sábado, 16 de outubro de 2010

Brasil - CAMPANHA É RETROCESSO NA LUTA DAS MULHERES

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MAIR PENA NETO * - DIRETO DA REDAÇÃO

As mulheres vêm travando uma longa e heróica batalha pelo reconhecimento de seus direitos sociais, econômicos e políticos no Brasil. Só poderemos afirmar que vivemos em uma sociedade moderna, avançada e justa quando, entre outras questões relevantes, estiverem derrotados todos os nossos ranços machistas e patriarcais e as mulheres desfrutarem de condição de igualdade com os homens em todos os setores.

Infelizmente, na eleição presidencial brasileira, que deveria representar um momento de avanço também nesse sentido, estamos testemunhando um retrocesso na luta pela afirmação dos direitos da mulher, provocado por uma campanha moralista, conservadora, de fundo religioso, que manipula a fé das pessoas por propósitos estritamente eleitoreiros.

A questão do aborto e, consequentemente, de um direito da mulher, virou bandeira eleitoral da campanha de José Serra, que viu no tema uma oportunidade de encurralar a adversária, que, até por sua condição de gênero, é mais sensível à questão.

Não que as posições dos dois candidatos, ao menos em tese, sejam muito antagônicas. Quando foi ministro da Saúde, Serra normatizou a realização do aborto na rede pública nos casos previstos em lei e distribuiu a pílula do dia seguinte, mecanismo contraceptivo considerado equivalente ao aborto por entidades religiosas.

O candidato tucano sabe muito bem que descriminalizar o aborto não é promovê-lo e sim mudar o tratamento legal que recebe para que mulheres que precisem e desejem fazê-lo possam ter segurança para tanto. Significa acabar com as barbeiragens de clínicas clandestinas, cujas consequências aumentam os gastos do SUS, garantir o atendimento público e reduzir a mortalidade materna que deriva de mais de um milhão de abortos que ocorrem anualmente no país.

Mas Serra viu na campanha religiosa movida contra Dilma por ter se posicionado pela descriminalização do aborto uma oportunidade de virar um jogo que lhe é desfavorável e não hesitou em abraçar a causa conservadora, mesmo que à custa da luta histórica das mulheres. Antes do primeiro turno, sua mulher, Mônica Serra, foi às ruas dizer que Dilma era favorável a "matar criancinhas". Nem Geraldo Alckmin, o candidato da Opus Dei, derrotado por Lula em 2006, foi tão longe no moralismo e no terror.

Ao assumir tal papel, a mulher de Serra revela-se uma tremenda carola, que realmente acha que a descriminalização do aborto é uma operação mata criancinhas, ou apenas se alia ao jogo oportunista do marido. Mônica Serra, aliás, faz o protótipo da mulher à moda antiga, submissa, que só aparece na campanha para atacar o Bolsa Família e espalhar inverdades, enquanto ouve calada os conselhos públicos do marido-candidato a seu vice de que amante "tem que ser uma coisa discreta".

Como se nota, os prejuízos que a campanha de Serra acarreta à questão da mulher no Brasil vão além do tema pontual do aborto e enveredam pelo comportamental. Na sua atual propaganda na televisão, o tucano utiliza uma atriz, sentada em uma poltrona dentro de casa, com óculos pendurado ao pescoço, para questionar as ligações de Dilma com a ex-ministra Erenice Guerra. É o modelo da dona de casa, na acepção negativa do termo. É o tipo da mulher que não trabalha, não tem opinião própria, e puxa um fuxico, "de mulher para mulher", para levantar as suspeitas. Só faltaram os bobs na cabeça.

As mulheres no Brasil tiveram que conquistar o direito à educação, pois a lei só lhes dava acesso ao ensino fundamental e não a uma formação completa. E quando isso se tornou um direito, enfrentaram a reprovação de uma sociedade que achava que o lugar da mulher era em casa, cuidando da família e dos filhos. Depois, obtiveram o direito ao voto, inicialmente só concedido com autorização dos maridos, e que se tornou pleno e obrigatório no pós-guerra, em 1946.

Com o passar do tempo, foram à luta para exercer suas profissões, enfrentando os preconceitos, os baixos salários e a remuneração desigual. Na Constituinte de 1988, homens e mulheres aparecem finalmente em condição de igualdade em direitos e obrigações. O governo Lula cria, logo em seu primeiro dia, a Secretaria Especial de Mulheres para efetivação de políticas públicas de gênero, e, em 2006, aprova a Lei Maria da Penha, considerada uma das mais avançadas do mundo no enfrentamento da violência contra a mulher, geralmente praticada no próprio lar.

Os benefícios do Bolsa Família são entregues preferencialmente às mulheres, pois considera-se que administram melhor os recursos. O protagonismo da mulher se espalha em todos os campos. Elas conquistam a liberdade. Escolhem se e com quem querem viver ou casar e se desejam ou não ter filhos.

E na primeira vez em que duas mulheres são candidatas à Presidência surge a ameaça do retrocesso em suas conquistas históricas. Concepções religiosas são válidas, mas não podem tolhir o avanço da sociedade brasileira. Este é um estado laico. A questão da descriminalização do aborto, tema que Lula acabou excluindo do Programa Nacional de Direitos Humanos, justamente por pressões religiosas, poderia evoluir com Dilma presidente, mas talvez nem vá mais diante da campanha moralista que se montou contra ela. Poderá ser uma oportunidade histórica perdida. E quem mais a sentirá, literalmente na carne, serão as mulheres brasileiras.

* Jornalista carioca. Trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil, Agência Estado e Agência Reuters. No JB foi editor de política e repórter especial de economia.
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