segunda-feira, 18 de abril de 2011

Capalanga - Um micro caso sobre a mesa para discutir a paz social

 
 
MARTINHO JÚNIOR

Há a tendência de alguns a partir do calar das armas, para fazer a apologia do estado angolano na sua azáfama de construção, sob o lema de “Angola é um canteiro de obras”.

Não levam em conta que o capitalismo, em que o lucro é um factor essencial da sua natureza, a que se pode acrescentar a “abertura” neo liberal e a especulação, é causa de desequilíbrios e desigualdades de toda a ordem, com influência evidente na geografia humana das cidades e de todo o país, no fosso das desigualdades e até, como lhe é implícito, na orientação que é dada às acções que são planificadas e levadas a cabo, mesmo que elas sejam de interesse público, ou envolvidas nesse rótulo.

Não levam em conta que foi com capitalismo e em capitalismo que houve a possibilidade de constituição de espaço para o fascismo, o colonialismo, o “apartheid”, ou de suas sequelas (entre elas a do regime de Mobutu, no então Zaire)…

Por outro lado, o capitalismo torna-se um facilitador para a irracionalidade em relação ao clima e ao ambiente, um facilitador de tal grandeza que muitas obras feitas pelo homem em Angola não têm em conta que as alterações climáticas através do aquecimento global, estão a eclodir em espaços de tempo extremamente curtos.

Assim as previsões não são feitas, nem amadurecidas, por que o homem não estuda, não está atento, apesar do “know how” que faz parte do investimento.

O homem em função do capitalismo é egoísta, não faz previsões solidárias, nem procura alternativas socialistas, nem estratégias coerentes a longo prazo e é por isso que há falências gritantes em muitas das realizações em curso em Angola, falências que identificam quem as produzem, como é óbvio...

A capital de Angola está a ser alvo de vícios que surgem conjugados às alterações climáticas: devido aos fenómenos típicos do aquecimento global, as chuvas equatoriais atingiram a sua latitude e, desde Janeiro, a pluviosidade aumentou duma forma sem precedentes, apontando fim a Maio, na melhor das hipóteses.

Ao longo dos nove últimos anos, entre as obras de vulto que o estado se aplicou em parte em benefício do interesse público, estão a reconstrução do Caminho de Ferro de Malange e a auto estrada que saindo de Viana se alcança praticamente o Dondo.

Essas vias, facilmente identificáveis no “Google Earth”, têm direcção oeste – este e são eixos que, interligados a outros (entre eles a auto estrada de circunvalação de Luanda e o novo aeroporto em construção), facilitam a implantação de zonas industrias, comerciais e habitacionais, muitas das quais em construção.

Houve investimento, houve crescimento, há florescimento social nos modos estritos do capitalismo, está-se a dar resposta em parte aos interesses públicos (mas também aos privados que estão a investir nas indústrias, no comércio e assumem a propriedade dos terrenos): os traços dos procedimentos típicos de quem age e pensa em termos capitalistas são evidentes.

Socorro-me neste momento das inundações de que está a sofrer os efeitos uma parte do Capalanga em Viana (também visíveis pelos mais atentos no “Google Earth”).

As obras do Caminho de Ferro de Malange e da auto estrada, conjugadas com a implantação de indústrias em cotas de nível mais elevado, levaram a que muitas águas resultantes das intensas quedas pluviométricas fossem deliberadamente canalizadas para uma bacia onde proliferam construções de pessoas de mais baixa renda (trabalhadores das fábricas, reformados, funcionários públicos e das empresas…).

Nessa bacia, sem que fossem previstos os escoamentos, as águas foram inundando uma a uma as casas dos pobres obrigando ao seu abandono e aumentando a “onda de infortúnios” a que eles têm sido votados.

Houve muitos engenheiros na reconstrução do Caminho de Ferro de Malange, da auto estrada, houve muita gente com saber como é óbvio também na implantação das indústrias, mas faltou neste caso ilustrativo espírito de solidariedade e atenção para com alguns dos representantes das classes sociais mais vulneráveis deste país…

Em alguns sectores, pude apurar: aqueles privados que do alto espreitam salvos como Moisés o caminho das águas, querem a baixo preço aumentar a dimensão dos seus terrenos e começaram já a movimentar-se nessa direcção, contactando meio timidamente, mas contactando, algumas das vítimas apanhadas pelo flagelo…

Não houve da parte do estado, nem das administrações locais ligação suficiente às comunidades, nem capacidade de prevenção, nem solidariedade (pelo menos até agora), pelo que as pessoas estão votadas ao “salve-se quem puder”, sem recursos e em condições ainda mais precárias do que aquelas que usufruíam.

