JOSÉ LUTZEMBERG – ANJO DE LUZ
"Há pouco tempo Gaia se olhou no espelho pela primeira vez. Células de seu cérebro a fotografaram da Lua. Ela se achou magnífica, azul, verde, diáfana."
A frase é do ecólogo e engenheiro agrônomo José Lutzemberger e se refere à Terra. Para ele, Gaia, nome poético que a mitologia grega dava à deusa da Terra, é um ser vivo. Os seres humanos são células, algumas cancerosas, de seu tecido nervoso.
Lutzemberger, um dos pioneiros na defesa da Ecologia no Brasil, fundador da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) nos anos 60, encarou esta hipótese como um conceito. É com muita reverência que ele fala sobre ela. Segundo ele, o “conceito de Gaia”, elaborado pela primeira vez pelo cientista britânico James Lovelock e pela cientista americana Lynn Margulis, deve seu nome ao escritor William Golding. Ele o propôs depois de os dois descobrirem que a ecosfera era um ser vivo.
"A ecosfera não é um simples sistema homeostático, automático, químico-mecânico. O planeta Terra é um ser vivo, um ente com identidade própria, o único de sua espécie que conhecemos. Se outras "gaias" existem no Universo, nessa ou em outras galáxias, serão todas coerentes. Um ser vivo tão destacado merece nome próprio" - justifica Lutzemberger, enquanto explica que esta visão é diametralmente oposta a até agora adotada pela ciência, que coloca os seres humanos como observadores externos da natureza.
Segundo ele, hoje é comum na visão científica a imagem da Terra como uma nave espacial. É uma figura na qual a Terra é apenas o palco da vida e, para nós, humanos, não passa de recursos aproveitáveis.
Mas a nave espacial engana. Uma nave tem passageiros. Em Gaia não há passageiros. Tudo é e todos somos Gaia.
O ecólogo gaúcho começa a explicar o conceito de Gaia pela interação. A relação profunda entre todos os elementos do planeta. Uma visão quase religiosa da Terra. Distante da doutrina cartesiana, reducionista, que durante séculos norteou o pensamento científico, ele convida para um “experimento mental” e pergunta:
-"Acaso seria possível um planeta como o nosso, mas no qual a vida estivesse constituída apenas por animais, sem que existissem plantas? É claro que não. Por que não? Mesmo aqueles animais que só se alimentam de carne, como o leão ou o gavião caramujeiro, que carne comem? Eles comem carne de animais herbívoros ou de animais carnívoros que comeram herbívoros. A coisa sempre termina na planta. Por que termina na planta? Muito simples: a planta sabe fazer uma coisa que animal algum consegue fazer. Elas dominam a técnica da fotossíntese. Captam energia solar. Retiram do ar gás carbônico que combinam com água para fazer substâncias orgânicas. Neste trabalho elas liberam oxigênio. A reação da fotossíntese fornece duas coisas: carboidratos (açúcar, amido, etc.) e oxigênio.
Os animais, para todas as suas atividades, necessitam de energia. A única fonte de energia inesgotável na Terra é a radiação solar, enquanto durar o Sol, mais uns cinco bilhões de anos. Para captar a luz é preciso ficar parado, apresentar grande superfície de captação. É o que as plantas fazem com suas folhas. Pela sua natureza dinâmica, os animais não podem fazer isso. Servem-se das plantas, aproveitam as substâncias orgânicas produzidas por elas.
-Invertendo a pergunta inicial: Poderíamos imaginar um planeta com vida sem animais, só com plantas? Impossível. O alimento principal das plantas é o gás carbônico, um elemento raro na atmosfera. Ele constitui apenas 0,003% de nosso envoltório gasoso. São os animais que não permitem que as plantas morram de fome. Eles dominam uma técnica inversa da fotossíntese, a respiração, pela qual retiram o oxigênio e colocam gás carbônico na atmosfera."
Para os que alegam que as plantas também respiram, Lutzemberger lembra que mesmo assim o balanço é positivo para o gás carbônico. Ele aponta um detalhe curioso. O catalisador da fotossíntese é a clorofila, um pigmento verde. E o catalisador da respiração é a hemoglobina, também um pigmento, mas vermelho. Na teoria das cores, verde e vermelho são complementares.
-"Ora, planta e animais fazem parte da mesma unidade funcional. São órgãos de um organismo maior" - deduz, explicando que esta complementariedade e inter-dependência entre planta e animal, fotossíntese e respiração, sedentariedade e mobilidade, é apenas uma entre infinidades de interações que formam o grande processo vital.
-"Em alguns solos úmidos, extremamente ácidos e pobres em nutrientes, o mundo vegetal consegue avançar com pioneiras muito especializadas, certas plantas carnívoras. Não conseguindo retirar minerais do solo elas se alimentam de insetos. Quando morrem, com o húmus daí resultante enriquecem o solo, preparando-o para outras plantas menos especializadas. A morte é fundamental no grande contexto."
