sexta-feira, 27 de agosto de 2010

CONSTRUAMOS UMA ARCA DE NOÉ…


… QUE NOS SALVE A TODOS - MIGUEL D’ESCOTO

MARTINHO JÚNIOR

INTRODUÇÃO E DEDICATÓRIA

O “alerta” de Miguel d’Escoto, o nicaraguano Presidente da Assembleia Geral da ONU, na Conferência de Alto Nível realizada entre 24 e 26 de Junho sobre a Crise Financeira e Económica Mundial, em Nova York, merece ser difundido por todo o Mundo e por isso me parece justo também aqui em benefício dos leitores do Página Um, até por que está inteiramente de acordo com a nossa linha de pensamento.

Não tenho feito traduções para o Página Um, apesar de nos meus artigos fazer normalmente bastantes citações, porém dada a natureza e a oportunidade deste caso, decidi abrir excepção, até por que, o que se passa a nível global, passa-se, salvo raras excepções e em muitos dos seus aspectos, em qualquer um dos países que compõem a diversidade humana, Angola naturalmente incluída.

A construção da globalização tem sido feita de acordo com os padrões do capitalismo e, ao longo da década de 90 do século XX, de acordo com o neo liberalismo, com todos os desajustes, desequilíbrios e disfunções que ele trouxe, pelo que as sociedades nacionais reflectem, em maior ou menor escala, os vícios do “modelo”.

A filosofia tão bem expressa por Miguel d’Escoto, premente e oportuna, “apanha” Angola numa situação única: no momento em que se fez uma viragem de quase 180º ao paradigma de insofismável liberdade, solidariedade e cooperação que constituiu sua luta pela independência e contra o “apartheid”, que resultou ainda na subsequente libertação e independência das nações e povos da África Austral como a Namíbia e o Zimbabwe, assim como nas alterações profundas que se passaram a registar na África do Sul.

Isso foi conseguido à custa de imensos sacrifícios consentidos, mesmo beneficiando da ajuda de Cuba e dos países socialistas da época.

Se durante os 10 primeiros anos de independência a ideologia do movimento de libertação prevaleceu, bebendo da “lógica de Brazzaville”, a lógica do Che, a partir de 1985 e à medida que o imperialismo ganhava espaço à custa da dissolução intestina do “bloco socialista” e da URSS, a ideologia neo liberal, misto de “mercado livre” e “democracia representativa”, foi-se apossando das elites políticas e económicas do país, ou pelo menos duma parte delas, transformando-as e à sociedade e cortando com o sentido e a energia que vieram detrás, do moderno movimento de libertação.

Essa transformação deveu-se em parte à exploração do instinto de sobrevivência dessas elites e a partir de determinada altura, ao simples facto delas “terem experimentado, terem gostado” e depois acabarem por seguir as regras do jogo…

De pouco valeu, a nível externo, entre 1985 e 2009, o exemplo heróico de resistência protagonizado por Cuba, nem a nível interno a trajectória modesta, por vezes marginalizada, daqueles que com sensibilidade, respeito e responsabilidade se mantiveram fieis à “memória e ensinamentos” de Agostinho Neto.

Está-se agora num período de crise, de crise profunda, que acaba por “captar” também o dilema contemporâneo de Angola.

As elites que em Angola mergulharam de olhos vendados, de forma egocêntrica e imediatista, na tentação do “mercado livre”, procurando fazer esquecer o passado, ou lembrá-lo apenas em função de suas conveniências, aproveitando as alterações profundas da conjuntura… a história não lhes dá razão, nem as poderá absolver…

Por isso aqueles que se mantiveram resolutamente fiéis à chama dos nobres princípios de libertação, solidariedade, cooperação, não alinhamento, socialismo e com outra visão democrática que não aquela chancelada pelo imperialismo abusando das culturas anglo saxónicas, podem estar a fazer, ao exemplo da capacidade dos camelos, uma longa, por vezes sacrificada, “travessia do deserto”, mas por isso mesmo têm a responsabilidade de se tornarem os primeiros não só a chamar a atenção para a profundidade e significado da crise, que em Angola tem reflexos muito próprios, mas também a dar a sua contribuição para um dia também aqui se retomar o caminho que se coaduna com a verdadeira sustentabilidade da vida e com o sentido do movimento de libertação.

O que está em causa é a vida, a paz duradoura, um ambiente saudável para as presentes e as futuras gerações, não tanto a economia, ou as finanças, da forma como elas têm sido manipuladas por poderosos grupos minoritários, quantas e quantas vezes insensíveis aos destinos da humanidade e do planeta!

O que está em causa também é um renascimento para África, que a expectativa dum novo renascimento global dá maior oportunidade.

