terça-feira, 23 de novembro de 2010

SEMEANDO TEMPESTADES - III

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MARTINHO JÚNIOR

AMÉRICA LATINA… E ÁFRICA!

Enquanto África, conforme o lastro inqualificável da Somália, continua a ser em muitos aspectos, como teve um dia a coragem de sintetizar António Agostinho Neto, "aquele continente inerte onde cada abutre vem depenicar o seu pedaço", eis que a América Latina se une e levanta, num esforço singular contra uma lógica avassaladora secularmente imposta, que conduz à morte antecipada de centenas de milhões de seres humanos e tem causado profundos desequilíbrios à pequena nave que garante a vida, a Terra. (1)

Uma das personalidades internacionais que melhor sintetiza o esforço latino americano no sentido dum universo emancipador de tendência multipolar, é o filósofo norte americano Noam Chomski, que numa entrevista recente ao La Jornada do México, traduzida pelo Carta Maior do Brasil, refere:

"A América Latina é hoje o lugar mais estimulante do mundo.

Pela primeira vez em 500 anos há movimentos rumo a uma verdadeira independência e separação do mundo imperial.

Países que historicamente estiveram separados estão começando a se integrar.

Esta integração é um pré-requisito para a independência.

Historicamente, os EUA derrubaram um governo após outro; agora já não podem fazê-lo". (2)

Os estados latino americanos que estão na linha da frente do aprofundamento democrático mediante um processo de revolução institucionalizada compõem a ALBA, mas contagiam pela via da integração económica no espaço geo estratégico do sul, outros estados como o emergente Brasil, a Argentina, o indeciso Chile que dentro em breve vai a eleições…

O sentido filosófico da resposta Latino Americana roda em torno da vida, da paz com qualidade social, do aprofundamento da democracia, da solidariedade, da educação, da saúde, da diminuição dos desequilíbrios, tirando partido de forma inteligente e criativa do elevado grau de insegurança que de há 200 anos nutre o domínio das oligarquias egoístas que perfilham a lógica capitalista, oligarquias essas "emparceiradas" com os omnipresentes interesses consubstanciados na política imperialista dos Estados Unidos, dos aliados ocidentais e da presença das corporações multinacionais e de instituições como o Banco Mundial, o FMI e a OMC, que constituem a essência da "intervenção".

A resposta é uma tentativa de socialismo que bebe das antigas raízes antropológicas e históricas do continente, quanto a partir do fresco húmus neo liberal e social liberal, conforme outro filósofo norte americano atento.

James Petras, em "América Latina: o fim do liberalismo social", conclui assim a propósito:

"A actual recessão mundial e a potencial recuperação de alguns países revela todas as fraquezas das tradicionais doutrinas das vantagens comparativas, o "mercado de exportação", o livre comércio. Em nenhum outro lugar isto é mais evidente do que na experiência recente da América Latina.

Apesar de recentes levantamentos populares e da ascensão de regimes de centro-esquerda na maior parte dos países na região, as estruturas económicas, estratégias e políticas prosseguidas seguem as pisadas das suas antecessoras, particularmente em relação às práticas económicas com o estrangeiro.

Influenciada pela procura acentuada e a subida dos preços das commodities, especialmente produtos agro-minerais e de energia, os regimes latino-americanos, recuaram em relação a quaisquer mudanças em várias áreas cruciais e adaptaram-se às políticas e económicas legadas pelos seus antecessores neoliberais. Em consequência, com a vasta recessão mundial principiada em 2008, eles sofreram um declínio económico agudo com graves consequências sociais.

As crises socioeconómicas resultantes proporcionam lições importantes e reforçam a noção de que mudanças estruturais profundas no investimento, comércio, propriedade de sectores económicos estratégicos são essenciais para o crescimento sustentado e equitativo".

Para ele, em conclusão, não haverá outra solução teórica e prática senão seguir a via alternativa dum novo modelo de socialismo identificado com a vida:

"No reconhecimento das vulnerabilidades e da volatilidade jaz o fundamento para uma transformação estrutural completa com base em mudanças na posse da terra, nos padrões comerciais e na propriedade de indústrias estratégicas.

