domingo, 21 de novembro de 2010

SEMEANDO TEMPESTADES - II

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MARTINHO JÚNIOR

SOMÁLIA

Se há país da Terra que se possa considerar como dos mais tragicamente marginalizado e "deserdado", essa país é a Somália; por isso, quando relembro a situação de dependência periférica, quantas vezes marginalizada de África, não posso deixar de o referir sempre em primeiro lugar.

Há quase duas décadas praticamente sem um governo instalado, atingido por uma situação de conflitos sucessivos que têm dilacerado o tecido humano do país já de si relativamente escasso, a Somália é sinónimo de caos permanente e entre os "deserdados da Terra", conforme são os países africanos (basta constatar os índices de desenvolvimento humano), é o mais incapacitado no sentido de sair da terrível situação em que se encontra.

É difícil aplicar a ele o conceito de nação e a situação de caos que nele existe é de tal ordem que, na década de 90, para fazer valer a "guerra dos diamantes de sangue" que levava a cabo e tornava extensiva ao seu próprio país e à região, Savimbi e seus homens ameaçavam "somalizar Angola"!...

O relatório anual de 2009 do PNUD por diversas razões coloca numa pequena lista aparte várias entidades nacionais; em relação a África, apenas dois se encontram inscritos nessa lista por razões de impossibilidade de obter dados: a Somália e o Zimbabwe. (1)

De entre os dados referidos o relatório de 2009 do PNUD sobre os IDH revelam que a idade média da esperança de vida para as mulheres somalis é de 51,2 anos e para os homens de 48,3 anos.

O território nacional possui 667.600 km2, estendendo-se na região que é conhecida como o "corno de África", possuindo uma fronteira terrestre extensa (1.600 km) com a Etiópia, (uma fronteira cujos limites são de muito difícil identificação em pleno deserto de Ogaden, a oeste), a noroeste com o Djibouti e a sul com o Quénia; o norte e o leste da Somália é circundada pelo Índico numa costa extensa que é vizinha duma das mais estratégicas regiões marítimas do planeta: o golfo de Aden e o Índico Norte. (2)

Grande parte do comércio marítimo mundial entre a Ásia e a Europa passa nessa região pela via do canal de Suez, ou dando a volta a África pela rota do Cabo.

Os petroleiros médios podem passar pelo canal de Suez (a norte da Somália), mas os de grande porte, que saem do Mar Vermelho (Arábia Saudita) e do Golfo Pérsico, em direcção ao extremo Oriente, à América e à Europa, passam à ilharga das costas leste da Somália. (3)

O poder e a riqueza desfilam a pouca distância duma das nações mais pobres e traumatizadas da Terra, com todos os efeitos psicológicos que "apelam" à aventura da pirataria artesanal levada a cabo por grupos somalis ávidos de alterar o seu destino.

Com climas tropicais desérticos e semidesérticos com temperaturas que variam entre 0º a +40º centígrados, a humidade é rarefeita, com terrenos muito pobres para a agricultura e mesmo para a criação de gado, situando-se as maiores montanhas a norte.

Os terrenos aráveis perfazem cerca de 1% do espaço nacional e os irrigados apenas 0,3%...

A guerra impossibilitou grande parte da actividade agrícola e as medidas económicas que foram impostas a partir do exterior contribuíram para o descalabro total da agricultura e da pastorícia provocando fome generalizada. (4)

Nesse ambiente, uma parte importante da população, entre o deserto e o mar, escolhe sem melhor alternativa (e cada vez em maior número) o mar para poder sobreviver.

É no mar onde há a possibilidade de ligação e comunicação (por terra em muitos circuitos do país nem estradas há e se as há, a proliferação de territórios dominados cada um deles por um "warlord" impede a circulação), é no mar onde há a possibilidade de realizar algum comércio (em direcção sobretudo a Aden, no norte e ao Quénia a sul) e é no mar que os habitantes podem ir buscar um dos recursos principais para sua sobrevivência – o peixe e em alguns casos até a água para beber (onde foi possível aplicar a dessalinização).

Sem governo instituído, o que foi instalado a partir da última grande operação do exército etíope, está de tal modo fragilizado que muitos requisitos do poder não existem.

Entre esses requisitos: não existe fiscalização, nem controlo das águas territoriais, as 12 milhas à volta das praias imensas da Somália.