O “fim da história” foi um pesadelo que marcou o apogeu da ascensão das elites mais mal paradas que alguma vez se conheceu e que agora vão cada vez mais nuas nos seus erros, nos seus crimes, na sua arrogância perdulária e no seu domínio agora cada vez mais oscilante.

É especialmente para os do “mercado”, para aqueles que se desviaram, se esqueceram, ou se fazem esquecidos, que é hoje possível dedicar o discurso filosófico de 24 de Junho de Miguel d’Escoto!

Martinho Júnior

27 de Junho de 2009

I – UMA ARCA DE NOÉ QUE NOS SALVE A TODOS

Neste momento crítico, devemos todos somar esforços para evitar que a crise global, com seus muitos e diferentes rostos, se transforme numa tragédia sócio-ambiental e humanitária.

Os desafios das diferentes crises estão todos interconectados e obrigam-nos a todos nós, representantes dos povos da Terra, a proclamar a nossa responsabilidade uns para com os outros e a que juntos, com grande esperança, busquemos soluções de inclusão.

Nenhum lugar melhor que esta sala da Assembleia Geral das Nações Unidas para o fazer.

Esta é por circunstância a sala da inclusão democrática mundial, sede dos G 192.

Obviamente que cada estado tem a opção de definir o seu nível de participação, em conformidade com a importância que assiste o tema de cada reunião.

Não é humano, nem responsável construir uma Arca de Noé que salve somente o sistema económico que impera, deixando a grande maioria da humanidade à sua própria sorte, sofrendo as nefastas consequências dum sistema imposto por uma irresponsável, se bem que poderosa minoria.

Temos que tomar colectivamente um conjunto de decisões que atendam o mais possível a todos, incluindo a grande comunidade de vida e a Casa Comum, a Mãe Terra.

II – SUPERAR O PASSADO E CONSTRUIR O FUTURO

Antes de mais, necessitamos superar um passado frustrante e forjar um futuro esperançoso. Há que reconhecer que a actual crise económico-financeira é o último resultado dum modo egoísta e irresponsável de viver, de produzir, de consumir, de estabelecer relações entre nós e com a natureza, que implicou numa sistemática agressão à Terra e aos seus eco sistemas e uma profunda assimetria social, uma expressão analítica que dissimula uma perversa injustiça social planetária.

No meu entender, chegámos à última fronteira.

O caminho até agora percorrido parece ter-se encerrado e, a continuar assim, pode-se levar o mesmo destino já antecipado pelos dinossauros.

Por isso, os controlos e as correlações do modelo vigente, sem dúvida necessários, são a médio e longo prazos insuficientes.

A sua força interna para fazer frente à crise global mostra-se extremamente débil.

Ficar-se só pelo controlo e pelas correcções do modelo demonstraria uma cruel falta de sensibilidade social, de imaginação e de compromisso com a criação duma paz justa e duradoura.

O egoísmo e a cobiça não se podem remendar.

Têm de ser substituídos pela solidariedade e isso, obviamente, implica uma mudança radical.

Se realmente o que queremos é uma paz estável e duradoura, devemos estar absolutamente claros que devemos ir além do controlo e das correcções do modelo existente e criar algo que aponte um novo paradigma de convivência social.

Nesta perspectiva é imperativo buscar o que a Carta da Terra chama um modo sustentável de viver.

Isto implica uma visão compartilhada de valores e de princípios que propiciem uma forma distinta de habitar este mundo e que garantam o bem viver das presentes e das futuras gerações.

Se grande é o perigo que todos enfrentamos ante os diversos problemas convergentes, maior é ainda a oportunidade de salvação que a crise mundial nos está ajudando a descobrir.

Temos construído uma economia globalizada.

Agora é o momento de criar uma política e uma ética globalizadas, a partir das muitas experiências e tradições cultuais dos diferentes povos.

III – A MÃE TERRA E A ÉTICA PLANETÁRIA

Uma ética nova pressupõe uma óptica nova. Quer dizer, uma visão do mundo diferente origina também uma ética diferente, uma forma nova de nos inter relacionarmos. Há que incorporar a óptica que nos advém das chamadas ciências da Terra, segundo as quais a Terra está inserida num vasto e complexo cosmos em evolução. Ela está viva, é a Mãe Terra, expressão aprovada por esta Assembleia no passado 22 de Abril. A Mãe Terra auto regula-se, articulando com um equilíbrio subtil o físico, o químico e o biológico, de tal forma que se faz sempre propícia à vida. Ela produz uma comunidade de vida única, dentro da qual emergiu a comunidade da vida humana – a Humanidade – como a parte consciente e inteligente da mesma Terra.

