… DA OTAN NA LÍBIA E EM ÁFRICA
MARTINHO JÚNIOR
Em Outubro de 2010, antes das eleições no Brasil, escrevi vários artigos com referência a esse acontecimento e, entre eles, aquele que advoguei a defesa dos interesses brasileiros sobre o pré-sal, interligando essa acção com os interesses na defesa do Sul em relação à Amazónia “verde” e à bacia do Grande Congo, em África.
De facto em época eleitoral no Brasil, a defesa em benefício dos interesses do Brasil em relação ao pré-sal foi um assunto bastante debatido, pois o candidato José Serra advogava uma política neo liberal que permitia o enfraquecimento da PETROBRAS e, com isso, a abertura do pré-sal às multinacionais do petróleo, sobretudo as anglo-saxónicas.
Assumir o pré-sal no quadro dos interesses nacionais brasileiros, vocaciona-se no reforço da emergência do Brasil: para além do facto dessa defesa ser extremamente sensível à defesa dos interesses do Sul, é importante também num quadro de associação de componentes emergentes em situação similar em diversas partes do globo, associação com a Rússia, a Índia e a China, mas também com muitos produtores de petróleo e gás dentro ou fora da OPEP (Líbia incluída).
Os BRIC, cada um dos componentes para além de suas fronteiras nacionais, são fulcros e nexos multi-regionais importantes para as possibilidades de multilateralismo e susceptíveis com isso de melhor se encontrarem alternativas à impulsão relativa das políticas hegemónicas eminentemente anglo-saxónicas.
Acompanhar o posicionamento dos BRIC nos relacionamentos internacionais tornou-se assim numa obrigação para os observadores mais atentos, para os estrategas e para todos aqueles que estão implicados na incessante busca de alternativas que fujam à pressão da globalização neo liberal que constrói os termos ambíguos desta hegemonia cujo braço militar é avassaladoramente intempestivo e agressivo.
Por isso, a leitura do posicionamento dos BRIC esbatida no Conselho de Segurança da ONU no quadro dos termos concretos da Resolução 1973 em relação à Líbia, é deveras importante, pois ela fornece elementos indicadores sobre até que ponto os BRIC estão capacitados de partir para um efectivo multilateralismo, capaz de estabelecer nexos de relacionamento com outras nações, povos e estados, entre eles os produtores de petróleo e gás, na América Latina, na África e na Ásia (Médio Oriente incluído).
De forma decepcionante, as respostas dos BRIC no Conselho de Segurança da ONU em relação à Líbia, não só demonstram timidez em assumir implicações geo estratégicas e geo políticas alternativas, como pecaram nas suas previsões no âmbito de sua abstenção: ao permitirem-se caucionar a intervenção sobretudo da França, da Grã Bretanha e dos Estados Unidos na Líbia, em função dum documento carregado de equívocos em relação aos limites e esfera da acção, contribuíram para esconder a natureza da revolta líbia que me parece indiciadora de associação com os interesses das multinacionais franco-anglo-saxónicas e de seus aliados árabes (a interconexão do uso da aviação aliada com as forças no terreno é um facto gritante de coligação) e, pecado dos pecados, não previu uma evolução que abrisse caminho à entrada da OTAN no contencioso da Líbia.
Era possível aos BRIC no Conselho de Segurança da ONU advogar de forma decidida a via do diálogo e da paz, defender intransigentemente essa via perante aqueles que vêem na força militar solução preferencial de uso intermitente, com sinal contraditório (em função dos seus interesses egoístas e hegemónicos, ao ataque no caso líbio, ou na defesa no caso do Bahrein) e esperando o tempo julgado conveniente (20 anos de relacionamento e negócios comuns no caso líbio), espreitando as possibilidades de transição pacífica e sem traumas (ou com o mínimo de traumas possível) na Líbia, evidenciando os interesses do Sul (inclusive os interesses do Sul em relação ao petróleo na Líbia)… mas os discursos das delegações desses países, foram discursos frágeis, vazios de ética e de moral, vazios de convicções e de princípios, carentes de geo estratégia, inócuos de geo política e sobretudo cúmplices da evolução que está agora patente, que foi aliás prevista entre outros pelos vizinhos do Brasil, pelos componentes da ALBA na América Latina, respondendo às reflexões de Fidel sobre o assunto.
Este tipo de discursos continua a abrir espaço aos criminosos que actuam em nome da hegemonia, com todo o arsenal de cosméticas que estão continuamente a ser aplicadas na lavagem cerebral global em curso em relação a eles!...
