MÁRIO SOARES - TERRA
O Brasil é um país multirracial e multicultural, com a alegria de sê-lo, mas também de grande unidade política e coesão social. É um colosso demográfico, de enorme extensão geográfica e excepcionais recursos humanos e naturais. Uma amálgama que deu certo - daí o orgulho de ser brasileiro, a confiança do povo no futuro e em si mesmo. Não tem paralelo nas Américas. Só no mundo, entre os outros colossos emergentes: a Rússia, a China e a Índia.
O Brasil é um país multirracial e multicultural, com a alegria de sê-lo, mas também de grande unidade política e coesão social. É um colosso demográfico, de enorme extensão geográfica e excepcionais recursos humanos e naturais. Uma amálgama que deu certo - daí o orgulho de ser brasileiro, a confiança do povo no futuro e em si mesmo. Não tem paralelo nas Américas. Só no mundo, entre os outros colossos emergentes: a Rússia, a China e a Índia.
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A interpenetração das religiões e das civilizações nos diferentes estados brasileiros e a alegria natural do povo, apesar da mistura de etnias e origens, são fenômenos únicos, incomparáveis, que se manifestam excelentemente no carnaval brasileiro e na passagem do ano, quando se venera a deusa Iemanjá, rainha do mar, com as pessoas vestidas de branco, a deitar flores no azul do mar dessa terra. Todas essas coisas e também a história vivida fazem do Brasil, apesar de suas fragilidades sociais ainda não completamente vencidas, um país singularíssimo, com a explosão fácil da alegria incontida do povo, ao menor pretexto. A paisagem e a terra também ajudam, bem como a miscigenação de um só povo afro-indígena-brasileiro, falando a mesma língua e celebrando uma história comum, apesar da mistura de etnias, culturas e religiões.
Nos anos da Segunda Guerra Mundial, o grande escritor vienense, judeu e europeu, Stefan Zweig, refugiado no Brasil, no tempo das perseguições nazis, escreveu um livro de grande finura para a compreensão do fenômeno brasileiro intitulado, significativamente, Brasil, país do futuro. O que foi, nessa época, uma promessa de um visionário, tornou-se, naturalmente, uma realidade no século XXI e no início do novo milênio. O Brasil é hoje, no jargão geopolítico, mais do que um "país emergente", uma grande potência, como tal reconhecido e respeitado na cena internacional.
Para nós, portugueses, o Brasil, antiga colônia portuguesa, ter-se tornado uma grande potência é um orgulho nacional sentido por todos os portugueses, que não se consideram estrangeiros no Brasil. Todos os países lusófonos, as antigas colônias africanas e Timor, todos pertencemos com orgulho à CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa).
Foi no início do século XIX, precisamente em 1808, que se deu a fuga do rei português, D. João VI, para o Brasil, com o fim de escapar à invasão francesa de Junot. O Brasil transformou-se, desde então, no centro e na capital do império português, que se deslocaram para o território brasileiro, o que trouxe uma maior unidade ao imenso espaço que hoje ocupa. Aliás, a independência formal do Brasil foi liderada por D. Pedro IV, o mesmo Pedro I, mais tarde Imperador do Brasil, sem qualquer revolta ou ressentimento contra Portugal, ao contrário do que sucedeu com as colônias espanholas da Ibero-América.
Por isso, o presidente de Portugal da I República (1910-1926), António José de Almeida, quando visitou oficialmente o Brasil, em 1922, no Primeiro Centenário da Independência Brasileira, proferiu estas palavras sábias: "Venho, em nome de Portugal, agradecer ao Brasil ter-se tornado independente". Criou, assim, um pensamento e um modo político de estar que representam a melhor tradição portuguesa. A ditadura (1926-1974) tentou destruir, com o Ato Colonial Português, cópia do texto fascista italiano de mesmo nome, essa tradição, que a II República (1974) retomou com a descolonização, que pôs fim às "guerras coloniais".
