ANGOLA - ENTREVISTA
JOSÉ KALIENGUE – O PAÍS (angola) 14 janeiro 2011
Está agora envolvido na IV Semana Social Nacional, com o tema centrado na democracia e participação dos cidadãos.
O resultado das semanas sociais e dos estudos desenvolvidos pelo Centro Cultural Mosaico são encaminhados apenas para a hierarquia da Igreja, para a produção dos seus documentos, ou também para as autoridades políticas e administrativas do país?
O Centro Cultural Mosaico foi a primeira entidade angolana a assumir, em 1997, que tinha como objectivo do seu trabalho a promoção dos direitos humanos…
Daí ter sido este o tema da vossa primeira publicação?
Exactamente. Mas durante a guerra, quando começamos, era coisa para questionar, se fazia sentido falar em direitos humanos naquelas condições.
Houve quem questionasse. Mas se colocássemos apenas as questões do imediato, naquela altura, nunca sairíamos da situação em que estávamos. Iríamos ficar na mesma ou piorar. Pode-se usar uma imagem como se andássemos na rua a olhar sempre para a ponta do pé, o bico do sapato, provavelmente bateríamos em muita coisa, porque ficamos sem uma visão mais alargada do que nos rodeia. Neste sentido, a promoção dos direitos humanos apareceu como um caminho para a promoção da paz e, desde que a guerra acabou, para a consolidação da paz.
Sendo uma iniciativa dos missionários dominicanos, cristãos católicos, sempre foi assumida no seio da Igreja, mas, desde o início, que as pessoas que colaboram e trabalham no Mosaico podem pertencer e pertencem às diferentes confissões religiosas. A confissão religiosa não é uma condição para trabalhar, ou não, no Mosaico, embora sendo evidente que as pessoas têm de partilhar uma série de ideais, o respeito por um conjunto de regras … mas, mesmo assim, temos colegas que ou não professam nenhuma confissão religiosa, ou confessam outras confissões religiosas e que respeitam …
Pode-se colaborar com o Mosaico mesmo a partir de fora, mesmo não vivendo em Angola?
Eventualmente pode-se colaborar a partir de fora, temos só de encontrar as modalidades de colaboração. Se as nossas condições de informação e de energia estivessem melhor, se calhar seria mais fácil ter colaborações a partir de fora. Mas temos tido, ainda que pontualmente, colaboração… Apesar das dificuldades a perspectiva dos fundadores do Mosaico sempre foi a de um trabalho para toda a sociedade.Aliás, a própria Igreja não trabalha para si mesma, trabalha para o benefício da sociedade…
E como é que avaliam, depois, o impacto do vosso trabalho na sociedade?
Eu creio que o impacto ultrapassou muito o que nós poderíamos esperar de início. Digo-o por duas razões principais: por um lado, pela quantidade e diversidade de solicitações, que ultrapassam até a nossa capacidade de resposta, o que manifesta que o que estamos a fazer corresponde a uma necessidade das pessoas, por isso elas continuam a solicitar … o Mosaico, habitualmente corresponde às solicitações das pessoas, não toma a iniciativa de começar coisas sem um apoio e trabalho ao nível local que dêem sustentabilidade àquilo que se faz. Até porque o Mosaico começou com limitações financeiras, de pessoal … hoje a capacidade é muito maior, o que reflecte um impacto positivo, esta capacidade de crescimento sustentado.
Este crescimento só é possível com o reconhecimento de que o trabalho que se faz é positivo. Em muitos casos, onde se começou com um seminário de formação num município, hoje temos todos os municípios da província envolvidos em dinâmicas semelhantes.
As solicitações são normalmente feitas pelas administrações, entidades públicas, ou por pessoas já ligadas ao movimento social da Igreja?
Depende. Há uma grande parte de solicitações de pessoas ligadas à Igreja … mas que, muitas vezes, têm também ligações a outros órgãos… ou da administração do Estado, não necessariamente administradores, mas ao nível de instituições públicas e outras.
Mesmo nos ministérios, por exemplo, temos uma colaboração com a Direcção Nacional de Saúde Pública, que já data de há vários anos, há colaborações pontuais com o Instituto Nacional de Luta contra ao HIV SIDA, para falar de organismos públicos que não estão formalmente ligados à Igreja. Há também a solicitação de grupos de igrejas irmãs que nos pedem também apoio, informação, etc. e há grupos que, não sendo necessariamente confessionais, envolvem cristãos.