A crise actual desacreditou tanto as receitas neoliberais como sociais-liberais e abre a porta para um novo pensamento que liga despesas sociais com propriedade social". (3)

A América Latina rebelde, abandonando as armas mas apegando-se à paz que advém da coerência lógica da própria vida, "inaugurou" o conceito alargado que abarcam as novas "indústrias da paz", um conceito que nunca as oligarquias envoltas no seu labirinto puseram alguma vez em prática: pela primeira vez na sua história, sucedem-se as nações livres do analfabetismo, as nações que de forma abrangente garantem cada vez mais saúde para todos, as nações que encetam a integração viabilizando as trocas comerciais em benefício exclusivo do sul, com uma quota parte de integração e de solidariedade nunca antes experimentada com tanta amplitude.

As oligarquias por exemplo, alimentaram sempre a ideia que era o turismo a "indústria da paz, privilegiando como é óbvio as elites, as únicas que têm acesso à viagem dentro ou fora das fronteiras, em função de sua capacidade de aquisição.

Essa mentira, essa manipulação, essa ambiguidade da "indústria da paz" caiu por terra, como estão a cair muitos conceitos da lógica capitalista que não garantem mais viabilidade democrática, nem sustentabilidade sócio – política – económica.

"Indústrias de paz" como a alfabetização alargada, a saúde social, a batalha contra a cegueira, o petróleo barato e acessível a nações com parcos recursos, são ética, moral e economicamente incomparáveis se comparadas com os ridículos resultados do turismo dos privilegiados.

A febre de alfabetização correu Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua, Argentina e outras nações, como El Salvador, aprestam-se para enfrentar o desafio.

A Venezuela multiplica as "Misión Barrio Adentro", implantando um novo sistema de saúde e dando o exemplo.

As "Operación Milagro", que preenchem o combate às enfermidades dos olhos humanos que dramaticamente se tornaram comuns nas elevadas altitudes dos Andes, multiplicam-se.

As nações e os estados Latino Americanos que se abrem ao aprofundamento da democracia utilizando a trilha das eleições propiciadas pela oportunidade da "representatividade", rompem pouco a pouco com a viabilidade das oligarquias no exercício do poder, isolando-as nos seus interesses mesquinhos e remetendo-as à oposição irremediável, ainda que em muitos casos feroz, conforme o caso paradigmático das Honduras. (4)

Do lado dessas nações e desses estados, a oportunidade é para a transparência em tempo real e um flagrante exemplo disso foi um dos últimos exercícios públicos da Unasur, em Bariloche, na Argentina.

Perante a instalação de sete bases norte americanas na Colômbia as nações e os estados levaram o assunto a uma reunião aberta, difundida em quase todo o espaço latino americano, onde ficaram bem demarcadas as águas entre aqueles defensores reais do imperialismo, com todo o cortejo de imposições dramáticas na direcção da guerra e aqueles que advogam a construção efectiva da paz social para todos os povos da Terra. (5)

Os heróis e os mártires latino americanos revivem, desde Marti, a Bolívar, a Che Guevara, para citar apenas alguns e as suas ideias voltam a ser lembradas, estudadas, confrontadas com a realidade e, alimentando a consciência rebelde, duma rebeldia que não faz o jogo do imperialismo que só tem como alternativa o recurso ao domínio e às armas, servem à construção da paz dos povos e para os povos.

Privilegia-se a resistência popular e, nesse aspecto, nações que estiveram subjugadas durante tantos tempo como as Honduras, de repente tendem a "dar o salto" para patamares de luta nunca antes experimentados, ainda que não recorrendo às armas, nem ao legítimo direito de resposta perante métodos só conhecidos com as ditaduras latino americanas e africanas de tão má memória.

Em contraste, a cada governo que a oligarquia "ganha", como o caso do Panamá, o recurso às bases norte americanas parece ser a única alternativa para suster a enxurrada do avanço do interesse dos povos e manter o domínio das oligarquias constituídas em minorias quantitativamente inexpressivas, mas poderosas nos meios que detêm. (6)

Outra das alternativas, é o recurso a entidades que estão capacitadas para aproveitar as tensões, os conflitos e as guerras para extrair lucros privados em benefício de elites, oligarquias e cleptocracias sem escrúpulos.