Esta concepção contemporânea compagina-se com a ancestral visão da Humanidade e dos povos originários para os quais a Terra sempre foi e é venerada como Mãe, Magna Mater, Inana, Tonantzin, como a chamam os náhuati da minha pátria Nicarágua ou Pacha Mama, como a chamam os aymara na Bolívia.

Cresce mais e mais a consciência de que todos somos filhos e filhas da Terra e a ela pertencemos.

Tal como nos recordou muitas vezes o Presidente Evo Morales, ela pode viver sem nós, porém nós não podemos viver sem ela.

A nossa missão como humanos é a de ser os guardiães que cuidam da vitalidade e da integridade da Mãe Terra.

Lamentavelmente, por causa do nosso excessivo consumo e desperdício, a Terra ultrapassou já em 40% a sua capacidade de reposição dos bens e serviços que generosamente nos oferece.

Esta visão da Terra viva é testemunhada pelos astronautas que das suas naves espaciais confessaram, admirados, que a Terra e a Humanidade constituem uma única realidade.

Vivenciaram o que se chamou de “Overview Effect”, ou seja, a percepção de que estamos tão unidos à Terra que nós mesmos somos Terra: Terra que sente, que pensa, que ama e venera.

Essa óptica evoca-nos respeito, veneração, sentimento de responsabilidade e de cuidado para a nossa Casa Comum, atitudes extremamente urgentes, de cara à actual degradação generalizada da natureza.

Desta nova óptica nasce uma nova ética.

Uma nova fórmula de nos inter relacionarmos com todos os que vivem na nossa morada humana e com a natureza circundante.

Hoje a ética ou será planetária, ou não será ética.

IV – PONTOS AXIAIS DUMA ÉTICA DO BEM COMUM

A primeira afirmação desta ética planetária consiste em proclamar e salvaguardar o Bem Comum da Terra e da Humanidade. Partimos do pressuposto de que a comunidade de povos é simultaneamente uma comunidade de bens comuns. É proibitivo que eles sejam apropriados por privados e devem servir a vida de todos, das presentes e das futuras gerações e da comunidade dos demais seres vivos.

O Bem Comum da Humanidade e da Terra tem as características de universalidade e de gratuitidade.

Quer dizer, tem de integrar universalmente todas as pessoas, os povos e a comunidade de vida.

Deste Bem Comum Mundial nada nem ser algum pode ser excluído.

Além do mais, pela sua natureza, é algo gratuitamente oferecido a todos e, por isso, não deve ser objecto de compra ou venda, nem colocar-se sob a lógica da competência.

Por outro lado, deve ser continuamente construído por todos, sem que por isso o Bem Comum deixe de ser comum.

Quais são os bens fundamentais que constituem o Bem Comum da Humanidade e da Terra?

O primeiro é sem dúvida a Terra.

A quem pertence a Terra?

A Terra pertence, não aos poderosos que se apropriaram dos seus bens e serviços, senão ao conjunto de ecossistemas que a compõem.

É um dom do universo que surgiu na nossa Via Láctea a partir dum sol ancestral já desaparecido que originou o sol actual ao redor do qual a Terra gira como um dos seus planetas.

Pelo facto de ser viva e geradora de todos os seres viventes, tem dignidade (dignitas Terra).

Esta dignidade reclama respeito e veneração e faz que ela seja portadora de direitos: direito de ser cuidada, protegida e mantida em condições de poder continuar produzindo e reproduzindo vidas.

Temos todavia que reconhecer que o modo de produção que se globalizou na sua voracidade industrialista provocou, em grande medida, a devastação da Terra e, assim mesmo, danificou o Bem Comum da Terra e da Humanidade.

É urgente que busquemos outros caminhos mais humanos e mais favoráveis à vida: os caminhos da justiça e da solidariedade que são caminhos que conduzem à paz e à felicidade.

Em seguida temos a biosfera da Terra como um património comum de toda a vida da qual a Humanidade é sua tutora.

Pertencem ao Bem Comum da Humanidade e da Terra, como dizia já em 1972 a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, “todos os recursos naturais da Terra, incluindo o ar, os solos, a flora, a fauna e em especial as mostras representativas dos ecossistemas naturais”.

Especialmente a água, os oceanos e as florestas pertencem ao Bem Comum da Humanidade e da Terra.

A água é um bem natural, comum essencial, comum, essencial e insubstituível e todos têm direito ao acesso a ela, independentemente dos custos implicados na sua captação, reserva, purificação e distribuição que sejam assumidos pelo poder público e pela sociedade.

Por isso, preocupa-nos enormemente o afã de a privatizar e de a transformar em mercadoria, com a qual, sem dúvida, se pode ganhar muito dinheiro.

Água é vida e a vida é sagrada e não objecto de truques.

