sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Angola: Reginaldo Silva - Constituição, probidade e ‘artigo 26’ - depoimento

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O PAÍS (angola) – 06 janeiro 2011

1. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

Por culpa quer do partido no poder quer da oposição, antes de mais penso que o país perdeu uma grande oportunidade de se reencontrar neste grande momento histórico que foi a proclamação da primeira constituição aprovada em Angola com a necessária e recomendável legitimidade democrática que se exige de um tal exercício.

O facto da UNITA, o maior partido da oposição, ter abandonado a Assembleia Nacional na hora da votação do texto fala bem (mal) de mais este profundo desentendimento que acabou por manchar mais uma etapa de viragem da nossa história, para não variar.

É bom recordar que a anterior constituição, que esteve em vigor entre Setembro de 1992 e Fevereiro de 2010, tinha sido aprovada pela então monopartidária Assembleia do Povo, num dos seus derradeiros actos legislativos.

O texto final resultou de uma consulta multipartidária, fundamentalmente, com a UNITA, quando os dois “irmãos desavindos” ensaiavam os primeiros passos trocados de um bailado mal ensaiado em Bicesse destinado a colocar um ponto final no fratricídio.

Na altura o Galo Negro não estava muito preocupado com alguns “pormenores”, pois Jonas Savimbi acreditava que a vitória eleitoral dificilmente lhe escaparia.

Mesmo assim, o texto anterior soube incorporar no seu corpo um cadeado democrático chamado artigo 159 que acabou por não resistir aos sucessivos ataques do MPLA, com os resultados que se conhecem.

A proclamação da Constituição foi de facto e de jure o momento mais importante que marcou o ano que chega ao fim, com consequências que ainda não são totalmente visíveis, pois sou daqueles que acha que o modelo de governação escolhido, onde se inclui o sistema eleitoral da sua legitimação, só será verdadeiramente testado na ausência do actual Presidente.

Só aí, teremos uma ideia definitiva em relação ao seu potencial, embora actualmente já perceba melhor que o atípico modelo foi estrategicamente desenhado a pensar nas duas situações, isto é, com JES e sem ele, com o propósito evidente do MPLA se manter no poder, sem grandes dificuldades em vencer os próximos pleitos eleitorais.

Claramente o modelo é um fato feito à medida da estratégia do MPLA com e sem JES.

Percebo agora que a colagem da eleição presidencial à eleição legislativa corresponde a este desígnio, pois na ausência do candidato JES, o que mais tarde ou mais cedo irá acontecer, sempre será muito mais fácil ao seu substituto ganhar a eleição colado ao MPLA, do que se concorresse sozinho em eleições separadas para a Presidência da República.

Como é evidente, este “modelo hiperpresidencialista”, para usar a adjectivação de Vital Moreira, do qual me demarco em absoluto, penalizou duramente os angolanos de uma forma geral, quer os eleitores, quer todos aqueles que, em nome da cidadania, se sentem no direito de concorrerem à mais alta magistratura do País.

Acho que a actual Constituição, com base nesta opção, retirou aos angolanos um direito fundamental como cidadãos, o que é de lamentar, embora nada esteja perdido, pois a revisão deste texto é uma possibilidade prevista na própria lei, que pode ocorrer dentro de cinco anos, a contar da data da sua promulgação.

Não vou aqui desenvolver mais esta partilha de responsabilidades por não termos tido um grande momento nacional com a proclamação da Constituição, mas estou convencido que a oposição, por mais que duvidemos da lisura do pleito eleitoral de Setembro de 2008, enganou-se redondamente ao pensar que conseguiria um resultado político favorável a uma discussão mais equilibrada da Constituição, como justificação para ter sabotado a primeira constituinte.

Na altura a oposição, caso não se retirasse da Comissão Constitucional, poderia ter tido um resultado cem vezes melhor do que aquele que obteve depois do desastre eleitoral de 2008.

O texto constitucional seria, sem dúvidas, muito mais equilibrado e o país no seu conjunto e na sua diversidade sairia a ganhar muito mais, pois seriam contempladas opções mais abrangentes e menos exclusivistas, a começar pelos próprios símbolos da nossa nacionalidade.

