domingo, 3 de outubro de 2010

Portugal - PODE ESTAR DE VOLTA O ZÉ POVINHO

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ANA PAULA CORREIA – JORNAL DE NOTÍCIAS - 03 outubro 2010

Alerta de risco de uma sociedade desistente comum povo que refila mas nada faz, permeável à crença na primeira fé que lhe apresentem

Os "superiores interesses da nação" sustentaram o apelo do presidente da República para o entendimento para a viabilização do Orçamento do Estado para 2011. E poderá ser esse o argumento do PSD para evitar uma crise política, viabilizando a proposta que o Governo, embora tentando ganhar na neutralização do aumento da carga fiscal e imputando ao PS o ónus da crise económica. É nisso que aposta José Sócrates.

Joga póquer com a sua própria demissão mas é uma cartada de risco calculado. O primeiro-ministro está convencido de que deixou Passos Coelho cercado pelas suas próprias condições prévias para viabilizar o Orçamento do Estado (OE), ao avançar com o anúncio de cortes brutais na despesa do Estado. Incluindo no pacote da austeridade a redução dos salários da Função Pública, Sócrates poderá ter falado com os seus botões sobre o efeito surpresa que terá causado ao líder do PSD.

Neste quadro, a previsão da viabilização do OE começa a ser consensual. Mas significa isso que os tais interesses da Nação ficam defendidos e salvaguardados? Nem de longe. Observadores atentos da realidade portuguesa situados em áreas profissionais e políticas diversas revelam ao JN uma visão pessimista do futuro próximo.

Falta verdade e seriedade ao discurso político. Sem isso, quem pode perceber o sentido de cada um de nós fazer sacrifícios, de perder parte do salário? Sem ver resultados, quem está disponível para se empenhar no posto de trabalho, nas actividades sociais ou em prol da comunidade?

Questões retóricas que ficaram das opiniões de quem analisa o caminho que Portugal está a seguir. Um percurso que alguns prevêem penoso sem que se vislumbrem laivos de esperança. Pelo contrário, a crise social é um risco real.

O pior que pode acontecer ao país é a "desmobilização anímica que pode ter duas consequências: o desinvestimento e o ressentimento". E nenhum destes estados de alma permite uma visão optimista do futuro. A primeira resulta numa sociedade apática e desistente, a segunda conduz a comportamentos agressivos e violentos.

O retrato traçado pela reflexão de Albertino Gonçalves, sociólogo comportamental da Universidade do Minho. Ao JN, o investigador diz estar convencido de que haverá Orçamento do Estado, sem crise política. "O que existe é uma novela que se arrasta há anos e que agora transformou-se num drama, que tem um enredo que não faz sentido". Palavras escolhidas para significar que os portugueses não sabem por que razão são obrigados a fazer sacrifícios.

Os políticos têm "discursos palacianos, falam uns para os outros de forma maneirista e sem conteúdo substantivo". Não é, na opinião do sociólogo, uma retórica esclarecedora da realidade. E qual é a realidade? Os cortes de salários e a redução da despesa do Estado servem para quê?

"Para alimentar a especulação financeira que nos cobra juros elevados". A resposta é do economista José Reis, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Sem dúvidas de que o OE será aprovado, "porque o PSD teve mais do que exigiu". José Reis tem também uma visão muito crítica do discurso político, que "chegou ao grau zero". Aliás, actualmente, "os políticos são, à escala europeia, pouco mais que um instrumento de concretização e de legitimação do capitalismo de pilhagem".

Risco de desistência e de crise social

O caminho, que não passa pelo OE que o Governo está a preparar. Deve ser, na opinião de José Reis, o do regresso à Economia, "como sistema social de provisão e de uso de bens e serviços". Para isso, "seria aceitável e valeria a pena a austeridade". Essa austeridade "poderia passar pelo aumento da carga fiscal, desde que ela fosse aplicada nos impostos directos, que permitem estabelecer uma justiça social e a equidade".

"É importante que eu saiba que, quando pago determinado valor de imposto, quem tem menores rendimentos que eu paga menos e que quem tem maiores, paga mais. E que as empresas não pagam mais do que a Banca. E está a acontecer o contrário disto. Se o rumo continuar a ser este, há risco sério de crise social, uma vez que a exclusão está directamente relacionada com o desemprego e sem a economia a funcionar não haverá mais emprego". Fica o aviso do economista.