A eficiência na fotossíntese proíbe às plantas viajar. Mas elas também têm que conquistar território. O fruto saboroso é o preço que elas pagam ao animal que o come pelo transporte de sementes.
A vida, afirma o cientista, jamais poderá ser compreendida nos termos de Descartes, que via nos seres vivos, com exceção dos humanos, simples máquinas, relógios ou autômatos. Só uma visão sistêmica, unitária, sinfônica, poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso planeta vivo. Atualmente, diz Lutzemberger, sobram biólogos mas está cada vez mais difícil encontrar naturalistas. A diferença entre eles está na veneração. Para o naturalista, a natureza não é um simples objeto de estudo e manipulação. “Ela é algo divino, e nós humanos somos apenas parte dela.” O naturalista procura a integração, a harmonia, a preservação, o esmero, a contemplação estética.
ECOSFERA
Dentro da visão naturalista surgiu o conceito de ecosfera, que é o conjunto e a interação de todos os ecossistemas entre si e com o mundo mineral. A biosfera está intimamente integrada na litosfera, na hidrosfera e na atmosfera. O todo constitui uma unidade funcional, um organismo à parte, um sistema dinâmico integrado, equilibrado, auto-regulado.
A vida existe neste planeta há pelo menos 3,5 bilhões de anos e nele se mantém até hoje porque a Terra reúne condições muito especiais: tamanho e rotação certos à distância certa de uma estrela de tamanho certo. Daí o âmbito certo de temperaturas propícias aos processos bioquímicos.
Fundamental para a vida é também o confronto dos três estados físicos: sólido, líqüido e gasoso. Para não se apagar, a vida ainda exige outras condições imprescindíveis: atmosfera de composição certa e em equilíbrio químico, salinidade certa nos oceanos, âmbito certo de pH. Devem estar presentes pelo menos uns 25 dos mais de cem elementos da tabela de Mendeleyev (Tabela Periódica dos Elementos), explica o ecólogo.
Quando a NASA preparou as primeiras naves não tripuladas que desceram em Marte com aparelhos supersensíveis para ver se encontravam alguma espécie de vida, James Lovelock, que trabalhava como consultor de projetos, disse-lhes para não perderem tempo. Com uma análise da atmosfera de Marte ou de qualquer outro planeta poderia se dizer se havia ou não vida. Bastaria identificar com o auxílio de um espectroscópio se a atmosfera estava perto ou longe do equilíbrio químico. A atmosfera terrestre parece violentar as leis da química. Por uma razão e lógica próprias este desequilíbrio é mantido, assim como a temperatura. A Terra tem homeostase. Desde que apareceu a vida, há 3,5 bilhões de anos, o Sol já ficou duas vezes mais quente. Mas a vida na Terra, ou a lógica de Gaia, como quer Lutzemberg, manteve a temperatura própria para vivermos em sua superfície. Lovelock, pensando mais profundamente no problema, resolveu inverter o enfoque tradicional, segundo o qual a vida existe na Terra porque reúne e mantém condições certas. Se a Terra oferece condições, deduziu, é porque a vida assim as mantém. A primeira atmosfera terrestre foi de hidrogênio, mas foi perdida por causa da pequena gravidade do planeta. A segunda proporcionava forte efeito-estufa, pois o Sol era duas vezes mais frio. Ela era constituída basicamente de gás carbônico, metano e amoníaco, com restos de hidrogênio da primeira. Era reduzinte e de origem eruptiva. Somente nela poderia aparecer a vida. Se as primeiras substâncias orgânicas surgissem numa atmosfera como a nossa, seriam rapidamente destruídas pela oxidação.
A partir do metano e do amoníaco da atmosfera, com a energia das descargas elétricas e da radiação solar, formava-se sempre mais material orgânico nos oceanos. Com isso diminuía o efeito-estufa. O sol estava ficando lentamente mais quente. Era preciso controlar. Os primeiros organismos só podiam alimentar-se da matéria orgânica existente nos oceanos. A "sopa primordial" começou a autoconsu-mir-se. Havia perigo de extinção. Por volta de 2,5 bilhões de anos atrás Gaia achou a solução. A fotossíntese permitiu à vida sintetizar sua própria matéria orgânica captando energia solar. Era uma solução, mas apresentava perigo - foi a primeira grande crise de poluição. O oxigênio liberado na fotossíntese era venenoso, mortal para os seres anaeróbios existentes. A vida superou aquela crise.
A atmosfera inverteu-se, de reduzinte passou a oxidante, tornando possível a vida animal. Mas as formas de vida anaeróbias sobrevivem até hoje no lodo dos banhados, na lama do fundo dos oceanos e nos intestinos dos animais superiores. São as bactérias metanogênicas. A poluição virou vantagem. Gaia superou sua pri-meira crise e continuou controlando o efeito estufa através de mecanismos de ho-meostase.