Esta Assembleia quer apoiar os esforços para chegar a um Pacto Internacional da Água com uma gestão colectiva para garantir a todos esse bem vital.

Algo semelhante há que dizer das florestas, especialmente as tropicais e sub tropicais, onde se encontra a maior biodiversidade e concentração de humidade necessária à vitalidade da Terra.

São as florestas que impedem que as mudanças climáticas inviabilizem a vida no planeta, por que são os grandes sequestradores de dióxido de carbono.

Sem florestas não há vida, nem biodiversidade.

Os oceanos são os grandes repositórios de vida, os reguladores dos climas, os equilibradores da base física e química da Terra.

Florestas e oceanos constituem uma questão vital e não só ambiental.

Os climas da Terra pertencem ao Bem Comum da Humanidade e da Terra.

A Resolução 45/53 de 6 de Dezembro de 1988 desta Assembleia Geral da ONU sobre “Protecção do Clima Global para as Gerações Presentes e Futuras”, reconhece os climas como Património Comum da Humanidade (Common Concern of Humankind), porque “são uma condição essencial da manutenção da vida na Terra”.

O Grupo Intergovernamental de Peritos sobre a Mudança Climática, mais conhecido como IPCC, em suas siglas em inglês, considera “as mudanças climáticas uma preocupação comum da Humanidade que deve ser tratada globalmente com uma responsabilidade compartilhada”.

Porém o grande Bem Comum da Humanidade e da Terra é a própria Humanidade como um todo.

Tem um valor intrínseco supremo e representa um fim em si mesmo.

É parte do reino da vida, altamente complexa, capaz de consciência, sensibilidade, inteligência, fantasia criadora, amor e abertura ao Todo.

Há em todas as culturas a clara percepção de que a Humanidade é portadora de uma inviolável dignidade.

Cometem crime contra a Humanidade os que fazem guerras e constituem uma máquina de morte que pode eliminar da face da Terra a vida humana e danificar profundamente a biosfera.

Por isso meus queridos irmãos e irmãs, já não podemos esperar.

É imprescindível proceder quanto antes à abolição das armas nucleares por completo, não simplesmente redução, ou não proliferação.

Urge estabelecer a norma de tolerância zero para armas nucleares, para todos em geral e sem excepções.

Um encontro de todos os possuidores de armas nucleares para tomar decisões sobre isso é já algo inadiável.

Estamos vivendo um momento propício para isso e não devemos desaproveitá-lo.

O mundo tampouco pode seguir tolerando a obscenidade das cada vez mais astronómicas despesas em armamentos, enquanto se oferecem irrisórios recursos para tirar metade da humanidade dos níveis de pobreza intoleráveis que, além disso, constituem uma bomba de tempo contra todos.

A violência gera violência e manter a gente com fome e níveis infra humanos de existência é a pior violência.

V – ESTRATÉGAS PARA A SUPERAÇÃO DA CRISE

Neste momento da história sob a crise global e a luz do Bem Comum da Terra e da Humanidade, torna-se necessário tomar colectivamente medidas a curto e médio prazos para manter a sociedade funcionando, por um lado e para assentar as bases de novas formas de viver em sustentabilidade, por outro.

Cinco eixos fundamentais poderiam dar coerência às novas Iniciativas que busquem construir alternativas e também orientar numerosas práticas que serão discutidas nestes dias aqui na Assembleia Geral.

Primeiro: a utilização sustentável e responsável dos escassos recursos naturais.

Isto implica superar a lógica da exploração da natureza e fortalecer a relação de respeito e de sinergia.

Segundo: devolver à economia o seu devido lugar no conjunto da sociedade, superando a visão reducionista que a fez o grande eixo estruturador da convivência humana.

A economia deve respeitar valores e não ser fluente de valores; deve ser vista como a actividade destinada a criar, dentro do respeito das normas sociais e ecológicas, as bases da vida física, cultural e espiritual de todos os seres humanos sobre o planeta.

Terceiro: generalizar a democracia a todas as relações sociais e a todas as instituições.

Não somente aplicá-la e aprofundá-la no campo político, com uma nova definição de Estado e dos organismos internacionais, senão também ampliá-la à área da economia, da cultura e da relação entre os homens e mulheres para que seja um valor universal e verdadeiramente uma democracia sem fim.

Quarto: forjar um ethos mínimo a partir do intercâmbio multicultural e a partir das tradições filosóficas e religiosas dos povos, a fim de poderem participar na definição do Bem Comum da Humanidade e da Terra e na elaboração de novos valores.

Quinto: potenciar uma visão espiritual do mundo que faça justiça às pesquisas humanas em relação a um sentido transcendente da vida, do trabalho criativo dos humanos e do nosso curto trânsito por este pequeno planeta.

