MARTINHO JÚNIOR
Pão, com farinha
água e fogo te levantas.
Espesso e leve,
recostado e redondo
representas o ventre da mãe,
germinação terrestre.
Pão, como és simples
e complicado ao mesmo tempo.
De súbito
a onda da vida,
a conjugação do germe,
e do fogo,
cresces, cresces de repente
como uma cintura, boca, seios,
colinas de terra, vidas,
o calor aumenta, inunda-te
de plenitude, o vento da fecundidade,
e então
imobiliza-se a tua cor de ouro.
(Pablo Neruda, “Ode ao pão” em “Odes Elementares”) – (1)
Nos dias que correm, cada vez mais seres humanos têm dificuldades em comer uma côdea de pão e isso provavelmente nem Neruda, um poeta que conheceu bem os segredos do mundo e do homem, poderia prever.
A vida humana implica expectativas favoráveis, esperanças, aspirações, todavia a lógica capitalista alimentada pelo neo liberalismo “globalizante”, tem-se encarregue pela via da profunda crise que criou e está em curso, desde que os “Chicago Boys” em sustentação da ditadura sanguinária de Augusto Pinochet tomaram conta do Chile e não só agora em que as finanças globais vão de mal a pior, de multiplicar o espectro da miséria e da morte.
O desaparecimento físico de Pablo Neruda, que doente acabou por não resistir ao desgosto das perdas provocadas pelo golpe que culminou a 11 de Setembro de 1973, esteve entre os primeiros sinais do caminho trágico que então se iniciava para toda a humanidade e para o planeta até aos nossos dias.
Em Outubro próximo a FAO apresentará o seu relatório anual sobre o “estado da insegurança alimentar no mundo”, mas os números antecipados atestam o agravamento da situação em plena época de crise: um sexto da humanidade sofre de má nutrição e 1.020 milhões padecem de fome, pulverizando os números dos anos precedentes e impondo um terrível “record histórico”, (2).
Entre as situações mais graves, subsiste a vivida pela África sub Sahariana, cujos países estão na cauda dos Índices de Desenvolvimento Humano.
No mapa da fome também já publicado, África é colocada bem no centro, tornando a calamidade bem visível, enchendo-nos os olhos.
África, o “continente berço da humanidade”, é o centro da fome da humanidade, o centro da morte prematura e injusta da humanidade!
O Director Geral da FAO, Jacques Diouf, revela que “uma perigosa mistura de crise económica combinada com um incontrolável aumento de preços da alimentação em muitos países, implicou em mais 100 milhões de pessoas que no último ano entraram no ciclo da fome e da pobreza crónica”.
Para ele “a silenciosa crise da fome – afectando um sexto da humanidade – coloca em sério risco a paz e a segurança mundiais”, conclusão essa que o obriga a um dramático apelo: “precisamos urgentemente de forjar um consenso para a total e rápida erradicação da fome no mundo, tomando as necessárias medidas”.
A fome mesmo assim foi reduzida durante a década de 80 e no princípio da década de 90 do século passado, crescendo aos solavancos a partir daí, o que é significativo tendo em conta a evolução global segundo as pistas político-económicas com início no “laboratório” do Chile.
O primeiro solavanco ocorreu entre 1995 e 1997, o segundo ocorreu entre 2004 e 2006, podendo agora estar a ocorrer o terceiro, que chancela de forma muito pessimista a visão estabelecida no virar do século conforme aos Objectivos do Milénio, pelo menos para os primeiros 15 anos do século XXI.
A esses solavancos, só a região da América Latina e das Caraíbas conseguiu dar alguma resposta “contra a maré negativa”, com resistências que se iluminaram com a dádiva de tantos heróis e de tantos mártires, mas mesmo assim há problemas pontuais graves, como acontece por exemplo na Guatemala.
Os dados da análise da FAO provocam um sombrio desalento:
- A fome em cada ano, mata mais pessoas que a SIDA, a malária e a tuberculose juntas.
- A má nutrição impede as crianças de aproveitar plenamente o seu potencial de desenvolvimento físico e mental.
- Em cada seis segundos, morre uma criança em função de causas relacionadas com a fome.
- Passam fome diária 1.020 milhões de pessoas, na sua maioria mulheres e crianças.
Os números dos atingidos por continente são assim discriminados:
- Ásia e Pacífico – 642 milhões de pessoas.
- África sub Sahariana – 265 milhões.
- América Latina e Caraíbas – 53 milhões.
- Médio Oriente e Norte de África – 42 milhões.
Cerca de ¾ dos esfomeados vivem em áreas rurais da Ásia e de África, não havendo para eles alternativas em termos de fontes de rendimento e de ocupação.
Muitas dessas vítimas, alguns prodígios mais fortes, procuram assim atingir as áreas urbanas para escapar ao flagelo, pois aí a sobrevivência apesar de tudo está mais garantida.
