quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A “PASSAGEM DE TESTEMUNHO”


MARTINHO JÚNIOR

III – ANGOLA “CHARNEIRA DA HARMONIA” EM ÁFRICA

As “novas elites” angolanas forjadas imediatamente antes da transição de “passagem de testemunho”, estão aptas a corresponder às “técnicas” convenientes em curso e, tirando partido da “harmonia oriental ascendente”, procuram recolher para si em primeiro lugar (e depois para o resto na medida das conveniências sócio-políticas), todas as migalhas que vierem a cair na “pista neo colonial” africana… e assumem o seu papel no quadro das estratégias de uns e de outros.

Em Angola isso é possível por que houve uma experiência rica que advém do passado pela via do movimento de libertação, cuja sequência só não é completamente neutralizada por que sem o homem enquanto prioridade estratégica, não haverá política alguma, não haverá plano algum, que possa ir legitimamente por diante.

A resistência em termos de princípios e de fidelidade prática em função da prioridade humana e social, apesar de estar hoje fragilizada na sua composição, soube à custa de grandes perdas e sacrifícios “estabelecer a ponte” entre o passado e o presente, assim como entender a “técnica” da “passagem de testemunho” do segundo (Estados Unidos) para o terceiro “estafeta” (RPC), mantendo com dignidade a sua perseverança e identidade histórica, não só não perdendo o fio da meada, como indo tão longe que sua capacidade de análise e força ideológico-política consegue prever.

O Chefe de Estado angolano por seu turno entende também todo esse processo que advém do passado e apesar dos constrangimentos próprios de seu enquadramento humano, está a gerir com carácter estratégico determinante o papel de Angola que bebe da “harmonia” proposta pelo “Oriente”, não fosse Angola tão experimentada pela “barbárie de sangue” de pendor “Ocidental”: sabe-se agora em linhas gerais por onde ir e o que se tem de evitar, pelo menos a curto-médio prazos!...

No momento do render da administração Bush para a administração Obama, soube interpretar a “técnica” e aplicar o apaziguamento possível à “pista neo colonial” africana face aos deserdados da Terra, não só no que diz respeito aos aspectos internos de Angola, mas também no entrosamento do Golfo da Guiné com os Grandes Lagos.

Nos bastidores da ofensiva político-diplomática protagonizada por Obasanjo em nome da União Africana, a avisada diplomacia de José Eduardo dos Santos conseguiu a “chave” para finalmente haver uma evolução satisfatória da situação gangrenada do leste do Congo:

- Realizar a síntese entre os contrários a nível dos estados (nomeadamente dum lado a RDC, do outro o Uganda e o Ruanda), a fim de procurar pôr fim à actuação dos rebeldes na imensa região estratégica mas periférica dos Kivu e do leste do Katanga.

- Estabelecer as premissas mínimas de estabilidade para, com a ausência de tiros, procurar consensos possíveis entre as potências (incluindo as multinacionais) e os interesses das “novas elites” africanas, por mais errantes que elas tenham sido e apesar de alguns “sacrificados” no processo (os “rebeldes recalcitrantes” que pouco a pouco vão sendo encaminhados aos Tribunais Internacionais na Europa).

O estado angolano já ensaiara antes (1999/2000), por alturas de Laurent Kabila na Presidência da RDC, uma tentativa análoga que só não foi mais conseguida na altura, por que a hegemonia norte americana nos Grandes Lagos acabara de ser “instalada” sobre a barbárie do genocídio:

Os países dos Grandes Lagos (Uganda, Ruanda e Burundi) agiram de certo modo no Congo evocando na altura o mesmo tipo de conceitos que Angola alimentava – perseguir os seus próprios rebeldes que ameaçavam o seu estado e os seus interesses, pelo que mesmo que estivessem em trincheiras opostas, isso acabou por facilitar contactos exploratórios que acabaram por conduzir, por exemplo, a um entendimento tácito de ordem estratégica que durou enquanto houve guerra – Angola limitou a sua acção a oeste da RDC (Kinshasa incluída), ou seja, à volta de suas fronteiras e o Uganda-Ruanda-Burundi ao leste, também na região adjacente às suas respectivas fronteiras.

A evolução do processo de globalização capitalista contemporâneo levou para o Congo na “passagem de testemunho” do “estafeta” Estados Unidos para o “estafeta” China, conjunturas e cenários distintos do passado: hoje a administração Obama não poderá repetir o que a administração Clinton fez no âmbito das tensões, conflitos e guerras que ocorreram no Ruanda, no Congo e em Angola na década de 90 e terá que se configurar, também por esgotamento, à proposta “harmoniosa” de inspiração “Oriental” e agora também africana.