A concretização desses cinco eixos fundamentais é essencial par lograr o bem viver pessoal, social e planetário.

Este alcança-se através duma economia do suficiente e decente para toda a comunidade, vivendo em comunhão com os demais seres humanos com a natureza e com o Todo do qual somos parte.

Aqui se dão as bases para uma bio civilização que tem como centralidade a vida, a Terra e a Humanidade, cujos cidadãos se sentem filhos e filhas da alegria e não da necessidade.

VI – QUATRO PRINCÍPIOS ÉTICOS FUNDAMENTAIS

Todos estes desafios não terão adequadamente resposta se não mudarmos as nossas mentes e os nossos corações e não criarmos espaço para a emergência e o desenvolvimento de outras dimensões essenciais do ser humano.

O uso exclusivo e abusivo da razão instrumental-analítica nos tempos modernos, tornou-nos surdos ao clamor da Terra e insensíveis aos gritos dos oprimidos que são as grandes maiorias da Humanidade.

No mais profundo da nossa natureza humana somos seres de amor, de solidariedade, de compaixão e de comunhão.

Por isso há que enriquecer a razão analítica com a razão sensível, emocional e cordial, sede dos referidos valores.

O Bem Comum da Humanidade e da Terra é uma realidade dinâmica e em contínua construção.

Para mantê-lo vivo e aberto a outros desenvolvimentos, quatro princípios éticos resultam importantes.

O primeiro princípio ético é o respeito.

Cada ser tem valor intrínseco.

A sua utilização para o Bem da Humanidade não pode ser orientada por uma ética meramente utilitarista, conforme predominou no paradigma sócio-económico vigente, mas dentro dum sentido de mútua pertença, de responsabilidade e de conservação da sua existência.

O segundo é o cuidado.

O cuidado configura uma atitude não agressiva ante a realidade, atitude amorosa que repara os danos passados e previne os futuros e, por outro lado, se estende a todos os campos da actividade humana pessoal e social.

Se tivesse havido suficiente cuidado, não teríamos chegado à actual crise financeira e económica.

O cuidado está intrinsecamente ligado à manutenção da vida, porque sem cuidado ela debilita-se e desaparece.

A expressão oriental do cuidado é a compaixão, tão necessária nos dias de hoje quando grande parte da Humanidade e da mesma Terra se encontram crucificadas e tocadas por um mar de padecimentos.

Numa sociedade de mercado que se rege mais pela competência que pela cooperação, constata-se uma cruel falta de compaixão com todos os que sofrem na sociedade e na natureza.

O terceiro princípio é a responsabilidade universal.

Todos somos eco dependentes e inter dependentes.

As nossas acções podem ser benéficas ou daninhas para a vida e para o Bem Comum da Terra e da Humanidade.

As muitas crises actuais derivam em grande parte da falta de responsabilidade de nossos projectos e práticas colectivas, que têm provocado o desequilíbrio global dos mercados e do sistema Terra.

O quarto princípio é a cooperação.

Se não há cooperação entre todos não vamos sair enriquecidos das actuais crises.

A cooperação é tão essencial que foi ela que no passado permitiu aos nossos ancestrais antropóides dar o salto da animalidade para a humanidade.

Ao buscar os alimentos não os comiam de forma individual, mas traziam-nos para serem comidos pelo grupo e de forma cooperativa e solidária compartilhavam-nos por todos.

O que foi essencial no passado segue sendo essencial no presente.

Por fim pertence ao Bem Comum da Humanidade a crença testemunhada pelas tradições espirituais e afirmada pelos cosmólogos e astrofísicos contemporâneos de que por detrás de todo o universo, de cada ser, de cada pessoa, de cada acontecimento e da nossa crise actual, actua a Energia de Fundo, misteriosa e inefável, também chamada Fonte Alimentadora de todo o Ser.

Esta Energia sem nome – estamos seguros – actuará também neste momento de caos, ajudando-nos e apoderando-se de nós para vencer o egoísmo e tomar as medidas necessárias para que ele não seja catastrófico, mas criativo e gerador de novas ordens de conveniência, de modelos económicos inovadores e de um sentido mais elevado de viver e conviver.

VII – CONCLUSÃO: NÃO TRAGÉDIA, MAS CRISE

Para terminar quero testemunhar a minha profunda convicção de que o cenário actual não é de tragédia mas de crise.

A tragédia termina mal, com uma Terra devastada porém que pode continuar sem nós.

A crise purifica, faz-nos amadurecer e encontrar formas e superação satisfatórias par toda a comunidade de vida, do ser humano e da Terra.

A actual dor não é o estertor dum moribundo, mas a dor dum novo parto.