A Colômbia é um caso paradigmático na América Latina, com seu cortejo de gangs envolvidos na droga, sues "paramilitares" e grupos de "prestação de serviços", aptos a desempenhar desde operações de rotina a operações especiais, numa "ementa" variada e "criativa", ainda mais "criativa" com a presença directa de entidades privadas israelitas experimentadas nos contenciosos da Palestina, do Líbano e do Médio Oriente.

A longevidade da "crise" colombiana serve às mil maravilhas a essa mescla de interesses muitos deles criminosos e os lucros advêm das potencialidades neo liberais dessa mesma "crise".

O "modelo" tornou-se "exportável"e ao mesmo tempo serve de "cadinho" a novos conceitos, inclusive aos mais aberrantes conceitos que preenchem o espectro de "baixa intensidade" do conflito com novas versões tecnológicas de permeio.

Mesmo assim, para garantir a extracção de lucros da "crise – conflito", é necessária a ossatura geo estratégica das bases norte americanas.

Nas Honduras os golpistas enveredaram pelo mesmo "diapasão", respirando do "oxigénio" da ambiguidade e da mentira norte americana e a manutenção "acima de qualquer suspeita" de Soto Cano – Palmerola.

A "difusa" doutrina Obama serve às mil maravilhas a este "modelo" e essa é a razão subjacente do Nobel que tão "prematuramente" foi outorgado a Barack Hussein Obama.

Por exemplo:

Ao anunciar aos quatro ventos o contínuo "combate à droga", abre-se caminho a uma miríade de iniciativas preenchidas pelos interesses das oligarquias e elites que, integrando os "pacotes"de "difusão das medidas", extraem lucros colossais do pântano das situações que se desenvolvem em cadeia e até ao infinito, algumas delas "progredindo" em razão geométrica.

O Pentágono, ao disseminar por outro lado as "missões partnership" contribuem veladamente para a montagem da psicologia persuasiva, pois são os militares e "seus afins" que preenchem "missões de paz" que desembarcam de "deslumbrantes" unidades navais de desembarque "multifunções", que nenhuma nação do "Terceiro Mundo" possui.

A "injecção programada de paz" nesses termos é levada a cabo para que se "mercenarize a guerra" como se "mercenariza a paz" e não pode ser para as elites, para as oligarquias e para as cleptocracias de outra maneira, pois a paz é feita da proliferação de desequilíbrios, de injustiças sociais cada vez mais profundas e há que acautelar as tensões e conflitos larvares que vêm daí.

Torna-se imperioso responder com as "indústrias da paz alternativas", enquanto processo inteligente, criativo e participativo que visa "secar esse pântano".

A educação e a saúde alternativas vão no sentido de ganhar consciência sobre esses fenómenos e criar a partir de eleitorados alargados que buscam pela via da participação e da dignidade, dar-lhes as exaustivas respostas que merecem os "warlords".

O poder dos "paramilitares" no mundo é já de tal ordem que eles treinam até novos exércitos de conveniência cnforme está a acontecer no caso também paradigmático da Libéria no outro lado do Atlântico, onde a DynCorp foi contratada para o efeito pelo Departamento de Estado em cobertura do Pentágono, cumprindo com os objectivos da deliberadamente "difusa" USAFRICOM.

A América Latina começa a ser o único continente onde, apesar das crises derivativas do capitalismo neo liberal após a época "inaugurada" com a terrível experiência do Chile de Pinochet e dos "Chicago Boys", a esperança continua a vencer o medo e a letargia dum subdesenvolvimento crónico imposto pelo imperialismo e suas emparceiradas minorias cristalizadas nos processos históricos de há 200 anos a esta parte.

É também o único continente onde a mentira, a manipulação e ambiguidade podem ser derrotadas em "tempo real", através de processos pacíficos, bastando a publicidade directa, não havendo mais garantia de imposição do "pensamento único" que até há pouco era apanágio da hegemonia.

A América Latina é um exemplo que África deve estudar, aproveitando para aprofundar o relacionamento sul – sul, tendo em conta as possibilidades que se passaram a oferecer após a reunião na ilha Margarita.

