segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Guiné-Equatorial – PORQUE VOTEI CONTRA


JUSTINO PINTO DE ANDRADE * – ZWELA ANGOLA

1. Por imperativo de consciência, eu votei contra a vontade da Guiné-Equatorial se tornar membro de pleno direito da CPLP. Mas, vamos por partes. Na realidade, o cidadão Justino Pinto de Andrade não tem direito de voto. Em matéria da admissão de um novo membro da CPLP, quem vota são os Estados, através dos seus mandatários, geralmente Chefes de Estado ou de Governo. E a aceitação é feita por unanimidade, na Conferência de Chefes de Estado e de Governo. Como eu não sou Chefe de Estado, nem de Governo, votei na rua, votei com o povo, votei enquanto cidadão. Dei a minha opinião.

2. O meu voto é um voto rebelde – é a minha tomada de posição, independentemente do meu estatuto pessoal. Ele é a expressão do meu protesto contra a violação de um dos princípios básicos da organização, pois essa organização de Estados, a CPLP, sustenta-se, pelo menos teoricamente, em alguns princípios orientadores, um dos quais assenta no “Primado da Paz, da Democracia, do Estado de Direito, dos Direitos Humanos e da Justiça Social”. Foi o perigo de violação desse princípio que orientou o meu sentido de voto, esta minha manifestação pública.

3. É evidente que a entrada da Guiné-Equatorial na CPLP suscitou ainda outra questão: o facto de ela não ser um país luso-falante. Porém, à última hora, o seu Presidente, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, arranjou um estratagema com o qual conseguiu contornar tal exigência dos Estatutos da organização.

4. Poucos dias antes do início da Cimeira de Luanda, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo decidiu fazer da Língua Portuguesa a terceira língua oficial do seu país, logo depois do Espanhol e do Francês. Assim, levantado o obstáculo da língua, o nº 1 do artigo 6º dos Estatutos da CPLP caiu por terra. Ele diz expressamente: “Para além dos Membros fundadores, qualquer Estado, desde que use o Português como língua oficial, poderá tornar-se membro da CPLP, mediante a adesão sem reservas aos presentes Estatutos.” É claro, a Guiné-Equatorial não usa o português, mas promete vir a usá-lo, além das outras duas línguas.

5. Na realidade, foram os portugueses os primeiros navegadores europeus a chegar, em 1471, ao território que hoje constitui a Guiné-Equatorial – procuravam eles a rota marítima para a Índia. Então, acharam a ilha de Bioko, a que depois chamaram Ilha Formosa, e também Fernando Pó. A ilha de Bioko, e as ilhas de Ano Bom e Corisco foram transformadas pelos portugueses em praças de tráfico de escravos, bem no coração do Golfo da Guiné.

6. Em 1641, os holandeses, tal como aconteceu com outros territórios sob domínio português, também se apoderaram da ilha de Bioko. Fizeram isso com Luanda, depois da queda em Portugal do domínio dos reis Filipes de Espanha. Em 1648, e à semelhança de Luanda, a Ilha de Bioko, assim como as restantes ilhas do Arquipélago voltaram a ser colocadas sob domínio português, condição em que permaneceram até ao ano de 1778, altura em que Portugal as cedeu à Espanha. Para além da parte insular, a Guiné-Equatorial possui ainda uma parte continental chamada Riu Muni, situada entre o Gabão e os Camarões.

7. Quer com isto dizer que, do ponto de vista histórico, houve, sim, um contacto da Guiné-Equatorial com a língua e a cultura portuguesas. Poderão, pois, ter restado ainda ténues reminiscências desse contacto, que justifiquem alguma nostalgia da língua e da cultura desaparecidas. Mas, depois, impôs-se o espanhol. A presença da língua francesa como língua oficial deve-se, sobretudo, às ligações fronteiriças que a Guiné-Equatorial tem com o Gabão e os Camarões – países francófonos – e a uma presença remota dos franceses nos seus territórios, também por ocasião do tráfico negreiro.

8. Portanto, o que foi determinante para o meu voto de protesto, para o meu voto rebelde, para o meu voto na rua contra a entrada da Guiné-Equatorial na CPLP, não é propriamente a questão da língua. É, sim, a evidente vontade daquele regime ditatorial branquear-se, depois que se enriqueceu com as volumosas receitas do petróleo. O velho ditador pretende agora aparecer travestido com uma roupagem democrática, sem ter, contudo, alterado a sua essência. E como os interesses é que contam, a entrada na Comunidade de um país rico em petróleo – mais um – até dá jeito: aumenta a impressão de se que trata de um projecto sério e viável.

9. O presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasogo está no poder desde 1979, quando derrubou, por golpe de Estado, o anterior presidente, o seu tio Francisco Macias Nguema. Na altura, prometeu pôr fim aos crimes praticados pelo tio, durante os 10 anos que governou o país. O tio assassinara milhares de populares e opositores. Calcula-se em dez por cento da população o número dos desaparecidos durante o regime de Macias Nguema.

10. Teodoro Obiang Nguema julgou o tio e executou-o. De seguida, impôs ao seu povo uma das ditaduras mais ferozes do nosso continente. Todo o mundo lhe apontou o dedo, e ninguém o recebia nos seus países. Era tido como um pária internacional. Nenhum Chefe de Estado queria ser fotografado ao lado de tão repugnante figura.11. Há dias, li que Lula da Silva, de visita à Guiné-Equatorial, além da assinatura de vários acordos, esteve à fala com Obiang Nguema sobre democracia. Como não estive presente, não posso dizer como foi tal diálogo. Mas posso imaginar “a cara de pau” de um ditador a falar de democracia… É preciso ter muita lata!…

12. Com os proventos da exploração do petróleo, Teodoro Obiang Nguema, a sua família e o grupo restrito de seus seguidores tornaram-se verdadeiros nababos. A revista Forbes cataloga-o como o 8º governante mais rico do mundo, mesmo que dirija com punho de ferro um dos povos mais pobres do mundo. Para prosseguir o saque, aproveita-se de todas as circunstâncias para reprimir a oposição e limpar do caminho quem o apoquenta.