Até agora temos explorado exaustivamente o capital material que é finito, cabe agora trabalhar o capital espiritual que é infinito porque infinita é a nossa capacidade de amar, de conviver irmãmente e de penetrar nos mistérios do universo e do coração humano.

Como todos viemos do coração das grandes estrelas vermelhas, nas quais se forjaram os elementos que nos constituem, está claro que nós nascemos para brilhar, não para sofrer.

E iremos novamente brilhar – esta é a minha firme esperança – numa civilização planetária mais respeitosa para com a Mãe Terra, mais inclusiva de todos, mais solidária a partir dos que têm menos posses, mais espiritual e cheia de reverência frente ao esplendor do universo e muito mais feliz.

Com estas palavras se dão por iniciadas as intervenções nesta importantíssima Conferência sobre a crise financeira e económica mundial.

Ao contextualizar a problemática, quis enfatizar que, para poder aproveitar as oportunidades que a actual crise nos apresenta, teremos que pôr de lado atitudes egoístas.

Estas na verdade só procuram preservar um sistema que, supostamente beneficia uma minoria e tem claramente consequências nefastas para a imensa maioria dos habitantes do planeta.

Temos todos que nos revestirmos de SOLIDARIEDADE e de COOPERAÇÃO para poder dar um salto qualitativo na direcção dum futuro de paz e de bem estar.

Permitam-me, queridos irmãos e irmãs, concluir esta reflexão com as palavras do Santo Padre, o Papa Benedito XVI para esta Conferência: “invoco para os participantes da Conferência, como também para os responsáveis da coisa pública e dos destinos do planeta, o Espírito de Sabedoria e de Solidariedade Humana para que a actual crise se transforme em oportunidade capaz de ajudarmos a brindar uma maior atenção à dignidade de cada ser humano e promover uma distribuição mais equitativa do poder de decisão e dos recursos, com particular atenção para os pobres, cujo número desafortunadamente é cada vez maior”.

Muito obrigado.

UMA LONGA E PACIENTE LUTA À ESCALA GLOBAL

Aproveitando o refinado sentido filosófico do discurso do Presidente da Assembleia Geral da ONU Miguel d’Escoto, parece-me oportuno por fim fazer-se um ponto de situação à luz dos acontecimentos que se vão sucedendo, pois começa-se a entender amplamente o que se tem de pôr de parte por que se tornou proibitivo e o que é imperativo, o que é novo, o que está a nascer e se torna imprescindível por razões de sobrevivência da Humanidade e da Mãe Terra.

A partir deste continente vilipendiado, “berço da humanidade” e seguindo a lógica daqueles que têm sido coerentes com o movimento de libertação, aquela lógica que em relação ao MPLA se sublimou como a “lógica de Brazzaville”, a lógica do Che, apercebe-se plenamente por um lado quão sábias e oportunas são as palavras de Miguel d’Escoto por outro, quanto o movimento de libertação à luz dessa filosofia, veio trazer de benigno, construtivo e saudável para que seja reposta a justiça em África, no quadro da equação do continente e no que diz respeito ao seu relacionamento com outros continentes e outros povos.

Em África apercebe-se também da fronteira, do que se tem de deixar para trás e do que se vai ter de seguir adiante, incluindo o que antes teve de ser feito com o recurso às armas e agora tem de ser feito essencialmente com recurso à consciência individual e colectiva.

Apercebe-se ainda a profundidade temporal da vanguarda em que se constituiu o moderno movimento de libertação ilustrado com a dignidade e o exemplo de homens como Lumumba, Che, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Sankara e tantos outros, que tiveram a capacidade de estabelecer tão rasgados horizontes que a eles se vai beber tantos ensinamentos.

África não é um continente à margem, “periférico”, conforme afirmam alguns daqueles que no fundo perseguem a lógica capitalista “dominante”, porque não houve um hiato para a vida, nem para o movimento de libertação, apesar da sua aparente neutralização exterior e intestina, que tem sido aliás mais evidenciada que enunciada pelo menos ao longo dos últimos vinte anos.

Aqueles que souberam “resistir” estarão cada vez mais amadurecidos para a paz social, muito para além da paz limitada à simples ausência de tiros, para a construção inadiável do socialismo sem perder de vista a dialéctica aferida aos cenários contemporâneos plasmados pelos impactos impossíveis de suster no âmbito da globalização e sem se renderem à “social-democracia” que em quase exclusivo proveito duns quantos, tão bem sabe embrulhar o “mundo dos negócios”.