2. Lei da Probidade Pública

Reconheço ser mais uma tentativa quase desesperada (e pouco mais) para se fazer face ao estado deplorável em que se encontram as nossas instituições públicas do ponto de vista do desempenho ético/deontológico dos seus responsáveis (altos, médios e baixos) e quadros.

Estamos, obviamente, a falar da corrupção institucionalizada, a nível político e administrativo, que já se generalizou e ameaça seriamente derrubar o mínimo de seriedade que qualquer Estado tem de garantir aos cidadãos na sua intervenção diária junto da sociedade e da opinião pública e publicada e da comunidade internacional, a qual está ligado por um conjunto de pactos e convenções.

Angola está neste limite. Se der mais um passo em frente, será em direcção ao abismo que nos persegue desde a ascensão do país à independência.

Para já este diploma vai continuar a ser mais uma bela peça da retórica político-jurídica de um Estado/Governo que já nos habituou a outros momentos do género, sem consequências mais práticas e sustentadas no plano da alteração da realidade que se pretende.

Diante de mais esta iniciativa não posso deixar aqui de recordar a adormecida lei que em 1996 (salvo erro) criou a Alta Autoridade Contra a Corrupção (AACC) e cujo titular aguarda até hoje pela sua nomeação ou eleição.

Considero que o fundamental na nova lei (se ela tiver mais sorte que as outras) e depois do partido maioritário ter desistido inexplicavelmente da AACC, será o papel que a Procuradoria-Geral da República vier a desempenhar, depois de termos ouvido da boca do seu titular o anúncio relativo à criação do Departamento de Combate e Prevenção à Corrupção para responder às atribuições relacionadas com a entrada em vigor da Lei da Probidade Pública.

Até lá, resta-nos a esperança de que a sociedade civil angolana se fortaleça e assuma ela própria, com os recursos ao seu alcance, uma verdadeira ofensiva contra a privatização do Estado e dos bens públicos que se assiste actualmente, tendo por pano de fundo um discurso oficial politicamente correcto, mas que não passa disso mesmo.

A nossa esperança está igualmente na acutilância que a imprensa dedicar ao assunto, com os olhos colocados bem no topo da pirâmide, onde de facto os efeitos da corrupção são devastadores para um país que tem os índices de miséria e pobreza do nosso.

Por fim, seria uma injustiça ignorar algumas “limpezas de balneário” que aconteceram recentemente em alguns ministérios nevrálgicos, como o Interior e o Urbanismo e as Obras Públicas, aos quais se pode acrescentar GPL, que parecem apontar claramente para esta necessidade de se colocar alguma ordem no circo das nossas maldades, tendo por referência o espírito da tolerância zero e a letra da probidade pública.

3. Revisão da Lei dos Crimes contra a Segurança de Estado

Tenho bastantes dúvidas em relação a manutenção desta lei, agora residualmente revista, que entrou para o nosso ordenamento em 1978, um dos anos mais negros da nossa história, inspirada pelos manuais mais repressivos do estalinismo.

Só a recordação deste facto histórico causa-me arrepios, quando olho para a tal lei por mais revista que ela possa ter sido. Ao que julgo saber, não foi bem este o caso. Para além do famigerado artigo 26, pouco mais de substancial terá sido alterado na anterior lei.

Acho que o nosso ordenamento tem legislação mais do que suficiente para cobrir o espaço da referida lei, que acaba por se constituir numa certa redundância e que só foi mantida devido a alguma arrogância política que continua a fazer morada em Angola, do tipo somos nós que mandamos, ponto final.

A redundância em causa, pelos vistos, terá também alguma utilidade para reprimir os direitos fundamentais dos cidadãos sobretudo ao nível do exercício da liberdade de expressão, num país onde os tribunais normalmente ignoram a força da Constituição, quando se trata de julgar direitos em conflito.

Seja como for a revisão da lei acabou por permitir, ainda que indirectamente, a libertação do Padre Tati e dos seus companheiros de degredo, na sequência do “tímido” Acórdão do Tribunal Constitucional que não teve, contudo, a coragem suficiente de chamar as coisas pelo seu próprio nome.

O TC preferiu endossar a responsabilidade da anulação do processo para o Tribunal de Cabinda, evitando deste modo emitir o veredicto de inconstitucionalidade da norma que havia sido aplicada.

A declaração de voto do Juiz Conselheiro Onofre dos Santos explica bem toda esta “maka”.
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