13. Com o dinheiro do petróleo, Teodoro Obiang Nguema pretende criar nova imagem, para exibi-la a nível internacional. Por isso, tentou fazer passar à UNESCO a ideia da instituição de um “Prémio Internacional para a Pesquisa Científica sobre a Vida” que, claro, levaria o seu nome. Vaidosamente, ele financiaria o projecto. In extremis, e fruto do alerta internacional dado por organizações cívicas, tal proposta foi rejeitada, pois a UNESCO não pode ver o seu nome associado ao de um dos ditadores mais desprestigiados de África e do Mundo. Mas, a Guiné-Equatorial exerce uma enorme sedução sobre vários países e, sobretudo, no sector empresarial.

14. A capacidade de sedução desse “Kuwait africano” ficou agora bem visível nas hesitações de alguns dos líderes dos países da CPLP, mais interessados em materializar a primeira parte da alínea b) do artigo 3º dos seus Estatutos, que se refere expressamente à cooperação no domínio económico. Foi isso o que motivou verdadeiramente tais líderes, assim como os interesses empresariais que os suportam. Para eles, tudo o resto é ornamento: são flores, são sorrisos, são abraços de circunstâncias. Esses líderes atiraram para o caixote do lixo os valores e os princípios orientadores dos Estatutos da CPLP, que estão ali apenas para fazer charme, para lhes dar um formato bonito e moderno – como mandam “as boas regras”. Para eles, Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos são expedientes de ocasião. Não são cultura, não são prática, não são desígnio. Ponto final. Estamos entendidos.

15. Tem, pois, razão este meu voto feito na rua, o meu voto de protesto, um voto que eu materializei ao ser uma das 13 personalidades lusófonas que subscreveu a “Carta Aberta” que foi enviada aos Chefes de Estado da CPLP. Além de mim, Justino Pinto de Andrade, assinaram também essa “Carta Aberta”, por exemplo: o escritor moçambicano Mia Couto, o Bispo timorense de Baucau, Dom Basílio do Nascimento, a Elisa Andrade e o músico e escritor brasileiro Chico Buarque de Hollanda, a académica e ensaísta são-tomense Inocência Mata, o cantor da Guiné-Bissau Manecas da Costa, o Bispo Dom Januário Torjal Ferreira, Frei Carlos Alberto Libânio Christo (o “Frei Beto”), e o escritor Eduardo Lourenço, todos os 3 de Portugal. Ao todo, 13 personalidades que ainda têm os valores éticos e morais como referência. Nós damos o devido valor aos princípios democráticos, mesmo que assumamos que os interesses dos Estados não são matéria desprezível.

16. A rejeição temporária de entrada da Guiné-Equatorial na CPLP diz-se ter sido inspirada por Portugal, país que terá proposto uma metodologia para a aceitação de novos membros efectivos similar à que vigora na União Europeia. Nessa empreitada, Portugal foi secundado por Angola.

17. Foi bom a aplicação dessa medida de contenção, uma medida que obriga os candidatos a membro efectivo a resolverem, previamente, uma série de questões, sobretudo no domínio do Regime Democrático, no respeito pelo Estado de Direito e a garantia de fidelidade à defesa dos Direitos Humanos.

18. Essas questões ainda são muito questionáveis em países como Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, por exemplo. Mas estes são Estados membros, até mesmo Estados fundadores da organização. Eles gozam, portanto, de um estatuto privilegiado, ao estarem já dentro da CPLP. Não são candidatos a membro.

19. Penso que a problemática da entrada da Guiné-Equatorial poderá servir para se repensar a verdadeira vocação da CPLP. Que tipo de Comunidade a organização persegue: Será um qualquer modelo de integração? Não acredito que o seja. Será a CPLP apenas um palco de concertação política e diplomática, para facilitar a tomada de determinadas posições comuns na arena internacional? Será uma via para a promoção da língua portuguesa e de culturas afins? Será um mecanismo de protecção dos interesses de cidadãos de uns países dentro dos outros países membros? Será um expediente para a facilitação da promoção de negócios?

20. De uma coisa tenho eu desde já a certeza: A CPLP não visa a criação de uma Comunidade de Estados, com circulação livre de bens, capitais, pessoas, com instituições políticas supra-nacionais decorrentes da partilha de soberania – pois estão em construção outros espaços de integração muito mais adequados a este objectivo. A CPLP é uma coisa que poucos ainda saberão o que poderá a vir a ser.

21. Espero, porém, que a CPLP não funcione como um mero desígnio ajustado à medida dos novos anseios da velha potência colonial. Ou então, que ela sirva tão-somente para a realização das ambições da potência hegemónica emergente que é o Brasil – um país apostado em surgir na arena internacional como o chefe-de-fila de um conjunto de países individualmente sem grande expressão, e que, para se afirmarem, necessitam de agir de uma forma concertada. Para mim, depois do “caso Guiné-Equatorial”, a discussão será mais aberta.

Artigo publicado no blog de: Justino Pinto de Andrade

* Analista politico angolano

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