domingo, 3 de outubro de 2010

Eleições no Brasil – ASSIM SE VAI VER A FORÇA DE LULA

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ALEXANDRA LUCAS COELHO, em São Paulo – PÚBLICO – 03 outubro 2010

A rua está tomada, apesar da chuva. Tanta gente veio ao centro histórico de São Paulo ver Marina Silva na última acção de campanha, que a onda verde transbordou para a estrada, interrompendo o trânsito. E a euforia é tal que a candidata não conseguirá completar a caminhada prevista, até à Sé.

Nascida pobre, mulher e com sangue negro, esta filha da mais remota Amazónia pode ser a surpresa das eleições de hoje no Brasil.

Durante semanas, as sondagens deram vitória na primeira volta a Dilma Rousseff, a candidata do presidente Lula. Mas quem percorreu um pouco do Brasil viu como o apelo de Marina, candidata pelo Partido Verde, colhe votos à esquerda e à direita, dos pobres rurais aos snobes de São Paulo, dos ambientalistas aos evangélicos.

Isso não vai pôr em causa a vitória de Dilma, que nas últimas duas sondagens da Datafolha e do Ibope aparece respectivamente com 52 e 50 por cento. Ou seja, a não ser que um terramoto aconteça, a candidata que Lula quis será certamente a vencedora da votação de hoje. E esse é o fenómeno mais certo desta eleição: como a popularidade de Lula conseguiu impor uma quase incógnita, e sem carisma.

Mas se Dilma não tiver 50 por cento mais um voto, haverá segunda volta. E, se isso acontecer, "será por causa dos votos da Marina", como diz ao PÚBLICO o analista José Roberto de Toledo, do jornal Estado de São Paulo. Mesmo que em segundo lugar fique o candidato do PSDB José Serra (31 e 27 por cento nas pesquisas), terá sido Marina (15 e 13 por cento nas pesquisas) a tirar os votos da maioria absoluta a Dilma.

As eleições de hoje são gerais e obrigatórias e envolvem mais de 134 milhões de eleitores. O voto é electrónico, digitando os números de cada candidato por esta ordem: deputado estadual, federal, senador, governador e presidente. O resultado só estará apurado quando for madrugada de segunda-feira em Lisboa. Se houver segunda volta, será a 31 de Outubro.

Dilma vota em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, onde fez a sua carreira política e depois deverá ir para Brasília. O paulistano Serra vota em São Paulo. Marina vota em Rio Branco, capital do pequeno estado do Acre, na Amazónia, e vem para São Paulo ver os resultados.

Onda na chuva

Sexta de manhã. São os últimos cartuchos da campanha. Céu branco, garoa não tarda. Garoa é chuva-de-molha-tolos. Chamam a São Paulo a "terra da garoa". A praça ao lado da prefeitura está cheia de bandeiras vermelhas: a gente do Partido dos Trabalhadores (PT), à espera dos candidatos a governador e senador.

Depois de ter escolhido São Paulo para o comício de encerramento ao lado de Lula, segunda-feira, Dilma anda noutros estados. Mas Serra e Marina agendaram caminhadas paulistas hoje.

A de Marina tem concentração marcada para daqui a pouco, do outro lado do Viaduto do Chá, frente ao belo Teatro Municipal, em recuperação. Foi nestas ruas que a cidade começou, e as jóias oitocentistas convivem agora com arranha-ceús como o do Itaú, onde cá em baixo os bancários estão em greve e no topo vão aterrando helicópteros.

Mesmo antes da hora marcada, 11h, já há bandeiraço verde no calçadão, e um infatigável animador de megafone: "Vamos fazer história, gente. Olha a juventude aqui! Marina já está em primeiro em Brasília! Marina já passou Dilma em Belo Horizonte! Os mineiros falaram assim: "Uai, por que não a Marina Silva?" É o tsunami verde mudando a política brasileira!"

Um entusiasta com dois metros de altura mete conversa com a repórter e ao ouvir o sotaque exclama: "Eu quero ir morar na serra da Estrela com os meus filhos. Se não, Sintra também está bom." Mas o Brasil não está a mil? Ele ri. "Você não vive aqui, não é? Esse país está vivendo do crédito. Vai explodir."

Já cai garoa. Passa um carro de campanha a dizer "William Woo!" É um candidato a senador. Isso é São Paulo, japoneses e afrodescendentes cruzam-se em campanha.

