terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O QUE NÃO SE SABE SOBRE O EGITO

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O artigo de Vicenç Navarro alerta para o que é fundamental: só as classes trabalhadoras e os oprimidos poderão alguma vez estabelecer um quadro revolucionário e o que os "media" têm divulgado cinge-se às conveniências das elites e das oligarquias, ou seja, uma forma de dar combate aos potenciais revolucionários.

No Egipto o caminho da revolução provavelmente ainda não está suficientemente amadurecido por que o capitalismo tem ainda muitas máscaras e capacidades para usar.

O agravamento da situação global, que se reflecte na situação alimentar, irá contribuir para que as potencialidades revolucionárias cresçam e se desvaneçam muitas ambiguidades, definindo melhor as fronteiras entre o que tem sido oportunismo releguiado e o que é substantivo.

O Egipto indicia estar em fase de pré revolução. – Martinho Júnior

O que não se sabe sobre o Egipto

Vicenç Navarro - 17 fevereiro 2011

Este artigo critica a cobertura da chamada revolução egípcia por parte dos maiores meios de informação, que se centraram na mobilização de jovens – a maioria profissionais e licenciados universitários – e na sua utilização das novas tecnologias da comunicação, ignorando as mobilizações operárias em todo o território egípcio que foram aquelas que, na realidade, foram determinantes na demissão do ditador. O artigo detalha a natureza de tais mobilizações, que representam a maior ameaça à sobrevivência da ditadura egípcia, o que explica que uma das primeiras medidas tomadas pela Junta Militar tenha sido a proibição taxativa de greves e reuniões de trabalhadores sindicalistas.

A queda do ditador Mubarak como resultado da mobilização popular é um motivo de alegria para qualquer pessoa com sensibilidade democrática. Mas esta mesma sensibilidade democrática deveria consciencializar-nos de que a versão do ocorrido que apareceu nos meios de informação de maior difusão internacional (desde a Al Jazira ao The New York Times e à CNN) é incompleta ou enviesada, pois responde aos interesses que os financiam. Assim, a imagem geral promovida por aqueles meios é que tal evento se deve à mobilização dos jovens, predominantemente estudantes e profissionais das classes médias, que utilizaram com muito êxito as novas técnicas de comunicação (Facebook e Twitter, entre outros) para se organizar e liderar tal processo, iniciado, por certo, pela indignação popular contra a morte em prisão, como consequência das torturas sofridas, de um destes jovens.

Esta explicação é extremamente incompleta. Na realidade, a suposta revolução não se iniciou há três semanas e não foi iniciada por estudantes e jovens profissionais. O passado recente do Egipto caracteriza-se por lutas operárias brutalmente reprimidas que aumentaram nestes últimos anos. Segundo o Egypt’s Center of Economic and Labor Studies, só em 2009 existiram 478 greves claramente políticas, não autorizadas, que provocaram o despedimento de 126.000 trabalhadores, 58 dos quais se suicidaram. Como também ocorreu em Espanha durante a ditadura, a resistência operária democrática infiltrou-se nos sindicatos oficiais (cujos dirigentes eram nomeados pelo partido dirigente, que surpreendentemente tinha sido aceite no seio da Internacional Socialista), jogando um papel chave naquelas mobilizações. Milhares e milhares de trabalhadores deixaram de trabalhar, incluídos os da poderosa indústria do armamento, propriedade do Exército. Juntaram-se também os trabalhadores do Canal do Suez (6.000 trabalhadores) e, por fim, os empregados da Administração pública, incluindo médicos e enfermeiras (que desfilaram com os seus uniformes brancos) e os advogados do Estado (que desfilaram com as suas togas negras). Um dos sectores que teve maior impacto na mobilização foi o dos trabalhadores de comunicações e correios, e do transporte público.

Os centros industriais de Asyut e Sohag, centros da indústria farmacêutica, energia e gás, também deixaram de trabalhar. As empresas em Sharm El-Sheikh, El-Mahalla Al Kubra, Dumyat e Damanhour, centros da indústria têxtil, mobiliário, madeira e alimentação também pararam a sua produção. O ponto culminante da mobilização operária foi quando a direcção clandestina do movimento operário convocou uma greve geral. Os meios de informação internacionais centraram-se no que ocorria na praça Tahrir do Cairo, ignorando que tal concentração era a ponta do icebergue espalhado por todo o país e centrado nos locais de trabalho – fundamentais para a continuação da actividade económica – e nas ruas das maiores cidades do Egipto. O Exército, que era, e é, o Exército de Mubarak, não as tinha todas consigo. Na verdade, além da paralisação da economia, tinham temor a uma rebelião interna, pois a maioria dos soldados procediam de famílias muito pobres de bairros operários cujos vizinhos estavam na rua. Comandos intermédios do Exército simpatizavam também com a mobilização popular, e a cúpula do Exército (próxima a Mubarak) sentiu a necessidade de se separar dele para se salvarem a eles mesmos. Mais, a Administração Obama, que no início tinha estado contra o despedimento de Mubarak, mudou e pressionou para que este saísse. O Governo federal subvencionou com uma quantia de 1.300 milhões de dólares por ano o Exército daquele país e este não podia ignorar o que o secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, estava a exigir. Daí que o director da CIA anunciasse que Mubarak se demitiria e, ainda que se tenha atrasado umas horas, Mubarak demitiu-se.

Nem vale a pena dizer que os jovens profissionais que fizeram uso das novas técnicas de comunicação (só 22% da população tem acesso à Internet) desempenharam um papel importante, mas é um erro apresentar aquelas mobilizações como consequência de um determinismo tecnológico que considera a utilização de tecnologia como o factor determinante. Na verdade, o desaparecimento de ditaduras num período de tempo relativamente curto, como resultado das mobilizações populares, ocorreu constantemente. O Irão (com a queda do xá), o Muro de Berlim, a queda das ditaduras da Europa de Leste, entre outros casos, caíram, uma atrás da outra, através de mobilizações populares sem que existisse Internet. E o mesmo ocorreu em Tunes, onde, na verdade, a resistência da classe trabalhadora também desempenhou um papel fundamental na queda do ditador, cujo partido foi também surpreendentemente admitido na Internacional Socialista.

O futuro, no entanto, começa agora. É improvável que o Exército permita uma transição democrática. Permitirá estabelecer um sistema multipartidário, muito limitado e supervisionado pelo Exército, para o qual o inimigo número um não é o fundamentalismo islâmico (embora assim o apresente, com o fim de conseguir o apoio do Governo federal dos EUA e da União Europeia), mas a classe trabalhadora e as esquerdas, que são as únicas que eliminariam os seus privilégios. Não esqueçamos que as classes dominantes do Irão, do Iraque e do Afeganistão apoiaram o radicalismo muçulmano (com o apoio do Governo federal dos EUA e da Arábia Saudita) como uma forma de travar as esquerdas. Uma das primeiras medidas que a Junta Militar tomou foi proibir as greves e as reuniões dos sindicalistas. No entanto, esta mobilização operária mal apareceu nos maiores meios de informação.

http://infoalternativa.org/spip.php?article2110
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