Com esse risco de crise social no horizonte, voltamos à visão do sociólogo e a novo alerta de perigo. "A prazo, as pessoas desistem de se empenhar e desistem de reagir e de acreditar. E um povo desistente, acredita na primeira fé que lhe for apresentada. Os fundamentalismos estão aí, à espera da oportunidade".

Há mais de uma centena de anos, Bordalo Pinheiro definiu, assim, o seu famoso boneco a fazer um manguito: "O Zé-povinho olha para um lado e para o outro e fica... como sempre... na mesma". Uma caricatura do povo português, no final da monarquia, revoltado pelo abandono e esquecimento da classe política, mas pouco ou nada fazendo para alterar a situação.

Agora, Albertino Gonçalves adverte que o grande desafio dos políticos "deveria ser o de não permitir que o povo volte ao Estado do boçal, mas passivo, Zé-povinho".

Mas não parece ser essa a preocupação que reflecte o discurso político.

"Ganhem consciência, mexam-se"

Ainda sem manguitos, mas com muita revolta nas palavras, o social-democrata Vasco Graça Moura contesta a "aldrabice permanente do actual Governo" e confessa que gostaria muito de ver o PSD a rejeitar o OE. Mas não é esse o cenário que prevê.

O antigo secretário de Estado da Cultura de um governo de Cavaco Silva também não gostou do apelo do presidente da República ao entendimento para a viabilização do OE. Compreende-o, embora, "só por imperativo institucional".

Desafiado pelo JN a desenhar um caminho alternativo que evite que o país "se torne num protectorado da Europa ou numa região espanhola", Vasco Graça Moura reconheceu que "não há saída". Pelo menos, enfatizou, "enquanto o eleitorado português continuar a ser analfabeto e o mais estúpido da Europa num país que não quer trabalhar".

Às frases peremptórias e definitivas que proclamou sobre os portugueses que votam, o político, que já foi eurodeputado e que actualmente não tem cargos no PSD, juntou a justificação para a sua indignação: "Vota-se em quem pinta o futuro de cor-de-rosa e não em quem nos que revela a realidade negra".

Menos zangado mas igualmente céptico, o empresário Henrique Neto, um socialista afastado da militância partidária, também não tem dúvidas de que o Governo vai conseguir levar a água ao seu moinho na aprovação do Orçamento de Estado.

"Por isso, a recessão vai aumentar, a economia não vai crescer e não está no horizonte nada que permita não concluir que o país vai empobrecer". Para fazer esta síntese, Henrique Neto diz não precisar de usar artes de "bruxaria", nem para adivinhar que se vai manter "a cultura do golpe", quer seja na máquina do Estado ou nas empresas.

E porque a solução é política, Henrique Neto quer ver no poder sinais de competência, clareza e de verdade, "porque o país não aguenta mais asneiras". O rosto que revele esses sinais não pode ser o de Sócrates. "Porque ele nem sequer aceita que existem problemas". Sem esperança que o debate em torno das próximas presidenciais eleve a qualidade do discurso político, Henrique Neto não quer, contudo, transformar-se num pessimista. É por isso que deixa um conselho aos portugueses: "Ganhem consciência e mexam-se!"

"Sócrates não pode fugir das explicações"

Pedro Adão e Silva, outro socialista que se dedica ao comentário político, mas também afastado do aparelho do PS, "sabe" que o PSD "só pode viabilizar o OE, porque Pedro Passos Coelho está cercado pelo presidente da República que, como candidato à reeleição, quererá ganhar os louros de ter contribuído para a estabilidade política, pelo Governo que satisfez as suas exigência e pelo mundo financeiro, que não lhe perdoaria uma crise".

O Governo, no entanto, não é poupado a críticas. "Sócrates não pode continuar a fugir das explicações que tem de dar ao país sobre a execução orçamental. O que falhou para que seja preciso avançar com estas medidas tão duras? É a pergunta que tem de ter resposta para que as pessoas possam perceber que vale a pena o esforço. A transparência tem de ser a regra, e não tem sido".

No futuro imediato, os ganhos políticos irão, na opinião de Adão e Silva, para Cavaco Silva, como candidato a Belém. "Com o apelo ao consenso, afasta-se do PSD, não antagoniza o PS e pode continuar a puxar dos galões do economista que sabe da gravidade da situação financeira do país".
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