SÉRGIO GOMES – JORNAL NOTÍCIAS (moçambique) - 15 março 2011
Os fenómenos de estabilidade e instabilidade política têm merecido atenção diferente pela comunidade académica. Os estudiosos fornecem-nos várias explicações sobre as causas da guerra, as dinâmicas das revoluções ou seja sobre o fenómeno de instabilidade e muito pouco trabalho procura explicar o fenómeno de estabilidade. Esta realidade pode ser motivada pelo facto de a estabilidade ser a regra, no sentido de que todos queremos e amamos a estabilidade e a instabilidade ser uma excepção e, como tal, é mais estimulante estudar e explicar desvios ou anomalias do que explicar o que é aceite e desejável.
Nós temos uma percepção diferente. E a actual onda de crises e instabilidades na África do Norte e no Médio Oriente obrigam-nos a pensar diferente. Acreditamos que, também, é importante explicar os padrões da estabilidade, uma vez que a forma de manifestação da instabilidade ou de crises num sistema político depende, também, da forma como a estabilidade é mantida ou garantida.
Fazendo empréstimo dos conceitos de paz positiva e paz negativa das teorias de resolução de conflitos, a estabilidade negativa seria a simples ausência da confrontação violenta entre os diferentes actores dentro de um sistema político, enquanto que a estabilidade positiva implicaria mais do que ausência de confrontação para incluir ausência de ameaças e a aceitação do sistema político prevalecente, por todos os grupos em competição política.
Visto desta forma, o presente trabalho assume que os sistemas políticos nos Estados da África do Norte e do Médio Oriente têm sido estáveis com intervalos de instabilidade controlada até aos últimos acontecimentos na Tunísia, no Egipto, na Argélia, em Bahrein, em Yemen e na Líbia. O pressuposto central para a nossa posição é o facto de que a estabilidade não ocorre de forma espontânea; ela é promovida, encorajada e imposta e diferentes governos no Médio Oriente combinaram de forma consistente um conjunto de estratégias para impor e manter a estabilidade até à presente convulsão.
PERSPECTIVA DE ANÁLISE
A nossa reflexão será feita com recurso ao sistemismo. Uma abordagem que consiste no uso das características e dinâmicas do sistema político para explicar os fenómenos que nele ocorrem.
Central para a nossa análise é o conceito de sistema político ou seja a organização das relações políticas dentro duma sociedade, como um todo ou com particular referência às relações que se estabelecem entre os governantes e os governados. Para além dos órgãos do Estado, o sistema político inclui partidos políticos, grupos de interesse, organizações não-governamentais e sector privado. É, portanto, dentro do sistema político onde eventos tais como eleições, revoltas, crises e revoluções têm lugar.
O sistema político normalmente é concebido como um sistema aberto, permitindo a comunicação entre os diferentes actores políticos. Ele é também visto como um sistema flexível capaz de reagir aos choques, ajustando as suas respostas às demandas populares por via de políticas públicas sustentáveis, tendo em vista a satisfação do interesse colectivo (a necessidade dos governantes ouvirem as preocupações dos governados).
Mas o sistema político também pode ser fechado, onde a liderança dita as políticas com pouca ou nenhuma consideração em relação às demandas dos outros actores políticos acima mencionados, olhando apenas para a satisfação de interesses individuais ou de grupos restritos, normalmente a elite política e as suas redes de clientes.
Tomando em consideração que a política é um jogo sério de alinhamento entre grupos dentro de uma sociedade, o objectivo de cada grupo é a concentração de poder que lhe permita manter, mudar ou remover a ordem política prevalecente. O poder de cada grupo é determinado pela distribuição dos recursos políticos entre os actores envolvidos na disputa política. Desta forma, as relações de poder entre os grupos que apoiam e os que se opõem à ordem prevalecente é fundamental para a avaliação da estabilidade ou instabilidade de um sistema político e para a antecipação de mudanças ou transformações políticas.
Sendo assim, o sistema político se tornará instável sempre que um grupo ou alinhamento decide escalar a confrontação e tenta remover o regime vigente ou mudar o sistema político enquanto que o regime vigente enfrenta dificuldades de se impor e manter-se no poder. A actual corrente de crises no Médio Oriente revela este padrão, em que, em virtude da rigidez e inflexibilidade do sistema político, grupos de interesse ou de pressão, na circunstância jovens, fazem uso do seu capital social para confrontar e rever o status quo político
CARACTERÍSTICAS DOS REGIMES EM CRISE
Podemos usar vários critérios para caracterizar os regimes em crise na África do Norte e Médio Oriente. Sob o ponto de vista cultural estamos perante Estados multiculturais, mas de maioria árabe islâmica, sob o ponto de vista de base económica estamos perante uma divisão entre Estados rentiers ou Estados que vivem na base de exploração de recursos naturais estratégicos, especificamente o petróleo, e Estados produtivos, ou seja, aqueles que procuram desenvolver o sector secundário e prestar serviços aos Estados rentiers. Sob o ponto de vista de organização política estamos perante Repúblicas e Monarquias.