… São discursos cúmplices que contribuem, por exemplo, para impedir que alguma vez George W. Bush, ou Tony Bair, por maioria de razão e em função de seus crimes contra a humanidade nos Balcãs, no Iraque, no Afeganistão e em tantos outros lugares onde proliferam as mais de 800 bases do sistema, crimes contra os tão apregoados “direitos humanos”, “direitos das minorias” e contra a própria “democracia representativa” (a favor da aristocracia financeira mundial, das oligarquias, das monarquias árabes do petróleo e das elites afins) se venham a sentar antes de quaisquer outros no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional!
Os BRIC, dois deles, Rússia e China, com direito a veto, não souberam defender condignamente os interesses alternativos do Sul no Conselho de Segurança e agora, mais que antes, este tipo de intervenções com uma tremenda carga de ingerência, em nome dos “direitos humanos”, dos “direitos das minorias” e da “democracia representativa”, começa a repercutir nos fragilizados estados e nações do Terceiro Mundo subdesenvolvido, pendendo como uma ameaça que a qualquer momento pode passar do conceito à prática de agressão em qualquer “obscuro rincão do mundo” conforme a arrogância estúpida mas omnipresente de George W. Bush, a postura dum “sargento às ordens do sistema”, uma arrogância que continua patente na acção do AFRICOM (que opera em suporte à OTAN no caso africano da Líbia).
Ao invés de se estimular nos países do Sul e em toda a humanidade as vias de diálogo, de paz, de participação cidadã, democrática e responsável de todos na solução dos problemas, prefere-se a ameaça militar sempre latente e sempre pendente sobre os estados mais frágeis da Terra e até sobre aqueles que, sendo usados em benefício da hegemonia, das oligarquias, das elites e de monarquias feudais, em tempo oportuno (durante décadas), são deitados fora cinicamente através de bárbaros ou refinados processos de ingerência, quando se julga que, em nome da pílula da “democracia representativa” é chegada a hora de actuar.
Os povos, reduzidos agora à designação absurda de “sociedades civis”, tornam-se pasto das ingerências, imolam-se ao “diktat” do modelo das “democracias representativas” que lhes é imposto de maneira tão perversa e objectivamente nada mais fazem em suas expectativas senão abrir espaços a mais cumplicidade e agenciamento das elites nacionais, cada vez mais submissas e “parceiras” nas cumplicidades estimuladas pela hegemonia e só por elas.
É evidente que estas cumplicidades da abstenção perante a evolução do quadro da ingerência franco-anglo-saxónica e aliados árabes, agora tornada agressão da OTAN em consonância com o AFRICOM (a OTAN não tem mandato do CS da ONU e o AFRICOM não está exposto), é também contra cada um dos BRIC, cujas políticas claudicam nas obrigações alternativas que, sendo possíveis, estão a ser deliberadamente abandonadas, não só neste caso da Líbia, mas também em relação a outros teatros contemporâneos (nenhum dos BRIC se pronunciou em relação ao caso do Bahrein, nem se tem pronunciado sempre, conforme deveriam fazer, em defesa dos direitos da Palestina constantemente agredida e alvo de segregação e “apartheid” na região em que se insere durante largas décadas).
No caso do Brasil foi um péssimo exercício no âmbito dos relacionamentos internacionais, na defesa dos seus interesses próprios sobre o pré-sal e do que isso implica geo estrategicamente enquanto fulcral alternativa, pelo que, a visita da Presidente Dilma Roussef e de Lula da Silva a Portugal nesta conjuntura internacional ambígua e carregada de tensões, ilustra bem esse papel de cumplicidades: a Presidente do Brasil escolheu visitar num momento como este, um país que votou a favor da ingerência militar na Líbia como via para resolver o conflito, quando durante tantos anos se estimulou em negócios com a Líbia e com o próprio Kadafi!
É de realçar que essa escolha surgiu na sequência da visita do Presidente Barack Hussein Obama ao Brasil, que foi aproveitada para, a partir do próprio Gabinete da Presidente Dilma Roussef, dar ordem à força tarefa norte americana para actuar no quadro estabelecido pelo CS da ONU na ingerência contra a Líbia!...
Tendo manifestado Portugal no Conselho de Segurança da ONU, que votava a favor, conforme votou, disse que não faria parte das forças de intervenção dos aliados em relação à Líbia, de forma tão cínica e até sinistra como se pode comprovar: é que agora, no quadro da OTAN, que garante a conexão com o AFRICOM, Portugal que está presente nos Balcãs, no Índico Norte, no Afeganistão, pode considerar vir a participar, fora de qualquer mandato explícito da ONU para com a OTAN, participar mesmo que isso não se torne de domínio público, na ingerência-agressão em curso contra a Líbia, dias depois de ter afirmado precisamente o contrário!