"O grupo afrodescendente Onda Verde do PV saúda Marina Silva", diz uma faixa agarrada por dois velhos mulatos grisalhos, entre as bandeiras de Marina que se vão juntando.

Ao lado está a faixa da "diarista Nice", uma enérgica mulata de 56 anos. Diarista é empregada doméstica. "Cada dia eu vou num lugar, cuido de senhores, passo roupa, faço comida, faço faxina, eu estou no meio do povo", explica, sem parar de dançar a canção da campanha ("Ela é da Silva! Ela é da selva! Ela é Marina! A gente é ela!") Nice vive na zona norte e movimenta-se de ônibus e a pé "carregando muito peso". Faz 1000 reais por mês, o equivalente a 430 euros, dois salários mínimos brasileiros. Apoia Marina "porque ela é uma pessoa humilde, vem do povo, e, quando as pessoas vêm de baixo, sabem dar valor".A mesma razão que levou (e continua a levar) milhões de brasileiros a confiar em Lula. Uma parte dessa utopia foi captada por Marina. E por ter reduzido em 50 por cento a devastação da floresta amazónica quando era ministra, capta também o voto da juventude mais ecologista que partidária. Por exemplo, Guilherme, 31 anos, que aqui toca saxofone enquanto anda de monociclo e tem uma bicicleta tatuada na barriga da perna. "A gente vê o pessoal da Dilma e do Serra ganhar para vir fazer campanha, e eu estou aqui de graça." Até que a garoa desaba em chuva grossa e a multidão tenta amontoar-se no átrio do shopping em frente.

A campanha distribui plásticos. Quando a chuva abranda, o calçadão volta a encher. Pela uma da tarde o homem do megafone avisa que Marina vai chegar pela direita, e então começa a loucura.

Toda a gente corre para a direita, pára e depois começa a movimentar-se a caminho da Sé. Furando a custo, de vez em quando avista-se a cara de Marina, a sorrir, um pouco esmagada. "Pessoal, vamos abrir! Vamos abrir!", gritam em vão os organizadores, enquanto as pessoas se amontoam por cima das câmaras de televisão, com telemóveis, e a gritar o nome de Marina. "Vamos fazer um cordão para ela andar!!!", continuam os organizadores. E a mole humana, nada.

Os repórteres esticam os microfones para apanhar o que Marina diz e mal se ouve. "É tsunami, é onda verde. No distrito federal, já estamos em primeiro lugar. Em Salvador, em segundo. Em Curitiba, a gente não pára de crescer. Até ontem, em Belo Horizonte, estávamos empatados com a ministra Dilma. No Rio, já passamos muito o Serra. O que as pesquisas estão mostrando é muito menor do que o que vocês estão vendo aqui na rua." O Brasil, diz Marina, "terá uma grande surpresa", duas mulheres na segunda volta, ela será "a que efectivamente pode disputar com a Dilma", e governará "com os melhores do PT, PSDB, PMDB, PDT".

Entretanto, o caótico cortejo atravessa o viaduto até chegar frente à prefeitura. A chuva continua, mas não desfaz a multidão. E é por causa da multidão, não da chuva, que o pessoal da campanha traz um carro para apanhar Marina bem antes da chegada à Sé.

"Não dá para ela andar aqui, mas a gente vai continuar", diz o jovem Walter, calquitos de Marina nas bochechas.

Serra mortiço

Do centro histórico para uma cidade periférica: Osasco. Uma hora e picos de carro desde São Paulo. A caminhada de José Serra vai partir do calçadão frente ao Osasco Plaza Shopping. É uma rua pedonal cheia de armazéns, lojas populares, lojas-do-chinês, e ao longo do percurso há gente colocada com as bandeiras azuis de Serra. Calha que de todas as pessoas com quem o PÚBLICO fala, só uma é voluntária. As outros são contratadas a 600 reais por mês. "Mas tem muita gente voluntária aqui", vão dizendo.

A atmosfera geral está mortiça. "Você vai ver daqui a pouco, quando o candidato chegar, vão rodear ele", tempera a assessora.

Não exactamente. A chegada de Serra é o anticlímax. Tanto que fica na rua a acabar uma chamada de telemóvel com bastante espaço à volta. Aliás, na primeira metade da caminhada, Serra vai ter tanto espaço que a repórter até se vê cumprimentada, porque está ali à mão. O contraste com a caminhada de Marina é total.