Em tempos mais recentes, também em nome de Portugal, modestamente, procedi, na Embaixada do Brasil, em Lisboa, em 7 de setembro de 1994 - sendo embaixador do Brasil em Portugal o saudoso José Aparecido de Oliveira - à reabilitação da memória de Tiradentes, Joaquim José da Silva Xavier, herói da Inconfidência Mineira, cantada por Cecília Meireles. Na mesma linha afirmei, então, que "um herói do Brasil tem de ser, necessariamente, para o Portugal democrático de hoje, também um herói de Portugal, e não um traidor, como chegou a ser considerado no tempo da D. Maria I" e, depois, no Estado Novo salazarista.
Na verdade somos pátrias irmãs, unidas pela mesma língua e história, pertencendo ambas à mesma CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), que não é só uma comunidade de defesa da língua mas também de solidariedade política, de troca de conhecimento e de intercâmbio de interesses. Aliás, pertencemos também à Comunidade Ibero-Americana, que une os dois lados do Atlântico: Espanha e Portugal com os Estados da Ibero-América, de línguas espanhola e portuguesa (obviamente o Brasil). Como as duas línguas são ambas próximas e compreensíveis, pelas duas partes, formamos um total linguístico de cerca de 750 milhões de luso-espanhol falantes, o que representa um pouco mais de dez por cento da população mundial. Ora, isso será de grande importância, no futuro, para o Ocidente. Não o esqueçamos.
O livro que ora vos apresento, em parceria com o meu querido amigo Fernando Henrique Cardoso, A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica, é extremamente interessante, tem uma iconografia extraordinária e mostra, de forma muito clara e judiciosa, a invulgar participação dos africanos (negros, pardos e mulatos) na pintura, na escultura, nas artes plásticas em geral, na música e na literatura brasileiras. Os afro-brasileiros tiveram e têm - como resulta da análise deste livro tão atraente - um papel decisivo, nas diferentes épocas, nas artes, na música, erudita e popular, na literatura e na cultura em geral, que tem um brilho e uma originalidade incomuns que, sem a sua contribuição, nunca poderia ter tido.
É por isso, e muito bem, que este livro tão singular foi publicado pela primeira vez na grande data do Centenário da Abolição da Escravatura, patrocinado pelo Ministério da Cultura. A miscigenação foi sempre um traço essencial do colonialismo português, que extrapolou a mera exploração das riquezas dos continentes em que se implantou, diferentemente dos demais colonialismos. O Brasil em todos os aspectos - e também nesse, como ensinou Gilberto Freyre* - é, legitimamente, o maior orgulho português.
Lisboa, 17 de março de 2010
* O autor refere-se aqui ao conceito de luso-tropicalismo, criado por Gilberto Freyre.
**Mario Soares é ex-presidente de Portugal. Este texto é o prefácio da segunda edição de "A Mão Afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica", organizado pelo artista plástico Emanoel Araujo, atual Diretor-Curador do Museu Afro Brasil.
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Nos anos da Segunda Guerra Mundial, o grande escritor vienense, judeu e europeu, Stefan Zweig, refugiado no Brasil, no tempo das perseguições nazis, escreveu um livro de grande finura para a compreensão do fenômeno brasileiro intitulado, significativamente, Brasil, país do futuro. O que foi, nessa época, uma promessa de um visionário, tornou-se, naturalmente, uma realidade no século XXI e no início do novo milênio. O Brasil é hoje, no jargão geopolítico, mais do que um "país emergente", uma grande potência, como tal reconhecido e respeitado na cena internacional.
Para nós, portugueses, o Brasil, antiga colônia portuguesa, ter-se tornado uma grande potência é um orgulho nacional sentido por todos os portugueses, que não se consideram estrangeiros no Brasil. Todos os países lusófonos, as antigas colônias africanas e Timor, todos pertencemos com orgulho à CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa).
