DIÁRIO DE NOTÍCIAS, editorial – 16 outubro 2010
O que ontem aconteceu revela bem o estado do Governo e as dificuldades do País. Numa desconsideração institucional sem precedentes para com o Parlamento e os portugueses, o Orçamento do Estado entregue à Assembleia da República, uma vez mais no limite do prazo (apenas 35 minutos antes do fim do dia 15), não continha o relatório em que devem constar as explicações sobre as opções económicas e financeiras do Executivo - e todos os grandes números por que se orienta essa mesma política. O que significa que o estado das contas nacionais é mais grave do que imaginamos, mas também que todas as grandes decisões tomadas o foram fora de prazo - a assunção da verdadeira dimensão da crise e o anúncio das medidas para lhe fazer face pelo primeiro-ministro têm afinal apenas três semanas -, tornando assim impossível fechar com tempo e rigor o documento final a horas.
Se foi cometida uma ilegalidade, é matéria de difícil conclusão. A Lei de Enquadramento Orçamental é clara ao referir que o Orçamento é acompanhado pelo relatório (que agora está em falta), mas mantém um grau de interpretação que não permitiu à oposição clamar pela ilegalidade. Mas a verdade, pura e dura, é que o Governo falhou um documento essencial: aquele em que se fundamentam as previsões macroeconómicas e todas as políticas essenciais para o ano que se segue. Sem ele, por exemplo, não sabemos o que fará o Estado para cortar na despesa - a não ser os cortes nos salários da função pública, inscritos no articulado já entregue. Ora, no momento em que se exigem sacrifícios gigantescos aos cidadãos e em que se pede e pressionam os partidos, em nome da sustentabilidade do País, para que aprovem este Orçamento - "o mais importante dos últimos 25 anos", segundo o próprio ministro das Finanças, Teixeira dos Santos -, não é aceitável o que ontem se passou.
Pelo quarto ano consecutivo, assistiu-se a uma rábula na entrega de um documento fundamental: depois do défice errado, da pen drive vazia, da conferência de imprensa a cinco minutos da meia-noite, a sucessão de atrasos que culminou com a falha deste ano o Governo mostra-nos que não trabalhou com tempo os números determinantes e decisivos, voltou a deixar para o fim questões que quer que todos considerem essenciais, e não soube, ou não estava preparado, para as dificuldades que todos anteviam.
Ninguém duvida de que não terá sido fácil elaborar um documento marcado por medidas de austeridade duríssimas, cortes dramáticos de salários, pensões e outros apoios sociais e aumentos brutais de impostos. Mas, e até porque o Governo decidiu ir dando a conhecer muitas dessas decisões difíceis ao longo da semana, numa estratégia de diluir as más novas pelos dias, não se esperava que faltassem ainda "conferir milhares de números", que só serão entregues esta manhã ao presidente da Assembleia da República, Jaime Gama.
A falha do Governo, numa situação inédita pelo menos desde 1978, está a gerar já uma onda de críticas dos partidos que falam numa atitude irresponsável e de total falta de respeito. Quando tanto se pede consenso, há erros que não se podem cometer. As dificuldades nacionais exigem outro tipo de resposta, por mais complicado e difícil que seja o trabalho do nossos governantes.
Hoje, quando apresentar esse documento ao Parlamento e ao País, era bom que Teixeira dos Santos pedisse desculpa. Pelo menos por uma vez, era bom ouvir essa palavra do Governo.
A “PEN” CONTINUA A SER PORTUGUESA
FERREIRA FERNANDES – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião
Um orçamento, como qualquer pintor de paredes que vai lá a casa pode explicar, são números. Tanto para estucar, tanto para tintas, tanto para mão-de-obra, enfim, tanto de despesas, contando com o tanto de receitas que espera que lhe passemos para a mão.
Porém, em tratando-se dessa gravidade que é o Orçamento do Estado português, a coisa não se passa com duas demãos. É, antes mesmo de ele existir, um duelo psicológico tremendo. Uma chantagem ("vota!"), uma teimosia ("não voto!"), um coro ("vota! vota! vota!") e (esse, o mais português) um tabu ("não digo").
O psicodrama vale o que vale porque se fizermos um balanço toda a gente sabe o que vai acontecer: o que sempre tem acontecido. Isto é, o Orçamento será aprovado.
Apesar dessa inevitabilidade, passamos semanas a discutir uma probabilidade inexistente. Um Orçamento a sério deveria começar por cortar na despesa dessa discussão anual e inútil. Posto esse nada de lado, há ainda o dia, como foi o de ontem, em que o Orçamento chega ao parlamento. Já veio em calhamaços, em disquetes e pens, mas há todos os anos um ponto comum: nunca chega a horas.
O Orçamento pretende acertar nas mais complicadas estimativas para todo o ano seguinte, mas não consegue nunca acertar no dia de entrega... Resta este acerto: Orçamento diz-se português e é. Até mais não.
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