sábado, 6 de novembro de 2010

III ENCONTRO CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE

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Comunicação de Piedad Córdoba

Queria intervir sem o rigor de um académico ou a limpa oratória de uma mulher dedicada à política. Sou, antes de tudo, um ser humano, e isso é o que quero vir reivindicar, o que nos faz humanos. Apelarei então mais à razão sensível e ao que concluo na minha alma – masi que no meu pensamento – e terei que referir-me a coisas que pude concluir a partir da experiência que me deram os anos e a minha profissão.

Vou começar por recordar o entranhável camarada Saramago. Há alguns meses deram-me uma entrevista que concedeu a um diário argentino em 1998, que depois foi publicada em livro que intitularam «Sou um comunista hormonal». Creio que as coisas que colocava José [Saramago], o grande José, não podem continuar a ser óbvias para nós, enquanto militantes da esquerda. Por exemplo, por que não se fala já de democracia? Acaso não é uma verdade indesmentível que o poder político, o poder cidadão, já só está contemplado no papel? As multinacionais, as grandes empresas e os grupos económicos, e eu diria também os meios de comunicação são os que o detêm e determinam o rumo do mundo e das suas nações há já algumas décadas. A direita sabe-o e acolita-o, e isso é ao que se têm cinicamente dedicado e a que nós como esquerda, com a ingenuidade que nos caracteriza, não temos querido nem sequer colocar. Acaso nos perguntam sequer quem queremos que seja o presidente da General Motors? A democracia, dadas as condições actuais, é já uma quimera com que nos iludem alegremente para que deixemos de o pensar, de nos insurgirmos, de reclamar o que é justo, nobre e verdadeiro…

Além disso, viu-se como em nome dessa enteléquia nos fizeram adorar os promotores da modernidade, como se se tratasse de um deus recém-nascido nas entranhas do Ocidente, se desencadearam as guerras mais atrozes e os atropelos aos verdadeiros direitos humanos; a guerra do Iraque é o mais recente acontecimento celebrado por eles, mas também, por exemplo, está aí o fenómeno do paramilitarismo no meu país no meu país, o plano Colômbia, o Plano patriota e a terrível política de Segurança Democrática do ex-presidente Uribe. Invadem, massacram, deslocam, bombardeiam em nome de algo que não existe de facto, porque tampouco, mesmo que defendam a superficialidade do que eles representam, interessa-lhes (e não lhes convém) que o que o povo realmente necessita esté y se dé. Pessoalmente, não partilho a opinião que se prive alguém da liberdade e se retire a vida em nome de um ideal, qualquer que este seja: matar uma pessoa por defender uma ideologia não é defender uma ideologia, é matar uma pessoa. No entanto, e isto é pior, em todo o mundo, em nome disso a que chamam democracia (que já disse não existir) perseguem-se quem não está de acordo, acaso isso faz sentido? Eu diria que dentro da realidade em que eles construíram o mundo actual sim, fazendo a ressalva de que nunca o que é real, pelo menos aquilo que estamos vivendo, poderá chegar a verdadeiro – no sentido mais filosófico que esta palavra representa.

Por exemplo, na Colômbia é real que as pessoas estão a ser despojadas à força das suas terras para criar empórios de monocultura e produzir biocombustíveis; é uma realidade estarem a acabar com o nosso património natural e ecológico para saciar os anseios de poderio económico das empresas mineiras, e é real que quem faz isto, defendendo acima de tudo a democracia ( que é nem mais nem menos o apelativo que lhes permite fazer tudo o que estou a dizer), violam as nossas mulheres e depois matam-nas. Mas nada disto e verdade. A verdade refere-se ao belo, ao ético, ao correcto, e eu não descobri qual é a verdade, nem a estou a determinar mas, seja esta o que for, estou certa que ela não é, nem pouco mais ou menos, o que o mundo actual, esse a que alguns chamam moderno, o que estamos a viver.

Há um sociólogo estadunidense, Marshall Berman que me aprece muito importante retomar, porque diferentemente dos que se denominam de esquerda, fez do ideário de Marx uma ferramenta para interpretar a tragédia da modernidade que nestes tempos estamos a sofrer, essa realidade que provoca a impotência dos nossos jovens e debilita o espírito e a consciência das maiorias.

Diz ele, e eu estou de acordo, que o maior problema dos países a que descaradamente chamam em vias de desenvolvimento, é desejar como futuro o presente de outras nações, independentemente da identidade cultural e etnológica que as caracteriza. Recordo agora o discurso de um presidente que infelizmente pertence ao meu partido, César Gaviria, quando disse «bem-vindos ao futuro», não sei se como sentença premonitória da má memória que deixaria o seu governo com a abertura económica, ou talvez invocando os males passados e futuros que atravessou o meu país antes dele e os que haveria de suportar depois do seu mandato.