Além dos direitos humanos, o Mosaico trabalha a promoção da democracia, que é também um direito humano …
Exactamente. Nós não consideramos que trabalhamos outras áreas, nós trabalhamos várias componentes de uma área central que, genericamente, podemos denominar de direitos humanos. Os direitos que assentam na dignidade da pessoa. Parece-nos que se contribuirmos para que esse respeito vá crescendo em Angola, toda a sociedade vai beneficiar com isso. Em última análise é isso o que pretendemos. Agora, como chegar aí? Obviamente que uma das forma de chegar é contribuir para que haja maior espaço democrático, um maior espaço de participação. Não é a única maneira, mas é uma, certamente, das formas. Outra é contribuir para que o Estado possa estar melhor preparado para cumprir aquela que é a sua função numa sociedade: ajudar também os cidadãos, as organizações, para estarem também preparados para cumprirem com as suas actividades.
Se conseguirmos ter cidadãos mais preparados, organizações da sociedade civil mais preparadas, administrações ou entidades públicas mais preparadas e um sistema político com pessoas mais conscientes daquilo que deve ser a sua função, então, certamente, estamos a contribuir para um maior respeito dos direitos humanos e para que haja um sentido de pertença, de bem comum, de respeito com o outro e com as instituições, muito maior do que aquele que vamos observando no dia-a-dia.
Embora se deva reconhecer que várias coisas têm mudado no sentido positivo e que se conseguem coisas, hoje, que seriam muito difíceis de imaginar há dez, doze anos atrás.
Quando fala de democracia e direitos humanos fora de Luanda, como sente que as pessoas que encontra vivem estes dois conceitos?
Creio que os vivem de uma forma muito prática e, se calhar, ao contrário do que muita gente em Luanda imagina, eu creio que muitos destes processos participativos são mais fáceis de construir em municípios do interior do país do que, por exemplo, em Luanda e na periferia de Luanda. Porque superadas algumas desconfianças iniciais, normais, as pessoas acabam põe se conhecer e por estabelecer um capital de confiança maior que nas grandes cidades. Se as pessoas percebem que todos podem ganhar, que não se trata de beneficiar uns para prejudicar outros, que é para que cada um cumpra melhor o seu papel para que todos possam ganhar, não apenas nós mas também o que entregamos às gerações que nos seguem … neste sentido, apesar das dificuldades, há muitos exemplos admiráveis que muita gente em Angola não conhece. Há processos de participação, de transformação do cidadão que não são olhados pela media, mas que não deixam de ser reais e que transformam a realidade local representando mudanças muito positivas para as pessoas.
Indica-nos exemplos desses?
Um dos municípios onde começámos este tipo de trabalho em 1999 foi o da Matala, no interior da Huila.
Na altura, a Matala era um município charneira, porque o domínio territorial do governo da Matala para a frente não estava garantido, era uma zona que oscilava de domínio conforme os avanços e recuos do conflito militar e, portanto, havia lá muita gente refugiada por ser uma espécie de tampão a partir do qual as pessoas se sentiam seguras… Com o fim da guerra, várias pessoas voltaram ao Kuvango, a Jamba Mineira, a outros municípios e a experiência de conhecimentos e práticas de direitos humanos que aprenderam na Matala, enquanto deslocadas, faz com que queiram ir para os seus municípios e introduzir também esse tipo de processos e dinâmicas,agora que é a fase de reconstruir a vida. São pessoas simples, com níveis académicos baixos, mas que percebem claramente que a questão dos direitos humanos pode ser importante para assegurar mudanças positivas na sua vida. Isto produz também uma aproximação entre os responsáveis e as próprias pessoas. Porque as pessoas deixam de ter medos dos responsáveis e estes deixam de ter medo das pessoas.
Fala-se em democracia a duas velocidades em Angola, quando anda pelo interior do país, sente-o?
Não diria que há duas velocidades … então há muitas velocidades. E não faria uma distinção linear entre zonas urbanas e zonas rurais. Assistimos também em zonas urbanas a acontecimentos que me parecem muito tristes, no ponto de vista da participação democrática das pessoas. Vimos como uma manifestação de apoio a lei contra a violência doméstica foi reprimida.
Numa sociedade democrática, num Estado de direitos, onde as pessoas … nunca ouvi que não tivessem cumprido os pressupostos da Lei das Manifestações que são mínimos … e isso aconteceu. Estamos no coração de Angola, onde se diz que estaríamos na primeira velocidade … a mim parece que este acontecimento está muito perto da última velocidade… Por outro lado, de formas pouco mediáticas, mas muito importantes, porque não passam por uma liberdade de expressão muito efectiva, mas pelo envolvimento das populações, dos dirigentes, conseguem-se transformações políticas importantes. Se calhar, formalmente os elementos democráticos não estão presentes, mas na prática são processos participativos, correspondem às necessidades das populações, ajudam a transformar a vida das pessoas para melhor.