África está sedenta de renascimento, porque começa a estar esgotada essa lógica do capitalismo que se expandiu da forma mais perversa possível, a do neo liberalismo, que lhe trouxe a explosão de tensões, de conflitos e de guerras que dilaceraram nações, povos, regiões inteiras e introduziram (e continuam a introduzir) o foço das desigualdades num ambiente amplamente flagelado pela doença, pela fome, pela miséria, pelo subdesenvolvimento, “desestruturante” e sem melhores alternativas do que a cobiça das riquezas naturais, para desgraça de humanos e do seu singularmente esplêndido ambiente natural.

Está caduco esse “modelo” eminentemente neo colonial, assim como está cada vez mais caduco o “modelo” de “democracia representativa” por mais poderosos que sejam os seus mentores, por que o espaço coerente da democracia é o que se refere ao cidadão e à sua participação consciente, responsável e solidária, não aquele espaço usurpado pelo egoísmo, pelo imediatismo, pelo carácter “espontâneo” que só beneficia os ricos, ou os seus forçosamente privilegiados “lobbies”, impostos ilegitimamente como “representantes” do todo ou “dos outros”…

Houveram muitos que abandonaram as fileiras do movimento de libertação, houveram mesmo alguns que o traíram, mas a vida continuou inexorável não se reduzindo ao “mercado” que os ricos querem e a sociedade está aí, pejada de contradições, de corrupção, de injustiça, como uma obra imperfeita que contrasta sobretudo com os antecedentes de dignidade propiciados ao longo da luta contra o colonialismo e contra o “apartheid”, bem como as expectativas que se perfilhavam e perfilham no sentido da vida, conformes à pureza da “lógica de Brazzaville”.

África está a cair ainda na situação gravosa que atingiu toda a América Latina ao longo dos duzentos anos após a expulsão da potência colonial espanhola, sem procurar prevenir-se dessa tristemente perigosa solidão redutora: a formação de elites de conveniência imperial, agenciadas por potências que tutelando a lógica capitalista congregam e dão força aos “abutres” que sem qualquer respeito, nem solidariedade para com os povos, nem em relação à natureza, operaram e operam sem contemplações sobre um aparentemente “inerte” continente.

É por isso que é deveras esclarecedora a luta dos povos da América Latina contra o anátema do imperialismo e de seu cortejo de oligarquias, agora ainda mais exposta com o, para muitos surpreendente, para outros mais esclarecidos lógico, caso das Honduras.

Miguel d’Escoto provou não só ser um filósofo devotado ao equilíbrio global, ao respeito e à responsabilidade de todos e de cada um face aos problemas da Humanidade e do Planeta, mas também um homem corajoso disposto a fisicamente se expor no avião de dignidade que foi impedido de aterrar em Tegucigalpa, em nome precisamente do que é justo e pertence às mais legítimas esperanças no futuro, face a face aos pesadelos do passado.

Com ele está a renascer a aspiração a um mundo melhor, uma via indissociável ao sentido da vida, conforme o foi e é (pelo menos para os seus seguidores), o sentido histórico do movimento de libertação e com ele está-se a transpor a fronteira.

É proibido nessa luta pelo renascimento ser-se ambíguo, ou relaxar-se em relação ao rigor a que nos obriga a dignidade, muito em particular quando se está constituído em numa entidade com tanta responsabilidade, quer-nos dizer Miguel d’Escoto.

A paciente e secular luta no sentido a vida, da justiça, da dignidade, não só em benefício da Humanidade como também do Planeta, é uma corrente que se torna praticável com o aprofundamento da democracia, procurando-a tornar cada vez mais eclética, mais ampla, muito mais consciente, consensual, cidadã, participativa, respeitadora, solidária, responsável e procurando pôr definitivamente de lado a medievalidade das armas e dos tiros!

Os povos que em algum momento dramático conseguirem pacificamente se manifestar por essa corrente, quando forem obrigados a fazê-lo frente aos canos das armas e à evidência feudal dos golpes, são merecedores do maior respeito e devem ser tidos como exemplo, apesar das sequelas e vulnerabilidades que neles possam existir (mas também por causa disso).

De entre as muitas lições que se tem de forma consciente de atender, impõe-se ética e moralmente aquela que nos revela que a economia e as finanças devem ser equacionadas em função da Humanidade e da Mãe Terra e não se imponham num argumento por si, num fundamentalismo de “mercado” que é muito caro ao ego dos ricos e ao seu “espelho” de “representatividade”, mas se tornou cada vez mais falível senão obsoleto, no respeito devido aos povos, à Humanidade e ao Planeta.

As oligarquias arrogantes, medievais, egoístas e insensíveis por isso terão de ser desmascaradas, sem que esse desmascaramento constitua um atentado ao sentido da vida, sempre que forem tentadas ao aviltamento dos processos democráticos, onde quer que seja, sejam quais forem as formas e os métodos que lhes servirem então de recurso.