É um estado fragilizado, sem capacidade de controlar sequer as suas águas territoriais, que bordejam a região marítima estratégica de maior tráfego à escala global, o que quer dizer, que os interesses do país não são tidos nem achados numa região que se tornou cada vez mais crucial para toda a humanidade desde os primeiros anos da revolução industrial "movida essencialmente a petróleo". (5)

Manter uma Somália "terra de ninguém" só pode ser um dos objectivos das potências, até por que, para além dos corredores marítimos que "dão a volta à Somália", há um mar riquíssimo em peixe, onde todos os que têm embarcações de pesca de longo raio de acção, vêm buscar o que já se esgotou noutras paragens.

Há frotas de pesca de todas as potências marítimas grandes e médias à volta da Somália em muitos casos pescando mesmo dentro de suas águas territoriais desprotegidas, desde as ocidentais, às da região, às das nações com acesso ao mar no continente asiático. (6)

Sem outras alternativas, os pescadores somalis foram assumindo os encargos de fiscalização e controlo das costas do seu país à sua maneira, influenciados pelos "warlords" e assistindo ao desfile dos grandes meios navais.

Para as comunidades somalis é uma questão vital não deixar proliferar ainda mais a rapina em seu inteiro (e derradeiro) prejuízo: sem peixe, para muitas dessas comunidades o destino é ainda mais sombrio do que já tem sido, é a continuação da fome, a total dependência, a morte antecipada até para os seus filhos…

À sua maneira começou então a intervenção contra os interesses da rapina que vem de longe, de forma tão indiscriminada quanto a possível, atingindo qualquer tipo de embarcação, mas cada vez mais aquelas cujo resgate é um pecúlio maior.

À pirataria dos grandes interesses, os somalis não têm outra alternativa senão responder com as "leis" improvisadas de sua própria pirataria…

É uma tristeza as imagens que vão chegando da área afectada: pequenas chatas, com motores fora de borda, tripuladas por homens magros de vestes ondeantes, são os meios com que os somalis por si próprios ou respondendo aos senhores da guerra locais, fazem face à crise que os atinge, cada vez maior; do outro lado, "defendendo" de forma aparentemente unânime os interesses da rapina industrializada, estão algumas das mais modernas unidades navais de OTAN, da Rússia, da China, da Coreia do Sul e até do Irão! (7)

Perante o desequilíbrio de meios, alguns estados declinarão pouco a pouco o exercício de defesa dos navios transferindo para privados os encargos que normalmente estavam à responsabilidade de suas poderosas armas navais. (8)

Um embrião dessas possibilidades futuras existe na Marinha de Guerra Portuguesa, pela via do "Pelotão de Abordagem", formado por efectivos de Fuzileiros Navais.

Esses profissionais são um exemplo do tipo de gente que pode vir a ser recrutada por privados para guarnição de navios mercantes. (9)

Esses privados, aparecerão equipados com recursos técnicos menos poderosos, com suficiente capacidade de fogo para fazer face ao padrão de ameaças, com "profissionalização" e eficácia, servindo-se dos navios – alvo como bases de onde partem para desencadear a resposta.

Os meios de informação global são uníssonos em condenar a "pirataria somali", tirando partido duma ausência de nação, dum estado super fragilizado, dum país exausto que nem sequer meios de fiscalização e controlo de suas costas possui, dum país fantasma que não possui voz, escondendo o que fazem os grandes meios de poderosas nações inclusive dentro das águas territoriais somalis. (10)

Quanta mentira, quanta ambiguidade, quanto cinismo…

Os tribunais de alguns países, entre eles os do vizinho Quénia, vão recebendo alguns desses "corsários somalis" que têm sido detidos durante esses encontros armados desiguais entre ratos e panteras, muitos deles jovens que ainda nem sequer chegaram aos 18 anos…

Se há imagem mais cruel das desigualdades que afligem o planeta, muitas dessas imagens provêem precisamente daí e elas são o pré anúncio dum destino que se poderá ir alargando atingindo outras regiões da Terra.

A fome na Somália e a condenação à morte por inanição duma parte importante do que vai restando da sua população, é o último escalão da tragédia humana que está em curso em pleno século XXI.

A mentira e a ambiguidade dos grandes interesses que asfixiam a Somália, são cúmplices dessa morte em relação à qual só existem estimativas!