Se bem que o “Ocidente” de há muito teve a possibilidade e a oportunidade de levar à barra dos Tribunais todos aqueles rebeldes que cometeram atrocidades, só agora em que a presença Chinesa se tornou tão expressiva em África, a “Ocidente” se decidiu pela pressão Internacional conjugada ao esforço de alguns frágeis estados africanos, a fim de se acabar, ou de se diminuir o campo de sangue em África.

Os rebeldes da RDC (a RDC é um dos países africanos que aderiram ao “ICC”) parece terem agora os dias contados e pelo menos alguns dos cabecilhas arriscam-se ao Tribunal Internacional de Haia (o “International Criminal Court”) , a começar por Thomas Lubanga, Germain Katanga, Mathieu Ngudjolo Chui e Jean Pierre Bemba, que foram transferidos sob detenção nas seguintes datas para o “ICC”, sendo os três primeiros segundo queixa do governo da RDC:

- Thomas Lubanga, (fundador e líder da União dos Patriotas Congoleses interveniente no conflito do Ituri), a 17 de Março de 2006.

- Germain Katanga, (líder da Frente de Resistência Patriótica do Ituri), a 17 de Outubro de 2007.

- Mathieu Ngudjolo Chui, (coronel das Forças Armadas do Congo, tornou-se comandante da Frente Nacional Integracionista e posteriormente da Frente de Resistência Patriótica do Ituri), a 6 de Fevereiro de 2008.

- Jean Pierre Bemba, (líder do Movimento de Libertação do Congo), detido a 24 de Maio de 2008 em Bruxelas e entregue a 3 de Julho de 2008 (segundo queixa do governo da República Centro Africana).

A RDC fica assim com pelo menos mais dois casos em curso, um deles “pendente” por fuga, Bosco Ntaganda, comandante militar da União dos Patriotas Congoleses (“pendente”) e Laurent NKunda, do Conselho Nacional para a Defesa do Povo, (detido em Janeiro de 2009 em Bunagana, território do Ruanda, no seguimento de operações conjuntas das autoridades Congolesas e Ruandesas), ainda por definir no que diz respeito ao seu encaminhamento.

Depois do relativo êxito das operações conjuntas entre os governos da RDC e do Ruanda, a RDC prossegue os esforços com o Uganda no sentido de pôr cobro às investidas do “Lord’s Resistance Army” sob a direcção do sanguinário Joseph Koni, ao mesmo tempo que se previnem em relação à futura exploração de petróleo junto da fronteira comum.

Fundado a 1 de Julho de 2002, com base no Estatuto do Tribunal Penal Internacional em Roma, o “ICC” (sem a aderência de algumas potências como os Estados Unidos, a China, a Rússia e a Índia) tem escritórios desde 18 de Outubro de 2007 em Kampala, Kinshasa, Bangui, Abeche e Bunia, cobrindo alguns dos contenciosos mais sanguinários em África, essencialmente no Norte do Uganda, na RDC, na República Centro Africana e em Darfur (Sudão).

A China procura no Congo e na Zâmbia “luz verde” para os seus projectos no âmbito da exploração de matérias primas e seu transporte, interligando esses processos ao processo angolano em curso mais avançado.

Enquanto Angola (que ainda não é membro pleno do “ICC”) inter age os seus “bons ofícios” a leste com outros parceiros regionais, a sua acção reforça-se sintomaticamente no Golfo da Guiné, em estados insulares como a Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipe, no momento em que houve quase em simultâneo mais um ciclo de desestabilização nos dois países.

Contrariando meu prognóstico anterior (ver “Congo, ou a tragédia decisiva de África” de 20 de Novembro de 2008 e “Previsão de aumento de tensões em África” de 13 de Outubro de 2008), no âmbito dos impactos causados pela China, o próprio “Ocidente” tão habituado a políticas neo coloniais e aos conflitos e guerras que dilaceraram o continente ao longo dos últimos anos, está a mudar de feição e de comportamento, restando saber até que ponto a “barbárie de sangue” perdurará.

Nesse sentido Angola parece definir-se no momento da “passagem de testemunho”, como “charneira” da nova “harmonia”, o que poderá implicar na reformulação do comportamento de alguns sectores das suas próprias “novas elites”, em particular aquelas que alguma vez se tornarem refractárias ao próprio Programa do Governo para o quinquénio (em curso).

Martinho Júnior

5 de Março de 2009

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