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«Administração Interna e Administração territorial são pastas chave pelas quais passavam não só o controlo das forças de segurança mas também todos os movimentos de e para o interior do país.»
O fenómeno do narcotráfico na Guiné-Bissau e o estabelecimento das bases operacionais que levaram à criação do primeiro narco-estado africano teve o seu desenvolvimento entre 2006 e 2008. Na altura, a Guiné-Bissau, um dos países com menor índice de desenvolvimento do mundo, começou a conviver diariamente com voos nocturnos, estranhas movimentações militares em pistas de aterragem abandonadas no interior do país, e um cada vez maior número de viaturas topo de gama que faziam, elas próprias, a distinção entre o mundo do tráfico e o mundo do normal guineense.
As redes de narcotráfico inflitraram-se em todos os domínios da vida na Guiné-Bissau. Desde a classe militar à classe política, passando pelos empresários de ocasião e terminando naqueles que a troco de alguns dólares arriscavam transportar no interior do seu organismo alguns quilos de cocaína nos voos para a Europa. A disseminação da cocaína na Guiné-Bissau, pelo grau a que chegou, nunca poderia ter sido atingida sem que as mais altas figuras do Estado tivessem adoptado uma postura de “activa conivência”.
A influência de Baciro
Pedra basilar de todo o fenómeno do narcotráfico na Guiné-Bissau foi Baciro Dabó. Assassinado na madrugada de 5 de Junho de 2009 em mais uma alegada tentativa de Golpe de Estado a assolar a ex-colónia portuguesa, Baciro Dabó ocupou entre 2006 e 2008 as pastas de Secretário de Estado da Ordem Pública e posteriormente de Ministro da Administração Interna. Em final de 2008, e não obstante o avolumar de suspeitas internacionais de envolvimento no narcotráfico, Baciro foi nomeado Ministro da Administração Territorial.
Administração Interna e Administração territorial são pastas chave pelas quais passavam não só o controlo das forças de segurança mas também todos os movimentos no e para o interior do país. Baciro usou desta sua influência para assegurar condições ao estabelecimento dos narcotraficantes sul americanos, garantindo a segurança necessária para o prosseguimento das suas operações com destino à Europa. A Guiné-Bissau tornou-se assim, pela mão de Baciro, a plataforma africana de narcotráfico por excelência. O envolvimento de Baciro no narcotráfico nunca foi um segredo de Estado Guineense. O então Ministro não escondia de ninguém os seus gostos luxuosos e o culto da ostentação que o seu súbito enriquecimento lhe permitia exibir. Baciro era simultaneamente temido e invejado. À boca pequena, o facto era comentado por toda a Bissau.
Pela população em geral, que mantinha o silêncio receosa da sua aura de gangster urbano e dos seus intempestivos ataques de fúria, e pelas mais altas figuras da Nação guineense, muitas delas também beneficiárias directas ou indirectas dos negócios de Baciro.
A público chegaram apenas uma mão cheia de casos ligando Baciro ao narcotráfico. Muitos outros terão acontecido que nunca terão sido conhecidos. Isto porque Baciro usava a capa do combate ao narcotráfico, função que tinha a seu cargo como Ministro da Administração Interna, para a realização de operações de descarga com total segurança e discrição. Foi assim que largos quilos de cocaína apreendidos pelas forças de segurança guineenses sob o seu comando foram vendidos para seu proveito próprio. Para tal, Baciro simplesmente visitava diariamente traficantes locais no Bairro de Pilum, que tranquila e discretamente tratavam dos seus negócios e garantiam o escoamento da “mercadoria” no mercado internacional, nomeadamente na Europa. Com o consumo de cocaína em expansão na Europa, Baciro não perde oportunidades de conquistar esse mercado. Em 2006, desapareceram 150 embalagens de cocaína quando eram transportadas do Ministério do Interior para o Supremo Tribunal de Justiça, por forças à guarda de Baciro Dabó. Em Outubro do mesmo ano, no aeroporto de Bissau foram presos três nigerianos que transportavam cápsulas de cocaína. Quando Baciro entregou a cocaína em tribunal, tinha já trocado as originais por outras feitas por si. Não satisfeito, mais tarde, auxiliou mesmo à fuga dos três detidos.
O controlo das forças de segurança exercido por Baciro Dabó enquanto Ministro da Administração Interna permitiu também a colocação de elementos chave nos lugares certos, nomeadamente no Aeroporto de Bissau.
Tornaram-se comuns as chegadas de aviões não previstos que transportavam material “humanitário”, cargas que nunca passavam pelos serviços alfandegários por ordens do Ministro. A maioria dos elementos de segurança dos colaboravam com Baciro Dabó nas operações de narcotráfico continuam hoje a desempenhar as mesmas funções no aeroporto de Bissau.
Uma herança de Baciro para a cultura de impunidade que tomou conta do país. Uma das maiores apreensões de cocaína em solo guineense ocorreu em Abril de 2007, quando a Polícia Judiciária capturou 635 quilos de cocaína. Inicialmente descarregada em Cufar, no Sul do país, a cocaína em estado puro estava a ser transportada para Bissau por altas patentes militares, entre os quais o capitão Rui Na Flack, braço direito do então Chefe de Estado Maior Tagme Na Waie. Cinco dias depois da detenção inicial, Na Flack foi libertado, já depois de Baciro Dabó ter assumido a liderança de um grupo de polícias que tentou assaltar as instalações da PJ, alegando actuar em nome do Presidente “Nino” Vieira. Só a chegada de representantes das Nações Unidas permitiu adiar a concretização da “libertação”.
