segunda-feira, 21 de março de 2011

OPÇÃO PELO INFERNO

.

MARTINHO JÚNIOR

Uma vez mais a lógica capitalista que prevalece sobre a humanidade foi utilizada pelos poderosos na pior das opções: aquela que deriva para o inferno na Terra e contra o sentido de vida que se consubstancia na vontade de amor, de dignidade, de justiça, de equilíbrio e de paz para com os povos e com todos os povos do planeta.

O capitalismo é de há muito incapaz de ética e de moral e o caso líbio corrobora o que tem sido comprovado desde o início da revolução industrial: os poderosos evocam a favor de sua intervenção o respeito que Kadafi deveria ter para com o seu próprio povo, “protegendo os civis”, quando em parte alguma do Iraque e do Afeganistão, à mercê das aventuras militares eminentemente anglo-saxónicas, isso se tem registado.

As coligações de forças da OTAS, norte americanas e de outras origens, nos Balcãs, no Iraque, no Afeganistão, tal como em muitos outros lugares da Terra, nunca respeitaram os “civis”.

Quando escrevi “Salvar a Líbia” não tinha dúvidas que, quaisquer que tivessem sido os benefícios que Kadafi tivesse trazido para o crescimento estrutural do seu país e para as corporações multinacionais do petróleo e seus mentores, seria como Mubarak, ou Ben Ali, mais um expediente “descartável”… de “usa e deita fora”… (1)

Foram muitos esses benefícios, num país em que o deserto persistia e moldava a cultura e a sociedade dos beduínos de então: convido-os a instalar o Google Earth nos vossos computadores e, explorando esse instrumento da Internet, a percorrer uma a uma as cidades líbias do litoral mediterrânico onde se concentra a esmagadora maioria da população, verificando estradas, portos, construções, refinarias…

Enveredar contudo pela lógica capitalista como uma fórmula de criar as elites nacionais e mantê-las agarradas ao carácter conservador e arcaico do seu poder, foi quanto a mim um dos erros estratégicos do próprio Kadafi e daqueles que o cercam, principalmente ao longo dos últimos vinte anos (o tempo de maturidade dos seus próprios filhos).

As elites, bem como o seus sistemas de clientela, formatadas pelo capitalismo em tempo de globalização neo liberal em África, só terão algum descanso quando as manipulações típicas da “engenharia social” originadas pelo império, implantarem os vínculos e as cosméticas que constituem o carácter das “democracias representativas” que, correspondendo aos seus interesses e conveniências, fragilizarão a razão de ser de sua própria identidade original, tornando-as cada vez mais adversas aos interesses nacionais e estrategicamente adversas aos interesses dos seus próprios povos.

A lógica do lucro, em muitos dos sentidos o lucro fácil da corrupção, da especulação e da arrogância do poder, encarregar-se-á disso.

O exemplo dos 200 anos de independência da América Latina não deixa qualquer margem para dúvidas, não só para África.

Esse é um erro porém que pesa mais sobre quase todo o continente africano, onde as elites foram forjadas na lógica capitalista, (inclusive naqueles países onde houveram movimentos de libertação modernos e fortes): essas elites são susceptíveis de, mais cedo ou mais tarde, correrem o mesmo tipo de riscos que estão a enfrentar aqueles que se agarraram a estruturas conservadoras, ditatoriais, de poder republicano face aos levantamentos, esquecendo-se que é assim que se “salvam os reis” e é assim que a hegemonia continua controlando com um cálculo que resulta do seu imenso poder, como um condor inteligente na sua vocação de rapina, o que se está a tornar cada vez mais estrategicamente suculento na Terra, o petróleo e as riquezas minerais. (2)

O outro erro estratégico, em relação a pelo menos uma parte do seu próprio povo, advém desse pecado original: foi, sem se ter constituído num verdadeiro poder revolucionário galvanizador de iniciativas e de vontades mesmo perante os maiores sacrifícios, não ouvir, nem interpretar algumas das suas convicções e emoções, tendo em conta o risco de manipulações com engenharias e arquitecturas que lhe fugiam ao controlo, particularmente na atenção que é obrigatório ter-se para com a juventude e todos aqueles que se tornem mais ou menos marginalizados pelo sistema e pelo regime.

O diálogo, para além do que ele se qualifica por via legal, mesmo em termos de “democracia representativa”, é imprescindível, até por que os impactos de crescimento implicam mexidas profundas nas estruturas, nas culturas e nas sociedades contemporâneas, particularmente no Terceiro Mundo e os dinamismos sociais geram fenómenos que é preciso saber interpretar e acompanhar.

Duma maneira ou de outra Kadafi está hoje a pisar as minas e armadilhas que ele próprio, a partir de uma determinada altura, (particularmente quando fez a “mudança de campo”), contribuiu para semear.

O regime de Kadafi (e isso no quadro da lógica capitalista é um benefício que ele soube gerir) manteve contudo de pé muitas dos feudos que advêm do passado, com profundas implicações na sociedade líbia, apesar do crescimento económico e das iniciativas estruturais geradas ao longo dos últimos 40 anos.

Essa base tribal de mobilização é hoje o garante do facto duma parte do povo líbio estar ainda com Kadafi, por que é nessa base que assenta o clientelismo que roda à volta das elites nacionais que dão substância ao seu poder.

Os seus opositores não romperam por seu turno com essa base tribal de mobilização pelo que a fractura eleva-se dos dois bastiões principais: enquanto a maioria do povo aparenta estar com Kadafi em Tripoli (a ocidente, próximo da fronteira com a Tunísia), em Bengazi (a oriente, próximo da fronteira com o Egipto) ela aparenta estar com os agrupamentos rebeldes.

Por isso mesmo as manifestações contra Kadafi distinguiram-se desde logo das manifestações que têm eclodido por grande parte das outras nações árabes: alçando a bandeira duma monarquia que era a seu tempo submissão colonial, os rebeldes surgiram do vazio com armas, com meios, com capacidade letal que só tem uma origem, a dos mesmos interesses que deram azo à manipulação do Conselho de Segurança da ONU e hoje promovem as acções militares em território líbio.

A sociedade líbia está agora dividida e o sangue derramado, evocado pelos dois campos, tornou-se um obstáculo adicional em qualquer tipo de luta pela paz perseguindo a via do diálogo.

Dum lado está um poder rebelde que até pela bandeira evoca sinais de absoluta submissão à hegemonia, um poder que rejeitou a efémera iniciativa de paz proposta por Hugo Chavez e pela ALBA, que agradece a intervenção por que dela depende em parte sua sobrevivência e empenho e que do passado nada relevante pode evocar…

Do outro está um regime que, malgrado as grandes realizações em termos de crescimento, não teve a vontade absoluta de colocar o homem no centro de todas as suas atenções e prioridades…

A opção pela lógica capitalista, sacrificando cada vez mais os povos e neste caso o povo líbio, trouxe a África e ao Mundo outro exemplo do que é a sua essência: a opção pelo inferno. (3)

Martinho Júnior - 20 de Março de 2011.

Notas:
- (1) – Salvar a Líbia – Martinho Júnior – Página Um –
http://pagina--um.blogspot.com/2011/03/salvar-libia.html
- (2) – Castas das Arábias – Martinho Júnior – Página Um –
http://pagina--um.blogspot.com/2011/03/castas-das-arabias.html
- (3) – Iraque, Iraque, 75 anos depois – Martinho Júnior – Página Um –
http://pagina--um.blogspot.com/2011/03/iraque-iraque-75-anos-depois.html
.