Em África, as cidades do litoral são a maior escapatória e algumas delas tiveram um crescimento populacional de tal maneira elevado que acabam por concentrar uma percentagem importante dos habitantes dos respectivos países, que no interior ficaram com população rarefeita.
Essas cidades do litoral ficaram de tal maneira sobrecarregadas, que foi impossível criar infra estruturas e estruturas suficientes para albergar a enxurrada humana, subsistindo em muitas delas graves problemas de urbanização, de habitação, de sanidade pública, de cobertura educacional e médica, o que faz aumentar a marginalidade e o crime…
A maior parte dos recém chegados (quase sempre jovens em busca de oportunidade), perdem em definitivo as referências próprias das culturas ancestrais que lhes assistiram no berço e, nas cidades cosmopolitas, formam um proletariado perdido no espaço e no tempo, previamente condenado pelas tragédias quotidianas de sua precária sobrevivência, onde a solidariedade minguou e sobra a arrogância e o esbanjamento dos poderosos.
Apesar de tudo, a sobrevivência nas grandes cidades do litoral é ainda mais fácil que no ambiente rural e sem horizontes do interior.
Acontece isso em Angola, onde a rarefacção da população nos vastos espaços interiores acompanhou os impactos das guerras, especialmente a última, a “guerra dos diamantes de sangue”.
Julgando no seu alucinado fundamentalismo que os “autóctones” do “interior” constituiriam uma “linha de pressão” suficiente que garantiria a conquista das cidades do “litoral” onde se radicavam os “crioulos”, Savimbi esqueceu-se que o espectro da fome obrigaria à deserção maciça perante os problemas de sobrevivência que iam surgindo, uma deserção precisamente do “interior” para o “litoral”, acabando por criar as condições para o esgotamento físico e humano de sua organização armada e de si próprio.
Esse fenómeno coincidiu também com a dicotomia económica em termos de recursos “dominados” (?) pelos contentores: o governo, ou seja cada vez mais um mero elo da cadeia da exploração das riquezas naturais, controlou o petróleo no litoral, agenciando por essa via seus aliados ávidos de domínio, ele foi o elo da cadeia que controlou os diamantes no interior, particularmente os de origem aluvial nos vales do Cuango e do Cuanza, mas essa escolha acabou por ser decisiva contra ele, que pouco a pouco ficou sem aliados e entregue à sorte típica dum meio eremita, meio pária, perseguido por seus inimigos na vastidão desabitada do leste de Angola.
O aumento da fome em 2009 acompanhou de perto a ruptura do sistema monetário internacional, no que muitos consideram como o eixo da crise.
O “Global Europe Antecipation Bulletin” mantém as conclusões pessimistas de que três avassaladoras ondas ocorrerão a partir do final do Verão de 2009 (3):
”1 – A vaga de desemprego maciço – três datas de impacto que variam conforme os países da América, Europa, Ásia, Médio Oriente e África
2 – A vaga das falências em série – empresas, bancos, imobiliário, estados, regiões, cidades…
3 – A vaga da crise terminal dos Títulos do Tesouro dos EUA, do dólar e da libra e do retorno da inflação”.
(…)
“Estas três vagas não são de facto sucessivas como as vagas monstruosas chamadas "três irmãs", ainda que igualmente destruidoras.
Elas são bem mais perigosas pois são simultâneas, assíncronas e não paralelas. Por isso, o seu impacto sobre o sistema mundial é gerador de desarticulações pois atingem sob diversos ângulos, a diferentes velocidades, com forças variáveis.
A única certeza nesta etapa é que o sistema internacional nunca foi tão fraco e indefeso face a uma tal situação: a reforma do FMI e das instituições de governação mundial anunciada no G20 de Londres permanece letra morta, o G8 parece cada vez mais um clube moribundo em que toda a gente já pergunta para que é que ele pode servir, a liderança americana já não é senão uma sombra de si própria que tenta desesperadamente conservar compradores para os seus títulos do tesouro, o sistema monetário mundial está em plena desintegração com os russos e os chineses, nomeadamente, a acelerarem o seu jogo para se posicionarem no mundo pós-dólar, as empresas não vêem nenhuma melhoria no horizonte e aumentam os seus despedimentos; cada vez mais estados vacilam sob o peso da dívida que acumularam para salvar bancos e deverão enfrentar uma onda de falências a partir do fim do Verão. Tal como os bancos, igualmente, que, depois de terem extorquido mais uma vez o dinheiro dos poupadores crédulos graças ao embelezamento dos mercados financeiros orquestrado nestas últimas semanas, a partir do fim do Verão de 2009 terão de reconhecer que continuam insolventes”.
Outros analistas como Chris Martenson em “Crash Course” fundamentam uma previsão pessimista para a humanidade a um prazo muito maior, (4).