África é um continente sedento de paz social, sedento de justiça social, sedento de educação, de saúde, de equilíbrio, de solidariedade e o caminho que se começa a abrir paulatinamente nesse sentido a partir do esforço pioneiro da América Latina, é por si um caminho de paz, que foge obrigatoriamente ao recurso às armas, mas se abre à "batalha das ideias" e ao aprofundamento dos conceitos de democracia, em direcção à participação e à cidadania consciente, crítica, rebelde e responsável.

Que África aprenda com dignidade e paciente perseverança, a evitar as mesmas armadilhas que a América Latina experimentou nos dois últimos séculos, arrepiando caminho da direcção que tem vindo a tomar após a luta pela independência de suas nações e com vista ao aprofundamento da libertação de todos os seus povos!!!

Martinho Júnior - 11 de Outubro de 2009

Notas:
- (1) – Instituto Cubano de la amistad con los pueblos – El Império contra la revolución en América Latina (II) – http://www.icap.cu/Materiales%20interesantes/30-3-09empimperiocontralarevolucionenalatina.html
- (2) – Carta Maior – América Latina é hoje o lugar mais estimulante do mundo – Noam Chomski – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16160
- (3) – Global Research – A América Latina e o fim do liberalismo social – http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=15127
- (4) – Página Um – A alvorada da resistência na última fronteira – http://pagina-um.blogspot.com/2009/09/honduras-alvorada-da-resistencia-na.html
- (5) – Mirador Nacional – Con fuertes cruces, Unasur propone uma cita con Obama por las bases en Colômbia – http://www.miradornacional.com/?q=node/9080
- (6) – Página Um – Eleições no Panamá – Ganhou o candidato da oligarquia e do império – http://pagina-um.blogspot.com/2009/05/eleicoes-no-panama-ganhou-o-candidato.html
- (7) – BBC – Libéria recruits a new army – Elizabeth Blunt – http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4647676.stm

Nota final:

Tal como os outros antecessores o texto foi produzido há um ano e agora mais que antes não deixa de suscitar em relação a Portugal muitas questões de fundo, que confirmam a nossa posição de PAZ SIM, NATO NÃO:
- Portugal possui excelentes relações com o Brasil e a Venezuela, dois dos estados que lhe garantem um volume de negócios que contribui para que Portugal, no que toca à sua balança económica, sofra de maneira menos intensa os efeitos da crise, com o "diktat" de Bruxelas e as "amarras" da NATO.
- Todavia esse relacionamento bilateral com o Brasil e a Venezuela, dois dos países mais decisivos da América Latina, contrariam os vínculos de Portugal no quadro da NATO, uma NATO que possui nas Caraíbas plataformas que poderão servir de base para uma escolhida intervenção, como as Antilhas Holandesas.
- A Holanda e os Estados Unidos já realizaram exercícios em Curaçao ("Joint-Caribbean Lion 2006") e as tensões na região envolvente (Colômbia e Venezuela) poderão ser "estimulantes" para passar do exercício ao real, se tivermos em consideração os apetites em relação ao petróleo de toda a região e o empenho que os serviços de inteligência dos Estados Unidos e de seus aliados como Israel têm sobre os diversos alvos ali existentes.
- No caso dum conflito com a intervenção da NATO na América Latina, agora que a partir da Cimeira de Lisboa ela está mais afoita a "guerras de baixa intensidade" e aferida aos conceitos de "contra subversão" em direcção ao Atlântico Sul (Golfos do México como o da Guiné), os interesses bilaterais de Portugal para com potenciais alvos na América Latina e em África também poderão ser prejudicados.
- No meu entender, ao mínimo sinal da NATO no Atlântico Sul, com ou sem o "novo parceiro" russo, explorando ou não o papel do AFRICOM, Angola deveria rever imediatamente o seu relacionamento militar com Portugal e Rússia, pondo fim ao modelo até agora em curso de entendimentos militares de várias décadas e evidenciando os termos duma mais activa política de Não Alinhamento!

CIVILIZAÇÃO SIM, BARBÁRIE NÃO!

PAZ SIM, NATO NÃO! .
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