A tecnologia favorece hoje mais que nunca os desideratos do aprofundamento das democracias, em termos de tomadas de decisão, para que elas sejam ao mesmo tempo mobilizadoras de vontade, condensadoras de energia, promotoras de participação, de justiça, de equilíbrio e de solidariedade, pelo que o movimento de libertação, agora sem recurso às armas mas ainda mais coerente para com a vida, pacífico mas poderoso, deve ser um manancial de conhecimento consciente absorvendo essas tecnologias, como ainda um factor de responsabilidade, de coerência e de solidariedade de todos e de cada um, para todos e para cada um, tal como para com a natureza.

O acesso de cada vez mais cidadãos do mundo às disponibilidades tecnológicas contemporâneas advenientes da revolução nas comunicações, traz aportes significativos às novas possibilidades democráticas que se oferecem hoje mais que nunca, contrariando a mentalidade feudal que domina a lógica capitalista, uma mentalidade que tenta corroer a sociedade quando os “média” a procuram envenenar com as mensagens do egoísmo, da mentira, ou da irracionalidade, uma mentalidade que muitas e muitas vezes recorre às manipulações, às tensões, aos conflitos e às guerras para fazer prevalecer a vontade dum punhado de ricos ávidos de se apoderarem de ainda mais riquezas…

Esse será também o caminho do renascimento africano, por muito entorpecidos e subjugados que andem os povos, a imensa e sofrida maioria, por muito “diversionismo” que lhes seja injectado ao jeito duma droga exponencialmente massiva, tirando partido do elevado grau de seu subdesenvolvimento e por muito doloroso que esse processo se constitua, ou venha a constituir.

Em Angola está na forja uma nova Constituição, mas os “fabricantes de torres de marfim” inclinam-se para a discussão de questões muito mais de feição formal, por vezes superficial, que constituem a ramagem duma árvore amputada da sua raiz e do seu tronco, uma árvore quiçá isolada da floresta, “desapercebendo-se” de forma deliberada ou não, mas “desapercebendo-se”, do clamor que se eleva magneticamente dos povos, do seu próprio povo e da natureza, um clamor tão sabiamente interpretado por Miguel d’Escoto em Nova Yorque em relação ao estado do mundo, de cada uma de suas nações e de cada um dos seus povos.

É imperativo passar-se do estádio da “mentalidade, atitude e comportamento” que se diz “ter de mudar”, quando o que se tem de mudar é muito mais que isso: é, para além disso, o estado de consciência individual e colectiva, o estado de consciência que nos leve a atravessar a fronteira entre o que pertence ao passado e nos sugere o longo futuro que se abre às presentes e próximas gerações!

Alguém passou a mensagem-alerta do Presidente da Assembleia Geral da ONU em África e no caso particular em Angola, quando tirando partido da ignorância e da inconsciência, é tão fácil passar as mensagens que se prendem às mais díspares e supérfluas ninharias quotidianas que “pondo o boi a dormir”, contemplam e encorajam o ego dos ricos e dos poderosos?

Estarão os estadistas africanos presentes na reunião de Átila coerentes com essa mensagem tornada disponível no âmbito do G-192, quando África é aquele continente mais carente de humanidade e o mais selvaticamente dilacerado nas suas riquezas, conforme o demonstram todos os indicadores passados e presentes?

Porque razão os factores da crise global (e não só a tão evocada crise económica e financeira) que afectam toda a Humanidade e o próprio Planeta, não estão a ser tidos em devida conta, de forma empenhada, inteligente, sensível, pela esmagadora maioria dos dirigentes mundiais, africanos incluídos e devidamente transpostos do G-192 para qualquer outro “G”, a começar pelo G-8?

A que se deve essa ausência de coerência e de coragem?

Até que ponto estão garantidas harmonia e sustentabilidade na criatividade colectiva e individual?

A que se deve o alheamento do pensamento dialéctico aplicado à escala global, quando os “pragmatismos” de pendor estruturalista que têm caracterizado a era post início da revolução industrial provocaram tantos desequilíbrios nas sociedades humanas e na natureza?

Haverá alguém que persiga de facto o sentido da vida que nos trouxe o movimento de libertação, o sentido filosoficamente tão bem expresso por Miguel d’Escoto e o traduza, plasmando-o por exemplo, numa nova Constituição?

Que Constituição teremos em Angola, para que o estado, a nação e o povo angolano estejam efectivamente capazes de enfrentar os inadiáveis desafios que desde logo se colocam neste início do século XXI, para além do que se tem consubstanciado com a reconstrução e a reconciliação nacional?

Martinho Júnior

8 de Julho de 2009.

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