Se algum dia hipoteticamente o pré-sal brasileiro motivar uma musculada ingerência externa como a que foi desencadeada agora na Líbia, uma ingerência militar em estreita coligação com rebeldes (?) locais, o que dirá e fará este Portugal tão exemplarmente alinhado com a hegemonia e tão diligente nessa sua submissão a ponto de se auto-desmentir de forma tão flagrante?
Uma parte da resposta poderá ser constatada no papel de Portugal nos exercícios FELINO em curso, um papel de mensageiro privilegiado, um papel introdutório aos conceitos, técnicas e matérias de feição da OTAN e da AFRICOM – a mensagem de que o rótulo humanitário chegou aos exercícios militares, por que já está há muito tempo a ser aplicado na acção militar da ingerência hegemónica um pouco por todo o lado na Terra!
Portugal de forma maquiavélica indicia estar a contribuir para, em direcção a alguns dos países da CPLP, se escolherem alguns dos mesmos tipos de armadilhas que foram montadas na Líbia durante os 20 anos de relacionamento de Kadafi com os ocidentais, com as cumplicidades próprias distendidas durante todo esse período a favor do seu regime e do seu séquito, “distraindo-o” enquanto esperava a sua ajuda na montagem dessas armadilhas, induzindo-o cada vez mais em erros que lhe viriam a ser única e exclusivamente atribuídos, usando-o de forma perseverante e perversa durante esses 20 anos, para depois o deitar fora desta maneira a que todo o mundo está a assistir através das televisões e de todos os canais informativos à escala global!
PAZ SIM, NATO NÃO!
Martinho Júnior - 29 de Março de 2011.
Junto a posição oficial emitida pelo do Brasil “abstinente” no Conselho de Segurança da ONU, que contribuiu para a aprovação da Resolução 1973:
“Senhor Presidente,
O Brasil está profundamente preocupado com a deterioração da situação na Líbia. Apoiamos as fortes mensagens da Resolução 1970 (2011), adotada por consenso por este Conselho.
O Governo do Brasil condenou publicamente o uso da violência pelas autoridades líbias contra manifestantes desarmados e exorta-as a respeitar e proteger a liberdade de expressão dos manifestantes e a procurar uma solução para a crise por meio de diálogo significativo.
Nosso voto de hoje não deve de maneira alguma ser interpretado como endosso do comportamento das autoridades líbias ou como negligência para com a necessidade de proteger a população civil e respeitarem-se os seus direitos.
O Brasil é solidário com todos os movimentos da região que expressam suas reivindicações legítimas por melhor governança, maior participação política, oportunidades econômicas e justiça social.
Condenamos o desrespeito das autoridades líbias para com suas obrigações à luz do direito humanitário internacional e dos direitos humanos.
Levamos em conta também o chamado da Liga Árabe por medidas enérgicas que dêem fim à violência, por meio de uma zona de exclusão aérea. Somos sensíveis a esse chamado, entendemos e compartilhamos suas preocupações.
Do nosso ponto de vista, o texto da resolução em apreço contempla medidas que vão muito além desse chamado. Não estamos convencidos de que o uso da força como dispõe o parágrafo operativo 4 (OP4) da presente resolução levará à realização do nosso objetivo comum – o fim imediato da violência e a proteção de civis.
Estamos também preocupados com a possibilidade de que tais medidas tenham os efeitos involuntários de exacerbar tensões no terreno e de fazer mais mal do que bem aos próprios civis com cuja proteção estamos comprometidos.
Muitos analistas ponderados notaram que importante aspecto dos movimentos populares no Norte da África e no Oriente Médio é a sua natureza espontânea e local. Estamos também preocupados com a possibilidade de que o emprego de força militar conforme determinado pelo OP 4 desta resolução hoje aprovada possa alterar tal narrativa de maneiras que poderão ter sérias repercussões para a situação na Líbia e além.
A proteção de civis, a garantia de uma solução duradoura e o atendimento das legítimas demandas do povo líbio exigem diplomacia e diálogo.
Apoiamos os esforços em curso a esse respeito pelo Enviado Especial do Secretário-Geral e pela União Africana.
Nós também saudamos a inclusão, na presente resolução, de parágrafos operativos que exigem um imediato cessar-fogo e o fim à violência e a todos os ataques a civis e que sublinham a necessidade de intensificarem-se esforços que levem às reformas políticas necessárias para uma solução pacífica e sustentável. Esperamos que tais esforços continuem e tenham sucesso.
Obrigada.”
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