DAVID MALACARIA – 30 DIAS
REPORTAGEM DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO
Crônica de um conflito de décadas, que pode ter chegado a uma virada
A região dos Grandes Lagos é realmente rica. Talvez uma das mais ricas do mundo. Em particular onde mais se concentra a riqueza é na parte leste da República Democrática do Congo (daqui em diante apenas Congo, ndr). Porém, infelizmente na África, quando uma região é rica, desencadeia-se uma guerra. Esta nasce longe daqui, ou seja do vizinho Ruanda.
De Ruanda ao Congo
Para tentar entender um quadro complexo é melhor olhar de longe. Assim deve ser para a nossa história que inicia em Ruanda, quando, no início da década de Sessenta, os hutus assumiram o poder. Para muitos tutsis, etnia minoritária derrotada, abriram-se as estradas do exílio. Uma diáspora que se alarga aos países limítrofes e que, na década de Oitenta, inicia a dirigir-se na direção de Uganda, onde nasce a FPR (Frente Patriótica Ruandesa).
Em setembro de 1990, Ruanda recebe o Papa João Paulo II em uma visita que, nas intenções do Pontífice, deveria dar novas esperanças ao país. Porém, por uma trágica ironia da história, logo que terminou a visita, explodiu o caos. Em outubro a FPR invadiu o país. Os rebeldes eram guiados por Paul Kagame, um militar ligado ao presidente ugandense Yoweri Museveni. Depois de anos de tragédias, as primeiras negociações de paz. Mas em abril de 1994, Sábado Santo, ao regressar de um encontro de negociação, o avião onde viajava o presidente ruandês, Juvenal Habyarimana, foi derrubado. Para os hutus, que apoiavam o presidente, foi o estopim do massacre. Iniciou a matança dos tutsis e dos hutus considerados moderados, ou seja, imunes da loucura homicida que domina o país. Em cem dias são mortas 800 mil pessoas. No verão de 1994 Paul Kagame toma Kigali. A guerra termina junto com o genocídio. Parece o fim de um pesadelo, ao invés é o início de um outro.
Os hutus, amedrontados por uma possível vingança dos tutsis, abandonam o país refugiando-se no Congo. São dois milhões de pessoas entre militares regulares, milícias Interhamwe (sobre as quais se concentram as acusações de genocídio), mas principalmente civis, mulheres e crianças, que a ONU amontoa em campos de refugiados criados perto das fronteiras de Ruanda. A tensão permanece alta até que, em 1996, explode: Uganda, Burundi e Ruanda invadem o Congo. O conflito dura dois anos, depois de uma breve pausa, explode um outro, de 1998 a 2003, ainda mais sangrento.
Guerras e minas
Padre Franco Bordignon tem um olhar agudo de quem sabe discenir. Fomos encontrá-lo na casa geral dos xaverianos, em Bukavu, capital do Kivu do Sul, uma das cidades que mais sofreu durante o conflito. “Na propaganda dos invasores, a primeira guerra tem várias justificativas. Antes de tudo a defesa dos Banyamulenge, uma população de tutsis ruandeses que tinha emigrado para o Congo já no século passado e que, no início da década de Noventa, começou a ser submetida a violências. Depois a ameaça dos refugiados hutus nas fronteiras de Ruanda, os quais, segundo os ruandeses, estavam prontos para efetuar um novo genocídio. Na realidade tratava-se de aproveitar da fraqueza do Congo, que estava se desagregando sob o regime de Mobutu”. Em 1996 os exércitos ruandês, burundinês e ugandense invadiram o país. Na liderança foi colocado o congolês Laurent Kabila apresentado como o libertador do Congo.
A guerra terminou em maio de 1997. Kabila torna-se presidente. Recebe um país devastado, com as regiões orientais ainda sob o domínio dos exércitos ocupantes. Mas em menos de um ano estabelece novas alianças, provavelmente com Cuba e China, conta Bordignon, e se rebela aos seus tutores, intimando-lhes para que retirem seus soldados do país. E é o que acontece, mas por pouco tempo.
Em 2 de agosto de 1998 as hostilidades recomeçam. Em teoria trata-se da rebelião de alguns senhores da guerra do Leste contra o governo de Kinshasa, na realidade por trás destes escondem-se sempre Ruanda, Uganda e Burundi (mais dinheiro e instrutores ocidentais). Em Ituri dominam as milícias de Jean-Pierre Bemba, em Kivu o RCD (Rassemblemant Congolais pour la Démocracie, movimento pró-ruandês) que, na realidade nasceu em Ruanda duas semanas depois do início do conflito, como esclarece Bordignon. O missionário comenta: “Se tivesse sido uma invasão, a ONU seria obrigada a fazer alguma coisa. Ao invés, assim é um problema interno e a ONU é praticamente excluída...”.
Em poucos meses Kabila está em sob pressão quando, inesperadamente, chega para socorrê-lo tropas de Angola, da Namíbia e contingentes de outros estados africanos como o Zimbábue e o Sudão. É a chamada Primeira Guerra Mundial africana.
“Um conflito que dava todas as vantagens às multinacionais ocidentais, que tomam conta das minas do Leste”, afirma Bordignon. “Ainda hoje Ruanda é um dos maiores produtores de minerais preciosos do mundo, entre os quais o coltan, mas no seu território não há quase nenhuma mina...”. Bordignon sorri referindo-se à hipocrisia das multinacionais: o coltan é usado para realizar componentes para os telefones celulares. Depois das denúncias do que estava acontecendo no Congo, vários produtores, assustados pela má publicidade apressaram-se em colocar nos celulares a escrita: ‘Construído com material não proveniente das regiões de guerra’. “Claro!”, exclama o xaveriano, “eram provenientes de Ruanda...”. E de improviso lembramo-nos daquele bairro, em Kigali, com suas casas limpas e bem organizadas, chamado pela população local Merci Congo (Obrigado Congo), onde se situa a importante embaixada dos Estados Unidos...