Este exemplo, recolhido em plena capital de Angola, ilustra bem a minha posição ética, cívica e moral em relação ao que eu afirmo ser necessário: a continuidade do movimento de libertação com sentido de vida e com sentido patriótico!

Abriu-se caminho ao ter e esqueceu-se a construção prioritária e solidária do ser.

Convenceu-se que o modelo de socialismo se limitava apenas à “configuração de uma ditadura democrático-revolucionária com um sistema de governo socialista baseado no plano económico único e na direcção centralizada da economia”, quando a criatividade socialista, baseando-se na prioridade para o homem, é uma oportunidade imensa enquanto exercício saudável da construção da paz social.

Convenceu-se que esse modelo afinal só servia para fazer a guerra, “porque não foram capazes de proporcionar o exercício das liberdades e garantias fundamentais e o advento da prosperidade económica e social”… pudera com os encargos da luta contra o colonialismo, o “apartheid” e suas sequelas mobutu-savimbiescas até 2002…

Convenceu-se que “os processos democráticos que estão hoje em curso em quase todos os países em que o Presidente, o Governo e os Deputados são regularmente eleitos pelo povo”, resultantes da revolução pela “democracia representativa e a economia de mercado em quase todo o continente africano, seja através das chamadas Conferências Nacionais Soberanas, seja por outras vias e formas” esgotam o que se deve fazer em prol da Reconstrução e Reconciliação Nacional e Reinserção Social em curso e sobretudo a construção saudável da paz.

Convenceu-se que com a varinha mágica da “alternância democrática”, tudo se resolve: “quando os que estão no poder ganham, há continuidade. Quando os que estão na oposição ganham, há alternância democrática do poder, porque os que lá estavam saem”...

As coisas são como são e se há muitos que se esquecem que só há uma vida para se viver, individualmente a vida é cada vez mais precária e efémera à medida das alterações climáticas e ambientais em curso e por isso é para se viver com respeito pela Mãe Terra, em solidariedade social construída com amor, cidadania e participação, uma vida para se viver com dignidade e coerência, honrando-a ética, moral e civicamente.

Aqueles que abraçaram a luta contra o colonialismo e o “apartheid”, aqueles que experimentaram o sentido de vida do movimento de libertação, identificam-se por inteiro com todo o povo angolano e sabem que é nele e com ele que suas vidas fluem e se esgotam: isso impele-os na sua afirmação e impede-os de correr o risco de seguir atrás de miragens.

O povo angolano e todos os povos do mundo não esgotam suas opções com sentido de vida em mercados de natureza manipulada, nem em alternâncias democráticas representativas previsíveis por e para elites, por muito iluminadas que elas sejam; há todo um compromisso amplo e irrevogável para com ele que urge cumprir.

Aqueles que lutaram contra colonialismo, contra o “apartheid” e suas sequelas, não se deixam equivocar com o “apartheid” social que está a ser instigado como corolário do lado dos ricos e de suas castas na “construção” dum fosso das desigualdades de muito mau augúrio.

Para se lembrarem do caminho que há que evitar em termos de geografia humana, não se coíbem de visitar sempre Talatona e o Cazenga…

… Capalanga é um micro-caso que eu coloco sobre a mesa, procurando desde logo alertar: não é assim que se vai na direcção da construção da paz social, por muito ricos que fiquem alguns e por muito defendidos que outros estejam em suas castas “intocáveis” de que a comunidade humana da SONANGOL se está a tornar claro exemplo!

Martinho Júnior - Luanda

Nota:

As fotografias (de que aqui só se apresenta a de topo por impossibilidades técnicas) foram feitas a 26 e 27 de Fevereiro do 2011 no Capalanga; agora a situação abrangeu cada vez mais famílias porque o lago cresceu imparável, porque não tem escoamento.

De então para cá, apesar de não ter diminuído a intensidade das chuvas, nenhuma medida de fundo foi tomada e não há socorro suficientemente organizado e eficaz em benefício dos habitantes atingidos pelo lago que foi irremediavelmente crescendo.

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