O neoliberalismo, a direita de agora, entende por bem-estar tudo o que está para vir, nunca o que se tem no momento. Daí, compreender-se que se mate, se roube, se despoje e se desloque, com vista a um futuro inebriante e inacessível, cheio de estatísticas económicas; porque o tempo, sendo uma ferramenta muito útil para os físicos, quando utilizado como ideal em política, é uma mina anti-pessoal que acaba por desmembrar os cimentos éticos e morais da sociedade. É o que está a acontecer no México depois do Tratado de Livre Comércio (TLC), e o que sucede na minha pátria. Ali, as pessoas já não se escandalizam com os mortos porque são demasiados, dizem sem qualquer pudor. Se se relata que torturaram um homem e depois o despedaçaram (literalmente) com uma motosserra, respondem que é uma coisa que está a passar-se desde há muito tempo e a muitas pessoas. Em todo o caso, de tudo isto que se está a passar em ambos os países, o mais escandaloso são as execuções extra-judiciais, conhecidas como falsos positivos. O exército e a polícia assassinam civis para os apresentarem às autoridades como baixas em conflito. Matam-nos, e depois vestem-lhes um uniforme de guerrilheiro, dizem que eram subversivos, e recebem a recompensa. Conhecer os testemunhos dos seus familiares, gente muito pobre e humilde, é verdadeiramente dilacerante, mas ainda me parece mais dilacerante a indolência e a naturalidade com que a opinião pública disfarça e defende o governo, tirando-lhe todo o tipo de responsabilidade jurídica e política, minimizando a magnitude da atrocidade que isto representa…

Eis o porquê da minha insistência no tema da paz. Retomando as palavras de Baruch de Spinoza, quero dizer que a paz não é a ausência da guerra: é uma virtude, um estado da mente, uma disposição de benevolência, confiança, justiça. Dou uma pacifista, uma militante pacifista que está disposta a lutar pela paz. Sendo a paz um caminho não me importou o processo de estigmatização e a campanha de desprestígio de que fui vítima por parte do Estado colombiano e dos meios de comunicação. Não me considero mártir nem tampouco sou como eles, mas conheço bem as histórias de Martin Luther King e Mandela, ambos adalides mundiais das conquistas em direitos humanos para nós, os negros, e ambos lutadores pela paz nos seus países. A sua luta motiva-me e dá-me forças para continuar a insistir nesse estado de espírito, nessa disposição de benevolência, de confiança e de justiça, a única maneira de encontrar saída para o conflito armado que se vive na Colômbia, pois só cumprindo com estes preceitos se pode chegar a esse estado de modernidade que descrevia Kant.

De nada nos vai servir desarmarmo-nos, estou convencida disso, se os sujeitos que habitam a nossa nação (e o mundo) não estão dispostos a ser mais compassivos e conscientes da realidade atroz e imperante que nos envolve. Por ser assim, e por considerar que não é pela via da violência e do extermínio das partes em confronto chegaram a chamar-me terrorista, apátrida e guerrilheira. Por acreditar nesse poder mais que divino chamado linguagem, do qual se desprendem a comunicação e o diálogo, em vez de levantar as bandeiras do discurso militarista e armamentista de que o discurso oficial está impregnado; na Colômbia falar contra este discurso e a favor das liberdades individuais, da solução pacífica do conflito e das necessidades das minorias significa, para os que o fazem, a perseguição, a caça criminal pelo organismo de inteligência do governo que, inclusive, põem em perigo a vida dos que estão na oposição. Falo de políticos, jornalistas, líderes camponeses e comunitários e activistas dos direitos humanos e ONGs. Vigiam-nos o telefone, as contas do correio electrónico, investigam as nossas contas bancárias e urdiram sabotagens para nos recusem o visto norte-americano, entre muitas outras coisas. No entanto, não penso claudicar, porque estou convencida que não há um caminho diferente do que empreendi como política, mulher, mãe e legisladora.

Para terminar queria voltar a Saramago, que haverá de viver para sempre na grandeza das suas letras e na lucidez das suas metáforas e do seu pensamento, sempre e quando estejamos dispostos a manter esse legado. Dizia ele que nós, como esquerda, devíamos agarrar-nos à Carta dos Direitos Humanos, pois seria inútil inventar mais fórmulas. A solução é essa, está aí, latente, para que cuidemos e a façamos cumprir, Já basta de recitar de cor o Manifesto Comunista e as velhas arengas de há trinta e quarenta anos. Não é que o comunismo tenha fracassado, nem pouco mais ou menos, mas apenas que além do capitalismo ter ficado, o nosso discurso ficou anquilosado em personalismos e frases feitas que já todos sabem de cor.

In http://www.odiario.info/?p=1792
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