BAPTISTA BASTOS – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, OPINIÃO
A passagem do 30.º aniversário da morte de Francisco Sá Carneiro determinou uma volumosa série de artigos, livros, documentários, depoimentos, notas, observações. A hagiografia em detrimento do conhecimento do homem e da sua circunstância. E a insistência no adensar do mistério de Camarate, que uns dizem ser acidente, e, outros, atentado. Sou favorável à reabertura de todos os inquéritos e investigações. O carácter dubitativo em que a questão assenta impede qualquer tropo de verdade que sossegue os espíritos mais sobressaltados.
Sá Carneiro morreu novo e esse facto inspirou a compaixão e alimentou o mito. Seria bom que soubéssemos o que está por detrás desses sentimentos, e qual a natureza dessas devoções. Os "viúvos" e as "viúvas" das celebridades não conseguem dissimular a ânsia de protagonismo, à sombra dos venerandos finados. Chegou-se ao ponto de se fazer vaticínios temerários, com a condicional a servir de pretexto. "Se" Sá Carneiro fosse vivo, como seria o País, hoje? O absurdo como molde da realidade e manifesto subterfúgio para a manipulação.
A verdade é que Sá Carneiro não era consensual, tanto no País como no partido que fundara. E não teve tempo nem, decorrentemente, oportunidade de provar uma estirpe de estadista ou uma compleição de político. Arrebatado, autoritário, impositivo, impulsivo e, diz quem o conheceu, um ser despótico que não ocultava a irritação quando contrariado. Possuía uma ideia de Portugal e um projecto inovador e socialmente equilibrado e justo para o País? Os seus textos não são concludentes. A sua conduta ideológica, emaranhada. Tanto social-democrata como demoliberal. Dependia dos humores. Dispunha de um pessoal conceito de liberdade e uma teimosia formal, calculada e dispersa, que desconcertava os seus próximos. Essa ciclotimia provinha, sem dúvida, da rígida educação católica, um espartilho sufocante de que nunca, em definitivo, se libertou. Mesmo quando a bela, doce, inteligente e culta Snu lhe iluminou a vida e lhe despertou a ideia de que a felicidade pode não ser ilusão e, por vezes, aparece em qualquer idade e vicissitude.
Resta-nos admitir que as coisas possuem, quase sempre, uma relação clara ou subtil, e que a História é uma deusa cega. O legado de Francisco Sá Carneiro está centralizado no "eu", e na invasão da esfera pública pela esfera privada. A lógica desse procedimento leva à desvalorização ou à mediocretização do mando. O resultado está à vista: Cavaco, Santana, Durão são produtos do mesmo molde, crias da mesma matriz. Definem-se pela ausência do sujeito de razão, e pela expressão de um equilíbrio muito frágil entre a sua identidade íntima e as representações da realidade.
Que fundada dimensão possui esta herança?
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