Os repórteres com experiência na cobertura do PSDB explicam que o partido não tem militância de rua, ao contrário do PT, e da onda nova de Marina. Seja como for, a evidência é que Serra não entusiasma. Ele bem entra aqui na sapataria e ali na loja-do-chinês, e aperta mãos, dá beijos, faz o seu papel, e tudo parece um pouco mecânico. E quando o cortejo enfim ganha corpo, e Serra passa a estar realmente rodeado, já está com ele Geraldo Alckmin, o popular governador do PSDB em São Paulo, que deverá ser reeleito.

Agora, sim, há muita gente a gritar e a querer tirar foto com os candidatos, mas parece ser mais excitação e um-minuto-de-fama do que fervor político.

Alckmin e Serra chegam a dançar, mas politicamente o momento mais animado é quando a caminhada de Serra se cruza com um dragão de tecido debaixo do qual caminham militantes do PT, e mais adiante o dragão volta à carga. Bramido dos dois lados, o normal, mas nem sequer confronto.

Corrupção e aborto

Candidato de circunstância, sem dinâmica, Serra não tem oscilado muito nas últimas sondagens.

Dilma teve uma ligeira quebra depois do escândalo de corrupção que envolveu Erenice Guerra, seu ex-braço direito na Casa Civil. Mas a quebra mais recente terá a ver com o aborto, que não é legal no Brasil. Em 2007, Dilma falou em mudanças na lei. Agora, páginas na Internet mostraram-na como uma defensora da prática de aborto. Para conter o clamor religioso, ela veio dizer que era contra a prática e não tomaria iniciativas para a legalizar. O PT improvisou uma reunião de última hora com Igrejas evangélicas e o pastor Edir Macedo da IURD apareceu a apoiar Dilma.

Ainda assim, as sondagens do Ibope mostram que Dilma caiu bastante no voto dos evangélicos, que representam 20 por cento dos eleitores brasileiros. E esta queda favorece sobretudo Marina, que é evangélica. "É a primeira vez na história do Brasil que uma questão religiosa pode afectar a eleição", sublinha ao PÚBLICO José Roberto de Toledo. Comparativamente, acha este analista, "o impacto das denúncias de corrupção foi menor".

No último debate de campanha, em que Serra e Dilma não se confrontaram, o tema da corrupção nem foi abordado. E em geral pouco se falou do escândalo do "mensalão", que sacudiu o Governo do PT há cinco anos, quando se descobriu que o partido dava mesadas a deputados.

Em véspera da eleição, acaba mesmo de sair um livrinho chamado O Governo Lula e o Combate à Corrupção, assinado pelo ministro Jorge Hage, defendendo que o Governo Lula tirou "a tampa do esgoto" e revelou "a sujeira" acumulada há muito. Ou seja, que a corrupção "está sendo investigada e revelada de modo sistemático e eficaz" e por isso é que "há uma maior percepção do problema pela sociedade". Uma tese que indigna os desiludidos do PT.

A verdade é que a corrupção não fez mossa na popularidade de Lula, e o fruto disso chama-se Dilma.

As duas mulheres

Hélio Gaspari, da Folha de São Paulo, acha que "o fenómeno desta eleição é Dilma", e só se Marina alcançar 15 por cento será mesmo um "fenómeno social". Mas não duvida de que, se houver segunda volta, será por causa de Marina, que é "um voto sem culpa", de que "ninguém se envergonha", e, nesse sentido, um "voto livre".

José Roberto de Toledo, do Estadão, também crê que o fenómeno é Dilma, "pelo facto de até ao início do ano ser uma desconhecida", o que só demonstra o "poder de transfusão" de Lula. "Podia ter sido o chefe de gabinete dele a candidatar-se que daria no mesmo."

Marina, diz Toledo, "tem um voto muito forte no nível superior, onde está praticamente empatada com Dilma e Serra". Mas "pega tanto gente descontente à esquerda como à direita" e a isso "mistura-se o voto evangélico, que é o das pessoas mais pobres e das mulheres". Além disso, o vice de Marina, Guilherme Leal, "tem apelo naqueles que chamamos "os de gargalhada" os A-A-A", os mais ricos.

Em suma, "Marina é uma contradição, tanto pode ter o voto dos "darwinistas" ambientalistas como dos criacionistas, é meio Frankenstein". Pessoalmente "tem uma história de vida muito bonita, tem um passado, e passa mais autenticidade do que a Dilma" - mesmo o facto de Dilma ter vencido um cancro, diz Toledo, "não desperta empatia nas pessoas". Marina "tem um carisma que falta tanto a Serra como a Dilma". Veremos se chega para atrasar os planos de Lula.
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