RUI MARTINS, Berna – DIRETO DA REDAÇÃO
Vivemos um momento histórico. O vento da revolução sopra nos países árabes, cujas ditaduras ou regimes de partido único, dirigidos pelos que, no Ocidente se chamavam senhores feudais, vão ser substituídos por regimes pluripartidários e democráticos.
Os EUA e a Europa se posicionam e condenam tardiamente os ditadores, como se, de repente, descobrissem a necessidade de se respeitar os direitos humanos. Mas, nem todos somos de memória curta. Ainda há pouco, todos se banqueteavam com os ditadores, vendiam-lhes armas e os recebiam com tapete vermelho, submetendo-se aos seus caprichos.
A desculpa era a ameaça dos fanáticos islamitas. Não queriam que a institucionalização da democracia tivesse o mesmo resultado das eleições na Argélia, há cerca de vinte anos, quando os islamitas mostraram sua força e poderiam instalar um regime teocrático ao lado da Europa.
Verdade ou desculpa esfarrapada, o fato é que se assim se convenceram os políticos e a opinião pública. Sem Ben Alli e sem Mubarak as hordas de Bin Laden chegariam ao poder e ameaçariam o mundo ocidental. E, já que o menos mal era aceitar tais ditaduras, o jeito era ir negociando com elas, vendendo armas e comprando petróleo.
Dizem que foi a perspectiva de bons negócios que levou o governo de Tony Blair a aceitar a entrega do líbio condenado à prisão perpétua como responsável pelo atentado contra um Boeing da Pan-Am, cujos destroços caíram sobre a cidade de Lockerbie, matando 270 pessoas da equipagem e passageiros, mais onze habitantes da localidade. A ordem teria partido de Khadafi, o herói líbio, em vingança contra um ataque à sua residência por mísseis americanos.
Muita tinta se gastou na busca de quem realmente teria mandado explodir o Boeing. Uma versão aceita por muitos era de ter sido a própria CIA quem praticara o atentado para incriminar o coronel Khadafi. Mas nesta quarta-feira, o próprio ministro líbio da Justiça, demissionário, numa entrevista a um jornal sueco, afirmou ter partido do próprio Khadafi a ordem para derrubar o avião.
Khadafi é o único dos ditadores que se nega a partir. Existe alguma semelhança entre o Khadafi dos atuais massacres em Tripoli e o Kadafi de 1969 ? Naquela época, há 42 anos, com o apoio do egípcio Gamal Abdel Nasser, em plena época do panarabismo, laico, sem qualquer ligação com a religião muçulmana, o coronel Khadafi derrubava o rei líbio, marionete inglesa e se tornava um líder mundial da independência contra o imperialismo.
Contam que Khadafi apesar da estatura imponente e de seu orgulho, além do charme ao qual sucumbiam as jornalistas que iam entrevistá-lo, era pobre e não possuia os bilhões de dólares dos quais fala hoje a imprensa. A imagem de Khadafi era a de defensor e financiador dos movimentos de libertação nacional e dos palestinos, com o dinheiro do petróleo.
Em todo caso, faz algum tempo que essa imagem se apagou. Os 42 anos de poder acabaram por transformá-lo num ditador prepotente e megalômano. Que só recentemente tinha sido aceito para frequentar a corte dos governos europeus, de Berlusconi a Sarkozi.
A revolução nos países árabes que se beneficia do efeito dominó é feita por jovens e representa o início de uma grande transformação no mundo árabe. O que Nasser não conseguiu com o panarabismo, parece ocorrer, numa deflagração quase espontânea determinada pelo desemprego, miséria e o desejo incontrolável dos jovens de viverem num país livre, sem censura e sem repressão.
Os efeitos dessa revolução poderão ser idênticos aos da Revolução Francesa, que marcou o fim do poder dos aristocratas e a ascenção da burguesia e se propagou por todo o mundo, instituindo igualmente o fim do poder divino católico e o advento do laicismo.
Não acredito na substituição do terror e do autoritarismo dos ditadores pelo terror teocrático de imãs e chefes islamitas, desejosos de fazer guerra aos infiéis. A revolução árabe é contra os regimes controlados e fechados, os jovens e o povo árabe não aceitarão entrar de novo em regimes de terror religioso com a implantação da chariá islamita e com a submissão das mulheres.
Prefiro ser otimista e imaginar que essa revolução provoque também uma modernização dentro da religião muçulmana, o equivalente da Reforma, que colocou fim à hegemonia da igreja e fez uma leitura liberal da Bíblia, acabando de vez com os julgamentos de Deus e a Inquisição.
Dizem que a Reforma e a Renascença foram o resultado de uma simples invenção que democratizou o acesso à leitura e à cultura, a imprensa de Guttenberg. E, pelo jeito, os mais novos descendentes da imprensa, a Internet, os celulares, as mensagens imediatas e simultâneas e as redes sociais provocaram esse mundo novo que vamos ver com a transformação dos países árabes em países democráticos, livres economicamente e desvencilhados dos reis e ditadores comprometidos com seus antigos colonizadores. Inshalá.
*Jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. Escreve para o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress.
Vivemos um momento histórico. O vento da revolução sopra nos países árabes, cujas ditaduras ou regimes de partido único, dirigidos pelos que, no Ocidente se chamavam senhores feudais, vão ser substituídos por regimes pluripartidários e democráticos.
Os EUA e a Europa se posicionam e condenam tardiamente os ditadores, como se, de repente, descobrissem a necessidade de se respeitar os direitos humanos. Mas, nem todos somos de memória curta. Ainda há pouco, todos se banqueteavam com os ditadores, vendiam-lhes armas e os recebiam com tapete vermelho, submetendo-se aos seus caprichos.
A desculpa era a ameaça dos fanáticos islamitas. Não queriam que a institucionalização da democracia tivesse o mesmo resultado das eleições na Argélia, há cerca de vinte anos, quando os islamitas mostraram sua força e poderiam instalar um regime teocrático ao lado da Europa.
Verdade ou desculpa esfarrapada, o fato é que se assim se convenceram os políticos e a opinião pública. Sem Ben Alli e sem Mubarak as hordas de Bin Laden chegariam ao poder e ameaçariam o mundo ocidental. E, já que o menos mal era aceitar tais ditaduras, o jeito era ir negociando com elas, vendendo armas e comprando petróleo.
Dizem que foi a perspectiva de bons negócios que levou o governo de Tony Blair a aceitar a entrega do líbio condenado à prisão perpétua como responsável pelo atentado contra um Boeing da Pan-Am, cujos destroços caíram sobre a cidade de Lockerbie, matando 270 pessoas da equipagem e passageiros, mais onze habitantes da localidade. A ordem teria partido de Khadafi, o herói líbio, em vingança contra um ataque à sua residência por mísseis americanos.
Muita tinta se gastou na busca de quem realmente teria mandado explodir o Boeing. Uma versão aceita por muitos era de ter sido a própria CIA quem praticara o atentado para incriminar o coronel Khadafi. Mas nesta quarta-feira, o próprio ministro líbio da Justiça, demissionário, numa entrevista a um jornal sueco, afirmou ter partido do próprio Khadafi a ordem para derrubar o avião.
Khadafi é o único dos ditadores que se nega a partir. Existe alguma semelhança entre o Khadafi dos atuais massacres em Tripoli e o Kadafi de 1969 ? Naquela época, há 42 anos, com o apoio do egípcio Gamal Abdel Nasser, em plena época do panarabismo, laico, sem qualquer ligação com a religião muçulmana, o coronel Khadafi derrubava o rei líbio, marionete inglesa e se tornava um líder mundial da independência contra o imperialismo.
Contam que Khadafi apesar da estatura imponente e de seu orgulho, além do charme ao qual sucumbiam as jornalistas que iam entrevistá-lo, era pobre e não possuia os bilhões de dólares dos quais fala hoje a imprensa. A imagem de Khadafi era a de defensor e financiador dos movimentos de libertação nacional e dos palestinos, com o dinheiro do petróleo.
Em todo caso, faz algum tempo que essa imagem se apagou. Os 42 anos de poder acabaram por transformá-lo num ditador prepotente e megalômano. Que só recentemente tinha sido aceito para frequentar a corte dos governos europeus, de Berlusconi a Sarkozi.
A revolução nos países árabes que se beneficia do efeito dominó é feita por jovens e representa o início de uma grande transformação no mundo árabe. O que Nasser não conseguiu com o panarabismo, parece ocorrer, numa deflagração quase espontânea determinada pelo desemprego, miséria e o desejo incontrolável dos jovens de viverem num país livre, sem censura e sem repressão.
Os efeitos dessa revolução poderão ser idênticos aos da Revolução Francesa, que marcou o fim do poder dos aristocratas e a ascenção da burguesia e se propagou por todo o mundo, instituindo igualmente o fim do poder divino católico e o advento do laicismo.
Não acredito na substituição do terror e do autoritarismo dos ditadores pelo terror teocrático de imãs e chefes islamitas, desejosos de fazer guerra aos infiéis. A revolução árabe é contra os regimes controlados e fechados, os jovens e o povo árabe não aceitarão entrar de novo em regimes de terror religioso com a implantação da chariá islamita e com a submissão das mulheres.
Prefiro ser otimista e imaginar que essa revolução provoque também uma modernização dentro da religião muçulmana, o equivalente da Reforma, que colocou fim à hegemonia da igreja e fez uma leitura liberal da Bíblia, acabando de vez com os julgamentos de Deus e a Inquisição.
Dizem que a Reforma e a Renascença foram o resultado de uma simples invenção que democratizou o acesso à leitura e à cultura, a imprensa de Guttenberg. E, pelo jeito, os mais novos descendentes da imprensa, a Internet, os celulares, as mensagens imediatas e simultâneas e as redes sociais provocaram esse mundo novo que vamos ver com a transformação dos países árabes em países democráticos, livres economicamente e desvencilhados dos reis e ditadores comprometidos com seus antigos colonizadores. Inshalá.
*Jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. Escreve para o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress.
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