Ligações de alto nível
Mas a transformação da Guiné – Bissau em Narco-Estado não foi trabalho exclusivo de Baciro Dabó. Apesar do lugar central que desempenhou, Baciro teve a conivência e o apoio das principais figuras do Estado Guineense, desde políticos, militares a empresários e deputados, alguns deles ainda em funções. “Nino” Vieira, o ex- Presidente da República Guineense assassinado a 2 de Março de 2009, ocupou um lugar central em todo este processo.
A sua posição na hierarquia do Estado e o seu estatuto na sub-região africana permitiu-lhe o forjar de ligações com o falecido Lansana Conté, Presidente da vizinha Guiné-Conakry e com o filho deste, Ousmane Conté, actualmente detido no seu país por crimes relacionados com o tráfico de droga. Entre “Nino” e Conté existiram transferências de largas somas de dinheiro, transportadas em mão por familiares do Presidente da Guiné-Bissau, a coberto de viagens efectuadas com passaportes diplomáticos.
Em Bissau, Nino Vieira utilizava sobretudo as ligações de Baciro Dabó aos narcotraficantes sul-americanos, tendo como “testa de ferro” vários elementos familiares. Aresidência de um destes “sobrinhos” do Presidente no centro de
Bissau era mesmo conhecida na cidade como um ponto de encontro habitual entre os traficantes da cidade (sul-americanos e guineenses).
“Nino” e a sua estrutura familiar ocupavam mesmo o primeiro lugar entre os traficantes que mais cocaína escoavam para Portugal.
Outra das redes a operar em Bissau era a de Tagme Na Waie, ex- Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas guineenses, assassinado na mesma noite de “Nino” Vieira. A rede de Tagmé Na Waie tinha a particularidade de estar apoiada na acção dos Para-Comandos, a unidade militar com maior nível operacional do país.
Tagme controlava o narcotráfico com apoio “militar”, chegando mesmo a utilizar o edifício do Estado Maior em Bissau como armazém da droga entrada em Bissau. Terá também sido Tagmé quem conduziu Bubo Na Tchuto, então Chefe de Estado Maior da Armada, aos primeiros contactos com os narcotraficantes sulamericanos.
Depois de entrar no negócio, Bubo transformou os Fuzileiros na sua unidade militar privada, utilizando-a em regime de quase exclusividade para as operações de narcotráfico.
A particularidade das operações de Bubo Na Tchuto é que os carregamentos de cocaína vindos da América do Sul eram largados em alto mar (quer por via aérea, quer por via marítima), sendo depois recolhidos por botes da Marinha e posteriormente armazenadas em terra.
Bubo, que conduzia um veículo Hummer em Bissau (o Presidente “Nino” tinha também um Hummer, um “discreto” veículo amarelo que percorria diariamente as esburacadas estradas de Bissau) usou a sua posição na Marinha para estabelecer duas bases no arquipélago dos Bijagós, uma na ilha de Bubaque e outra em N’ghagu, a partir das quais era feita a distribuição para Conakry e para a pista de aterragem de Cufar, principal entreposto de chegada de droga na Guiné-Bissau.
O “annus horribilis” dos barões da droga
As elevadas quantias que o tráfico de droga permitia obter levaram a que os elementos das primeiras redes se tenham autonomizado, com óbvias implicações entre os diferentes actores.
Estas redes iniciais, que no início tinham elementos comuns e uma hierarquia que não era coincidente com a das estruturas das Forças Armadas ou do Estado, começaram a dispersar-se não se detendo em lealdades anteriores.
É assim que em Setembro de 2007 se verifica a ruptura entre Baciro Dabó e “Nino” Vieira. Se por um lado, Baciro começava a prejudicar as altas figuras do Estado no narcotráfico, não só por exigir para si um quinhão superior ao que era depois atribuído a essas mesmas altas figuras, por outro, a sua excessiva ostentação da riqueza começou a fazer soar os alarmes internacionais para a perigosa disseminação do fenómeno do narcotráfico no país. Com a classificação de Guiné-Bissau como Narco-Estado foi decidido internamente que era necessário uma maior discrição no tratamento destes negócios e o afastamento das figuras de Estado já “queimadas” pela Comunidade Internacional.
Pressionado, Baciro recusou a demissão e ameaçou mesmo “Nino” Vieira com revelações sobre as suas actividades ilícitas. O impasse manteve-se até 2009, “annus horribilis” dos grandes barões da droga guineenses.
As mortes de “Nino” Vieira, Tagme Na Waie e Baciro Dabó poderiam, à primeira vista, fazer crer que a decapitação das redes conduziria ao final do fenómeno do narcotráfico no país. Mas ainda hoje, muitos são os conotados com o narcotráfico que ocupam lugares de destaque na Guiné-Bissau.
Militares, políticos, empresários e um sem número de outros cidadãos comuns que beneficiando dos escassos meios à disposição dos órgãos de justiça locais continuam a desenvolver as suas actividades e as suas operações milionárias, fruto de uma cultura de impunidade que se entranhou na mentalidade do país.
Exemplo desta situação é o caso de um ex-Director Adjunto da Secreta guineense que, como forma de contrariar a vigilância que as autoridades guineenses estariam a colocar aos locais de aterragem abandonados no interior do país, resolveu, ele próprio, construir uma pista de aterragem para aviões bimotores numa propriedade que possuía no Sul do país. Primeiro as máquinas, depois os voos nocturnos, por fim as caravanas de viaturas a alta velocidade que partiam para Bissau durante as horas mortas da madrugada. Apesar de todos estes indícios, não existem registos de que até hoje este alto responsável do Estado tenha sido questionado pela Justiça Guineense.
CONFIDENTIAL NEWSLETTER, Junho 2010
2 comentários:
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