CÂNCER DE GAIA
No organismo de Gaia, nós, humanos, individualmente somos apenas células de um de seus tecidos. Um tecido que hoje apresenta-se canceroso, mas ainda tem cura, lembra Lutzemberger. Já somos os olhos de Gaia. Hoje atravessamos um momento decisivo na vida de Gaia, profetiza o ecólogo. O homem, conhecendo demais, cego de orgulho e com gula incontrolável, desencadeou um processo de demolição que supera as crises anteriores.
A sociedade industrial já está interferindo na concentração de gás carbônico na atmosfera, contrariando as tendências de Gaia em um de seus importantes sistemas de controle. Conseguimos aumentá-la de 0,025% antes da explosão industrial para 0,030% em menos de 200 anos. Uma variação de 20%.
Outro sistema de controle de temperatura encontrado por Gaia após a última glaciação está ameaçado. O sistema foi o alastramento das florestas tropicais úmidas no que hoje chamamos de Amazônia, Congo, Índia, Sri Lanka, Bangladesh, Indochina, Indonésia, Oceania, Austrália. Estas florestas têm uma fantástica evapo-transpiração. São gigantescos aparelhos de ar-condicionado que exercem in-fluência direta nos climas dos dois hemisférios porque estão na Linha do Equador.
Mais uma vez o homem está contrariando os desígnios de Gaia. Em todo o mundo estão sendo demolidas as florestas tropicais úmidas, num ritmo que alcança 100.000 km²/ano. No caso da Amazônia, se for devastada no Pará, o que parece certo logo após o ano 2000, poderá ser desencadeado um processo de colapso da grande floresta. Pois ela faz o seu próprio clima. Onde a floresta desaparece, adverte o ecólogo, é substituída por solo nu ou capoeira rala. No lugar da evapo-transpiração, o solo torrado pelo sol produz ventos ascencionais quentes. As nuvens se dissolvem, deixa de cair chuva mais adiante. Mas a Hiléia só sobrevive com chuvas copiosas.
-"Sobrarão recursos para Gaia? - indaga Lutzemberger - ou vamos incapacitá-la? Desde 1975 o clima anda meio caótico no mundo inteiro."
Ele relaciona ainda uma série de exemplos de auto-regulação de Gaia. A manutenção da salinidade dos oceanos, cuja origem dos sais é a meteorização das rochas (por isso deveria ser cada vez mais salgados, mas a vida regula e mantêm constante a salinidade). Afirma ainda que a integração é mesmo anterior ao nascimento do sistema solar, que é um bilhão de anos anterior ao nascimento de Gaia, adverte.
-"Nesse momento, nosso comportamento canceroso representa um perigo mortal para Gaia. Mas isto não é inevitável. Se soubermos usar sabiamente o potencial intelectual que ela nos propiciou, assim como a fabulosa tecnologia que daí surgiu, poderemos até mesmo assumir o controle consciente de Gaia. Sistema nervoso ela já tem, seríamos a massa cinzenta de seu cérebro. A moderna eletrônica, com seus computadores sempre mais perspicazes, comunicação global instantânea por satélite, já começa a estruturar algo que quase poderia tornar-se meta-sistema nervoso planetário. Mas o conteúdo deste fluxo nervoso terá que mudar. se conseguirmos esquecer nossas querelas, acabar com a prostituição da Ciência para a demolição da vida e para os delírios da corrida armamentista e da "guerra nas estrelas", se conseguirmos colocar nosso gênio em ressonância com Gaia, só o futuro poderá dizer das alturas alcançáveis."
Com os olhos dos astronautas e nas imagens de satélites, Gaia, pela primeira vez, viu-se a si mesma em toda sua singela beleza, diz o cientista. Brancos véus espiralando, ora tapando, ora revelando o azul profundo dos oceanos, o amarelo dos desertos, as diferentes tonalidades de verde: ora confundindo-se com os pólos. Poucos, pouquíssimos, dão-se conta do monumental, não somente em termos de história humana, mas em termos de história da vida, que representa aquela primeira foto de Gaia, ou aquela outra de Meia Gaia subindo solitária no firmamento, negro como piche, da Lua.
Este é um fato totalmente novo! Um momento decisivo na vida de Gaia. Uma situação faustina. Se continuar a cacofonia atual, o desastre será total para nós. Talvez nem tanto para Gaia, profetiza Lutzemberger. Gaia tem muitos recursos, tem muito tempo. Com novas formas de vida encontrará saída. Sobram-lhe ainda uns cinco bilhões de anos até que o Sol, em sua penúltima fase evolutiva, ao tornar-se "gigante-vermelho", venha a expandir-se até aqui antes de apagar-se lentamente. Gaia será reciclada nos gases incandescentes do Sol, assim como cada um de nós seremos reciclados no solo.
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