Martinho Júnior - 11 de Outubro de 2009

Notas:
- (1) – PNUD – IDH 2009 – http://hdr.undp.org/en/media/HDR_2009_ES_Complete.pdf
- (2) – Somália – Wikipedia – http://pt.wikipedia.org/wiki/Som%C3%A1lia ; Somália – Cia Worldfactbook – https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/so.html
- (3) – The Strategist – Gulf of Aden: a lynch pin of global trade – http://kotare.typepad.com/thestrategist/2009/09/cool-map-global-shipping-routes.html
- (4) – BBC – Seca dizima rebanhos e causa fome na Somália – Adam Mynott – http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/03/060315_secasomaliafn.shtml ; Público - Dezenas de milhar de pessoas em risco de morrer à fome na Somália – http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1250088&idCanal=11 ; Ciranda – A guerra secreta dos EUA na Somália – http://www.ciranda.net/spip/article1929.html?var_recherche=orientemediovivo&lang=en ;
- (5) – Pucminas – A fragilidade do estado somali e o aumento de instabilidade no país – http://www.pucminas.br/imagedb/conjuntura/CNO_ARQ_NOTIC20060614150528.pdf?PHPSESSID=38fc7fb9b221f5051262b83e9345782c ; ; Conflitos na Somália na década de 1990 – http://www4.fapa.com.br/monographia/artigos/1edicao/artigo6.pdf
- (6) – Página Um – África – Uma encomendada e continuada crise tridimensional – http://pagina-um.blogspot.com/2009/06/africa-uma-encomendada-e-continuada.html ; Página Um - Somália – A caminho da terceira pirataria? – http://pagina-um.blogspot.com/2009/05/somalia-caminho-da-terceira-pirataria.html ; Página Um - Piratas da Somália e a política externa dos EUA – http://pagina-um.blogspot.com/2009/05/piratas-da-somalia-e-politica-externa.html ; BBC - Pirates urge Spain to free pair – http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/8303957.stm ; TV Net Sapo – Sequestro Alakrana: Juiz ordena transferência urgente dos piratas para Espanha – http://tvnet.sapo.pt/noticias/detalhes.php?id=49319
- (7) – Página Um – Portugal ao serviço da hegemonia – http://pagina-um.blogspot.com/2009/05/portugal-ao-servico-da-hegemonia.html
- (8) – VOA – Combate a pirataria somali – http://www.voanews.com/portuguese/archive/2009-04/2009-04-15-voa7.cfm?moddate=2009-04-15 ; RTP – Nato estuda novas formas de combate à pirataria na Somália – http://tv1.rtp.pt/noticias/?headline=20&visual=9&tm=7&t=NATO-estuda-novas-formas-de-combate-a-pirataria-na-Somalia.rtp&article=280410 ;
- (9) – Fuzileiros da Marinha Portuguesa – http://fuzileiros.marinha.pt/NR/rdonlyres/5E97D8C4-BDE1-4EAD-B8A3-6C5536F1E485/0/OPELBOARDNOCOMBATE%C3%80PIRATARIASOMALI.pdf ; Sailors news – http://missaonato09.blogspot.com/
- (10) – BBC – Postcard from somali pirate capital – Andrew Hardling – http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/8103585.stm ; BBC - Inside story of Somali pirate attack – Roy Walker – http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/8080098.stm

Nota final:

O texto foi produzido há um ano, mas em relação à presença portuguesa no Índico Norte, não há qualquer alteração.

Navios da Marinha de Guerra Portuguesa, "cumprindo obrigações no quadro da NATO", estão no Índico Norte, ao largo das costas somalis, a fim de fazer face "à pirataria somali" (de acordo com a fanfarra da propaganda) e "defendendo" as rotas dos grandes petroleiros (de acordo com as análises mais esclarecidas)…

Os navios de pesca de Portugal têm raio de acção sobretudo no Atlântico e no Mediterrâneo, raramente alcançando o Índico, pelo que por si Portugal não tem qualquer interesse em manter navios de guerra como os da classe Vasco da Gama no Índico Norte, muito menos actuando próximo ou nas águas somalis!

Em tempo de crise para o Povo Português, numa altura em que o triângulo oceânico entre Continente – Açores – Madeira deveria ser privilegiado em termos de desenvolvimento para benefício do Povo Português, os navios de guerra portugueses "cumprem missões" que, esbanjando riqueza e poderio, só interessam aos Estados Unidos e aos mais poderosos "parceiros" europeus!

Civilização sim, barbárie não!

PAZ SIM, NATO NÃO!
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2 comentários:

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