Ao trabalho interessa concentrar-se sobre as características políticas. Neste aspecto o campo republicano caracteriza-se por possuir constituições plasmando princípios democráticos liberais, mas com restrições na operacionalização de tais princípios. Por exemplo, a Líbia é uma democracia sem partidos políticos, Egipto uma democracia em que os partidos da oposição são proibidos de actuar. Quer dizer, os princípios democráticos são constitucionalmente aceites, instituições tais como parlamento e poder judicial existem e exercem um papel aparentemente independente, ocorrem eleições cíclicas, com excepção da Líbia. Entretanto, o regime controla o jogo político e manipula as instituições e a vontade popular a seu favor. Do outro lado estão as Monarquias, onde se verifica o fenómeno de concentração do poder nas mãos do Rei, com certa delegação, no caso da Jordânia, que é uma Monarquia constitucional.
Esta realidade indica claramente que os sistemas políticos nos Estados actualmente em crise não são espaços abertos de interacção, onde diferentes grupos expressam de forma livre as suas demandas e o regime toma em consideração essas demandas no processo de formulação de políticas públicas. Pelo contrário, trata-se de sistemas fechados e exclusivos, nos quais o regime exerce um controlo monopolítico sobre todos os canais de participação e dita as suas políticas sem uma consideração consistente em relação às demandas de outros grupos.
Desta forma, a estabilidade destes sistemas não significava necessariamente um equilíbrio entre os grupos apoiando o regime e aqueles em oposição. Mas sim resulta da capacidade do regime em mobilizar os recursos do Estado para impor a sua visão sem que seja constrangido ou ameaçado pelos grupos de oposição, ou seja, imposição da estabilidade.
A SOBREVIVÊNCIA DOS REGIMES
Dada esta situação de estabilidade negativa, como é que se explica que os regimes tenham conseguido sobreviver até recentemente?
A resposta a esta questão pode ser encontrada no conjunto de estratégias que foram sendo combinadas para a imposição da estabilidade. Estas estratégias de antecipação, repressão e eliminação da oposição incluíam:
Primeiro: O recurso aos Serviços de Segurança e aparato legal.
Com efeito, o sector de segurança é extremamente forte no Médio Oriente. Ele foi sendo alimentado e consolidado no contexto dos conflitos israelo-árabe, numa primeira fase, e depois no âmbito dos esforços de repressão do radicalismo islâmico. Em paralelo foi-se transformando numa arma ao serviço do regime para impor a estabilidade através de métodos coercivos ou terrorismo de Estado.
Igualmente vital neste processo foi o recurso ao aparato legal para impedir manifestações da oposição. O uso e abuso da lei de emergência constituíam a base deste exercício. Por exemplo, o Egipto teve a lei de emergência aprovada em 1981 sob o pretexto de combater a Irmandade Muçulmana (30 anos), a Argélia adoptou a lei em 1992 (19 anos) sob o pretexto de combater a Frente Islâmica de Salvação e a Síria tem a lei em vigor desde 1963 (48 anos).
A instrumentalização desta lei fez com que praticamente fosse impossível opor-se aos regimes estabelecidos, por tal manifestação ser considerado um crime contra o sistema. Havia uma interpretação extensiva para além do objecto que ela pretendia regular para incluir a proibição das manifestações, o controlo sobre os partidos políticos e a censura generalizada nos órgãos de informação.
O segundo instrumento foi a eliminação e cooptação de potenciais opositores.
Este processo era praticado por via de detenção de opositores sob falsas acusações, por um lado, e a utilização de instituições de Estado para recrutar e domesticar potenciais opositores, por outro. Por exemplo, a ocupação de cargos como secretário de movimento dos trabalhadores ou presidente da ordem dos advogados era passaporte quase que garantido para se ascender a posições de ministro de trabalho ou de justiça, respectivamente.
Em casos de surgimento de oposição dentro dos próprios regimes a eliminação era feita com recurso às missões diplomáticas ou organizações internacionais para onde eram enviadas, por longo período, personalidades incómodas dentro do regime. Amr Moussa, ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros no Egipto, com um estatuto que ofuscava o seu presidente, é um exemplo desta prática. Foi enviado para a Liga Árabe, com sede em Cairo, mas sem poder intervir sobre os assuntos internos do Egipto.
O terceiro instrumento era a distribuição de renda.
Esta distribuição era feita de duas formas. Em relação às camadas mais desfavorecidas verificava-se o subsídio do governo sobre os produtos básicos, incluindo o combustível, como forma de silenciar as massas e, em relação ao sector privado, assistia-se à distribuição de contratos de negócios de Estado numa rede de relações neopatrimoniais, como forma de garantir a obediência e o compromisso dos homens de negócio em relação à agenda de imposição de estabilidade e manutenção do regime.
Podemos incluir também a participação ilusiva, ou seja, uma prática de realização de eleições com regularidade, sem que os resultados eleitorais produzissem mudanças, muito menos que reflectissem a vontade popular, mas sim a confirmação da continuidade do regime prevalecente. O regime assumia o papel de realizar as eleições, contabilizando e descontando os votos de forma a garantir o monopólio sobre os mecanismos formais de participação. Daí os presidentes serem eleitos com margens absolutas ao extremo, como demonstram os resultados das últimas eleições presidenciais:
- Ben Ali obteve 89 porcento em 2009,
- Aly Saleh 80 porcento em 2006,
- Hosni Mubarak 80 porcento em 2005
- Bouteflika 90 porcento em 2009, só para citar alguns exemplos.
**Sérgio Gomes - Investigador e Docente de Política Externa ISRI
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