“Na realidade, por trás de Kagame há um projeto muito amplo, que acompanhou sua subida e consolidação no poder”, explica a xaveriana irmã Teresina Caffi, da ‘Rete Pace per Il Congo’, e é o estímulo para promover uma mudança geopolítica nos Grandes Lagos. Os Estados Unidos, mas de modo geral o mundo anglo-saxão, o sustentaram para poder tomar conta das riquezas minerais do Leste do Congo. Para fazer isso precisavam de uma base de apoio na África. E Ruanda, país pequeno e bem controlável, era o ideal...”.
O genocídio congolês
Até agora falamos de guerras, cujo Tratado de Sun City, na África do Sul, colocou fim. Um conflito que causou quatro milhões e meio de mortos entre 1996 e 2003 (mas há informações de cinco milhões e meio apenas na segunda guerra). Entre estes não apenas os mortos assassinados, mas também os que a guerra matou de sofrimento, obrigados a viver nas florestas sem alimentos e sem remédios, sujeitos aos vírus e às doenças tropicais. Chamam de mortes indiretas, nem por isso menos desejadas. Mas o termo guerra não é suficiente para explicar o que aconteceu nesta parte do mundo: massacres incessantes, estupros usados como arma de destruição de massa (para terrorizar e espalhar a Aids), agressões cotidianas de militares famintos de ambas as partes, que acabaram com todas as fontes de sustentação dos vilarejos, recrutamento difuso de crianças-soldado. “Segundo um estudo”, prossegue Bordignon, “em 2001 havia 2950 mortos por dia, um número de vítimas equivalente ao causado pelo atentado às Torres Gêmeas. Em prática, tínhamos um 11 de setembro por dia. Mas não era notícia...”.
Em 2006 foram realizadas as eleições presidenciais, etapa decisiva para o processo de paz. Parece a virada: uma votação regular e de massa elege Joseph Kabila, filho de Laurent (assassinado em 2001), sem causar excessivas contestações. Para pacificar ainda mais a situação, a integração das milícias dos senhores da guerra no âmbito do exército regular.
Mas as tragédias continuam. No Leste, e não apenas ali, continuam os massacres atribuídos a grupos armados denominados Rasta ou aos Interhamwe. “Na realidade”, explica irmã Teresina, “são muitos os que consideram que se trate de uma estratégia oculta, destinada a fazer cair a culpa em um destes grupos, e em particular os Interhamwe. Para criminalizá-los e manter alta a tensão”. Para justificar uma outra, eventual invasão. Também, dizem, dos originários Interhamwe, restam bem poucos, afinal passaram-se quinze anos desde então...
O pesadelo Nkunda
A causa do novo momento de tensão no Leste do Congo foi a escalada de Laurent Nkunda, um dos velhos senhores da guerra. O atual líder do massacre dissemina nos arredores de Goma morte e terror. Mais de dois milhões de desalojados. Dizem que há relação entre a sua escalada militar e o acordo assinado no verão de 2008 pelo presidente Kabila com a China, que projeta a construção de obras e infraestruturas em troca de recursos minerais. Um acordo duramente contestado pelo rebelde...
A loucura de Nkunda espalha-se principalmente no Kivu do Norte, detendo-se às portas de Goma. Parecia que a cidade estivesse destinada a cair e a guerra a se espalhar. Depois, em 22 de janeiro passado, alguma coisa mudou, em uma inesperada quanto imprevisível operação conjunta, forças congolesas e ruandeses fazem-no prisioneiro.
Uma virada depois de anos de ódio. A paz finalmente está perto? Talvez. Ou senão, como explica Bordignon, Nkunda tinha-se tornado inconfiável aos olhos de quem o manobrava. Também, havia as pressões internacionais, em particular de algumas nações européias, ameaçando Ruanda que não iriam tolerar outras aventuras.
O acordo que levou à captura de Nkunda foi motivo de grande polêmica no Congo. As maiores suspeitas foram causadas pelo fato que o Parlamento não tinha sido informado sobre os conteúdos. Particularmente, causou muita preocupação a autorização dada para o ingresso de tropas ugandenses e ruandeses dentro de Congo. Aos primeiros, no nordeste, foi consentido capturar os rebeldes do LRA (Exército de Libertação do Senhor) em território congolês. Com os ruandeses, mais ao sul, foi concordado, que além de participar da prisão de Nkunda, se deveria terminar com a presença da armada de milicianos Interhamwe, considerada uma ameaça pelo regime de Kigali. Por isso foi falado de uma nova invasão, desta vez legalizada, e alguns alertaram que seria o início de um novo período de tragédias.
Na realidade, apesar da presença estrangeira ter sido prolongada além do tempo previsto, o alarme parece ter sido anulado. Os militares ruandeses e ugandenses, ao menos segundo as fontes oficiais, voltaram aos seus respectivos países.
Estamos realmente diante de uma virada de paz nascida, paradoxalmente, graças aos mesmos protagonistas de tempos atrás? Os sinais neste sentido se multiplicam, mas depois de anos de guerra e de desinformação devem atravessar naturais reservas e razoáveis desconfianças. Enfim ainda deve-se esperar.
Também os bispos do Congo, no final do encontro realizado em Kinshasa em fevereiro passado, apresentaram um documento que exorta a uma espera vigilante. De fato, mesmo evidenciado com alívio os pequenos grandes “sinais de pacificação”, os bispos sublinham “regiões sombrias” ainda a serem clareadas. Particularmente significativo o título do documento: “Sejam vigilantes”.
Um convite dirigido também à comunidade internacional.
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