nos encontramos. Continuam a existir, infelizmente, no interior dos Estados-membros da União Europeia, vários Madoffs à solta... O que é uma vergonha e um péssimo sintoma, que urge acabar.

O aprofundamento das nossas democracias é urgente. Devem ser mais liberais, no sentido político, mas não económico (esse foi um dos equívocos lançados pelo neoliberalismo), mas também sociais, porque nelas reside um dos principais valores da identidade europeia.

Ora a União Europeia é hoje governada por líderes políticos que são, na sua esmagadora maioria, ultraconservadores. Os governantes socialistas e os verdadeiros democratas-cristãos escasseiam. É, a meu ver, o que explica que os líderes europeus que têm hoje assento nas cimeiras europeias não tenham tido coragem - nem a vontade política - para mudar de modelo económico. Porque uma tal mudança mexe, necessariamente, com demasiados interesses e poria em causa um certo conúbio malsão entre a política e os negócios, que tem a ver também com o financiamento dos partidos. É, tudo isso, que explica a paralisia das instituições europeias e dos Estados-membros da União.

Contudo, chegámos a um ponto que é claramente dilemático: ou se muda, e voltaremos a ser um farol de esperança e de progresso social, num mundo que é cada vez mais um só e que reclama uma nova ordem mundial; ou não mudamos, e a União Europeia entrará (como avisou o relatório dos sábios, presidido por Felipe Gonzalez) numa triste e irremediável decadência. Acrescida de graves e evidentes revoltas nacionais e também europeias, isto é, multinacionais, no quadro europeu.

Tenho esperança de que o bom senso colectivo prevaleça e que sejamos capazes, ainda, de salvar o projecto europeu e o euro, como moeda única.

2. Como tenho dito, escrito e repetido, a crise portuguesa é em grande parte europeia. É uma crise importada. Sem haver medidas claras e solidárias para salvar o euro - e para que a União Europeia mude de paradigma -, todos os Estados-membros da União e, portanto, Portugal, não nos livraremos da crise. Não tenhamos ilusões. É o que aconteceu com a Grécia e com a Irlanda, dois países europeus de grandes tradições históricas, que bem mereciam ter sido ajudados a tempo. Mas não foram, dado o egoísmo nacionalista da Alemanha - que arrastou a França, que parece sem rumo - e a intolerável apatia das instituições europeias, a começar pelo seu Presidente, pela Comissão, pelo Banco Central Europeu e até pelo Parlamento Europeu. Quando se fizer a história desta tão apagada fase política da União Europeia perceberemos melhor as responsabilidades e a tacanhez de vistas dos respectivos protagonistas.

Estamos agora a entrar numa nova fase. Os mercados dominantes tornaram-se, ao que nos dizem, nervosos (eufemismo que significa, cada vez mais, estarem ávidos de lucros) e atacaram em força outros Estados, o primeiro dos quais parece ser, infelizmente, Portugal. Não só o Estado - com quase nove séculos de história - mas também os privados: principalmente os bancos, as seguradoras e grandes empresas. E a procissão vai ainda no adro...

Mas não pensemos que a avidez dos mercados se fica por aí: outros Estados-membros da União se irão seguir, se as instituições europeias não acordarem para a realidade: a Bélgica, a nossa vizinha Espanha, a Itália, talvez a própria França e outros mais...

Portugal, o terceiro país vítima dos vorazes mercados, pôs-se a jeito, pela irresponsabilidade de se ter deixado cair numa crise política, que se sobrepôs à crise financeira e económica. E oxalá que, com o vazio de poder que resulta de um Governo demissionário, logo de mera gestão, para realizar eleições, com o azedume suplementar de uma campanha eleitoral, que não será provavelmente nada moderada - e para mais com o descontentamento que existe em grande maioria da população, pela sua situação e também contra as eleições, num momento tão difícil para todos - não nos faça cair ainda em revoltas sociais perigosas.

Não vou falar de quem são as culpas da nova situação criada, que a história avaliará, e são, provavelmente, partilhadas, a começar pelo senhor Presidente da República. Acho que o essencial, na crítica situação em que nos encontramos, é tentar prever o futuro e agir em conformidade, com bom senso, moderação e sentido patriótico de Estado. Devemos afastar o derrotismo e ignorar as carpideiras da desgraça, que nunca nos apresentaram alternativas.

Temos de conhecer, com grande transparência e rigor, toda a verdade da situação em que estamos. Para saber o terreno que pisamos e de que forma devemos proceder para sair da crise. Para isso, devemos ouvir especialistas isentos e os senadores - se os há - com provas dadas e que saibam pôr os interesses nacionais acima dos partidários. É preciso organizar debates serenos, donde saiam conclusões claras e concisas e evitar ao máximo as disputas partidárias sobre a quem pertencem as culpas. Comecemos pelo essencial: a crise que nos afecta e a sua dimensão europeia. Direi que teremos de fazer tudo para evitar a bancarrota e que a redução do deficit e do endividamento externo público e privado são importantes. Mas acima desses objectivos há outro: continuar a investir no nosso desenvolvimento, para diminuir rapidamente o desemprego, a precariedade do trabalho e as tremendas desigualdades sociais. Mas os partidos precisam de se entender, entre si, sejam quais forem os resultados eleitorais e escutarem as vozes dos cidadãos.

O Estado está demasiado flácido. É preciso racionalizá-lo, mantendo as conquistas sociais da democracia: as pensões sociais, a educação pública e o serviço nacional de saúde. É essencial acabar com as chamadas parcerias públicas e privadas, dignificando o serviço público e eliminando os boys, que entram no Estado por via dos partidos e não por concurso público. É preciso reformar urgentemente a justiça e despolitizá-la, no sentido dos magistrados judiciais e do Ministério Público, como órgãos de soberania que colectivamente são, não devem publicamente permitir-se intervir na política. A comunicação social tem de ser o mais possível isenta, no sentido deontológico do termo, deixando de estar escandalosamente ao serviço dos interesses que lhes pagam.

Há muitos outros sectores do Estado - e da sociedade civil - que devem e podem ser reestruturados e mesmo reformados. Agricultura, mar, indústria, novas tecnologias, etc.. Mas tudo isso não é para o momento especial que estamos a viver. O essencial é, quanto a mim, evitar a bancarrota e assegurar o de-senvolvimento (ou, dito por outra forma, evitar a recessão que se anuncia), para diminuir drasticamente o desemprego e as desigualdades sociais. Temos todos que o conseguir, com sentido de responsabilidade.

Quanto ao resto, virá a seguir. A nossa democracia está sólida, ainda que não seja perfeita. Os partidos - todos - têm de reflectir sobre as mudanças do mundo e reformular as suas estruturas e actualizar as suas ideias e comportamentos. Devem acabar com a crispação - que não conduz a lugar nenhum - e dialogar entre si, com respeito mútuo. Não podem ser um abrigo para as clientelas e para os interesses destas. Têm de se renovar profundamente. E a crise pode, paradoxalmente, constituir um bom momento para o fazer.

Tenhamos confiança em Portugal e no povo, a que nos orgulhamos de pertencer. Portugal tem uma história gloriosa e uma língua em expansão. Nações como Portugal não desaparecem nem nunca serão protectorados de nenhum país. O nosso povo é um grande povo, aliás, repartido por todos os continentes. Tenhamos, pois, esperança no futuro e saibamos construir, pelo diálogo interpartidário e com a sociedade civil, um futuro melhor, para todos. O povo soberano não nos perdoaria se não fôssemos capazes de o fazer.

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