Num autêntico “desespero de causa”, a oligarquia que comanda as operações nos Estados Unidos, sem se preocupar com o aumento geométrico da dívida, concentra os esforços nas actividades que interligam a indústria energética e a armamentista, alcançando os investimentos e os orçamentos números que são um autêntico escândalo:
O orçamento militar dos Estados Unidos para o corrente ano ascende a 651.200 milhões de dólares, um novo “record”, com centenas de programas, 18 dos quais atingindo cada um deles valores superiores a 1.000 milhões de dólares, enquanto mantêm 872 bases militares espalhadas pelas “quatro partidas do mundo” e são responsáveis pela maior fatia de venda de armamento à escala global, (5).
Os Estados Unidos e os seus aliados mantêm a escalada de agressões, que alastraram do Iraque ao Afeganistão e Paquistão, com uma interrogação em relação à evolução da situação para com o Irão.
Da parte de algumas das resistências, particularmente as que despontam na América Latina, as iniciativas contrastantes no sentido da paz multiplicam-se, a assinalar, a golpes de coragem ética e criatividade, o caminho que a humanidade deveria estar a traçar por inteiro, devotadamente.
Ao mesmo tempo que o espectro da fome não se agravou, na América Latina proliferam as campanhas em prol do ensino e da saúde, em prol da melhoria das condições de vida dos povos, como única forma de garantir esperança para todos os povos.
O fecho da base de Manta no Equador sublinha essa tendência, quando do outro lado, por cada base fechada recebe-se a resposta de se abrirem várias outras (6)…
Nos próprios Estados Unidos anacronicamente, perante a oligarquia ultra conservadora, a administração democrata de Barack Hussein Obama está a sentir imensas dificuldades para alargar a assistência em termos de saúde pública a mais de 50 milhões de habitantes pobres, que neste momento estão marginalizados e indefesos, o que exige orçamentos incomensuravelmente inferiores aos que activam a “defesa”, (7).
Em nome dos Não Alinhados e no discurso de abertura da XVª Cimeira recentemente ocorrida no Egipto, o Presidente cessante Raul de Castro evidenciava com a lucidez dos revolucionários que de há 50 anos enfrentam com dignidade o monstro (8):
“Preservar a paz e a segurança internacionais deve seguir sendo uma prioridade fundamental do Movimento.
Permanece como meta pendente e urgente a eliminação total de armas nucleares e outras armas de extermínio em massa.
Estamos longe de alcançar os nossos objectivos nesse âmbito e torna-se necessário seguir trabalhando até atingi-los.
Resulta irracional que ao mesmo tempo que se incrementam vertiginosamente os gastos militares anuais, que já alcançam a cifra aterradora de 1 milhão, 464 mil milhões de dólares, quase 60% concentrados num só país, o número de famintos no planeta se aproxima dos mil milhões.
Os recursos que hoje se destinam à indústria da guerra devem ser utilizados na educação, na saúde e na cultura, no bem estar económico e social de nossos povos.
Para isso necessita-se vontade política e compromisso real.
Torna-se necessária a renúncia aos projectos hegemónicos, a ameaça e o uso da força, o egoísmo e o abuso irracional de uns poucos.
É necessário pôr fim a uma ordem internacional baseada no exercício de pretensões imperiais”.
A fome não desaparecerá do planeta num passo de mágica e hoje sabe-se e avalia-se melhor que antes o que se deve fazer e o que é proibido fazer; torna-se necessário travar fundamentalmente a grande batalha ética nos próprios Estados Unidos, para que o povo norte americano ganhe consciência de suas responsabilidades e de suas obrigações para consigo próprio e para com a vida no planeta.
Até lá, a crise avassaladora, acarretará um panorama sombrio afectando toda a humanidade e a própria Terra.
Martinho Júnior - 19 de Setembro de 2009.
Nota:
- (1) – Pablo Neruda – Odes Elementares – Ode ao Pão – http://jackvina.multiply.com/journal/item/141 ; Odas Elementales - http://www.neruda.uchile.cl/obra/odaselementales.htm
- (2) – FAO – 1.020 milhões de pessoas com fome – http://www.fao.org/news/story/en/item/20568/icode/
- (3) – GEAP nº 37 – http://www.leap2020.eu/GEAB-N-37-est-disponible!-Crise-systemique-globale-A-la-poursuite-de-l-impossible-reprise_a3791.html ; Resistir Info – Crise sistémica global: em busca da retomada impossível – http://www.resistir.info/crise/geab_37.html
- (4) – Chris Martenson – Crash course – http://www.chrismartenson.com/crashcourse
- (5) – Military budget of the United States – Wikipedia – http://en.wikipedia.org/wiki/Military_budget_of_the_United_States
- (6) – ADITAL – EUA deixa base militar de Manta, Equador assume pleno controlo – http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=41256
- (7) – La Jornada – Obama se juega la presidencia con su reforma al sector salud – http://www.jornada.unam.mx/2009/09/10/index.php?section=mundo&article=023n1mun
- (8) – Granma – Intervenção do presidente Raúl Castro na inauguração da 15ª Cúpula do Movimento dos Países Não-Alinhados – http://www.granma.cu/portugues/2009/julio/juev16/Intervencao-Raul-Castro.html
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