Foi no início do século XIX, precisamente em 1808, que se deu a fuga do rei português, D. João VI, para o Brasil, com o fim de escapar à invasão francesa de Junot. O Brasil transformou-se, desde então, no centro e na capital do império português, que se deslocaram para o território brasileiro, o que trouxe uma maior unidade ao imenso espaço que hoje ocupa. Aliás, a independência formal do Brasil foi liderada por D. Pedro IV, o mesmo Pedro I, mais tarde Imperador do Brasil, sem qualquer revolta ou ressentimento contra Portugal, ao contrário do que sucedeu com as colônias espanholas da Ibero-América.
Por isso, o presidente de Portugal da I República (1910-1926), António José de Almeida, quando visitou oficialmente o Brasil, em 1922, no Primeiro Centenário da Independência Brasileira, proferiu estas palavras sábias: "Venho, em nome de Portugal, agradecer ao Brasil ter-se tornado independente". Criou, assim, um pensamento e um modo político de estar que representam a melhor tradição portuguesa. A ditadura (1926-1974) tentou destruir, com o Ato Colonial Português, cópia do texto fascista italiano de mesmo nome, essa tradição, que a II República (1974) retomou com a descolonização, que pôs fim às "guerras coloniais".
Em tempos mais recentes, também em nome de Portugal, modestamente, procedi, na Embaixada do Brasil, em Lisboa, em 7 de setembro de 1994 - sendo embaixador do Brasil em Portugal o saudoso José Aparecido de Oliveira - à reabilitação da memória de Tiradentes, Joaquim José da Silva Xavier, herói da Inconfidência Mineira, cantada por Cecília Meireles. Na mesma linha afirmei, então, que "um herói do Brasil tem de ser, necessariamente, para o Portugal democrático de hoje, também um herói de Portugal, e não um traidor, como chegou a ser considerado no tempo da D. Maria I" e, depois, no Estado Novo salazarista.
Na verdade somos pátrias irmãs, unidas pela mesma língua e história, pertencendo ambas à mesma CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), que não é só uma comunidade de defesa da língua mas também de solidariedade política, de troca de conhecimento e de intercâmbio de interesses. Aliás, pertencemos também à Comunidade Ibero-Americana, que une os dois lados do Atlântico: Espanha e Portugal com os Estados da Ibero-América, de línguas espanhola e portuguesa (obviamente o Brasil). Como as duas línguas são ambas próximas e compreensíveis, pelas duas partes, formamos um total linguístico de cerca de 750 milhões de luso-espanhol falantes, o que representa um pouco mais de dez por cento da população mundial. Ora, isso será de grande importância, no futuro, para o Ocidente. Não o esqueçamos.
O livro que ora vos apresento, em parceria com o meu querido amigo Fernando Henrique Cardoso, A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica, é extremamente interessante, tem uma iconografia extraordinária e mostra, de forma muito clara e judiciosa, a invulgar participação dos africanos (negros, pardos e mulatos) na pintura, na escultura, nas artes plásticas em geral, na música e na literatura brasileiras. Os afro-brasileiros tiveram e têm - como resulta da análise deste livro tão atraente - um papel decisivo, nas diferentes épocas, nas artes, na música, erudita e popular, na literatura e na cultura em geral, que tem um brilho e uma originalidade incomuns que, sem a sua contribuição, nunca poderia ter tido.
É por isso, e muito bem, que este livro tão singular foi publicado pela primeira vez na grande data do Centenário da Abolição da Escravatura, patrocinado pelo Ministério da Cultura. A miscigenação foi sempre um traço essencial do colonialismo português, que extrapolou a mera exploração das riquezas dos continentes em que se implantou, diferentemente dos demais colonialismos. O Brasil em todos os aspectos - e também nesse, como ensinou Gilberto Freyre* - é, legitimamente, o maior orgulho português.
Lisboa, 17 de março de 2010
* O autor refere-se aqui ao conceito de luso-tropicalismo, criado por Gilberto Freyre.
**Mario Soares é ex-presidente de Portugal. Este texto é o prefácio da segunda edição de "A Mão Afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica", organizado pelo artista plástico Emanoel Araujo, atual Diretor-Curador do Museu Afro Brasil.
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