Neste aspecto, existem experiências interessantíssimas, até mais no interior do país, mas que são desconhecidas.
Deixe-me voltar com um exemplo da Matala, que me parece admirável: fomos convidados pelo Arcebispo do Lubango, D. Zacarias, para fazermos seminários de formação na sua diocese.
Fomos ao Namibe, na altura pertencia a arquidiocese do Lubando, Matala e ao Lubango. Seria o Leste, o Centro e o Oeste da arquidiocese na altura. Na Matala falou-se, nos direitos humanos, da vontade das pessoas em fazer o ensino médio, na altura tinha-se que ir ao Lubango, o que nem todos podiam … e lembro-me que, quando apresentámos os indicadores de desenvolvimento humano em Angola e as pessoas tomaram consciência da situação da educação no país, que o índice de analfabetismo na nova geração poderia ser maior que na antiga geração, assim o diziam os indicadores na altura, … e as pessoas perceberam que se ficasse à espera do Estado se calhar as coisas nunca mais se resolveriam, ou que chegariam num tempo em que para eles já não viriam a tempo … lembro-me de as pessoas dizerem-se admiradas por a situação ser geral quando pensavam que era apenas com elas no interior … depois do seminário, já nós tínhamos vindo embora, fizeram uma lista das pessoas que queriam estudar, fizeram uma pequena contribuição, alugaram umas instalações, contactaram alguns engenheiros brasileiros da barragem da Matala, e alguns funcionários para colaborar.
Depois mandaram dizer ao Lubango que o Instituto Médio da Matala estava criado. O director era um aluno.
E foi legalizado?
A direcção da educação da Huila disse-lhes que não poderia legalizar o instituto, mas deu-lhes uma solução.
Disse-lhes: vocês estudam nessa escola em regime de autogestão, seguindo os programas, e no fim candidatam-se aos exames do Ministério da Educação como alunos externos. Assim, por iniciativa local, as pessoas que viviam na Matala puderam estudar o ensino médio, administradores incluídos. Sei que, a seguir, os municípios vizinhos de Kaluquembe, e Chicomba apanharam boleia e fizeram o mesmo, também criaram o ensino médio … sem fazer isso contra ninguém, temos aqui um exemplo de como as pessoas tomaram a iniciativa e envolveram as autoridades. Há várias experiências deste tipo.
Recordo-me de algumas palestras dos direitos humanos em que a polícia ia como que para espiar o que se estava a passar, mas depois de duas ou três iniciativas eram eles a sugerir que aquelas iniciativas fossem desenvolvidas também na própria polícia. A partir daí houve formação sobre direitos humanos no comando municipal da Matala, feita por pessoas da comunidade. Podemos ou não chamar a isso processos democráticos? Neste sentido, creio que estas simplificações de democracias a duas velocidades não ajudam nada, criam uma imagem estereotipada do país, não ajudam a reconhecer o imenso valor de inúmeras iniciativas pouco conhecidas, mas que produzem efeitos. O facto de os jornais não chegarem a todo o lado e das rádios não serem ouvidas em toda a parte, o que não é bom, não significa, por outro lado, que existem duas velocidades.
Mas não está tudo nivelado …
No interior do país há situações muito diversas, como na zona urbana há situações muito diversas. Creio que este estereotipo acaba por esconder mais a realidade que por mostrá-la.
Mas no plano económico há diferenças evidentes. Existem creches a cobrar 2500 dólares, por mês, por cada criança. Isto pode ser um potencial de conflito ou apenas a dinâmica social que vai diferenciando as classes?
O facto isolado, em si, é um indicador de que alguma coisa não está bem na sociedade. Porque para se ter uma criança na creche tem de se pagar, ao mês, aquilo que muitas pessoas não ganham num ano … alguma coisa não está muito bem. Do ponto de vista individual, há iniciativa, as pessoas podem livremente abrir uma creche e estabelecer os preços que entenderem adequados, e se houver clientes para essa oferta …
Mas estamos a falar da nossa sociedade, com os salários oficiais que se conhecem … haver gente para estas instituições que se vão multiplicando …
Eu creio que um dos indicadores muito preocupantes, principalmente desde que a guerra acabou, é o que aponta para que na sociedade angolana aumente a desigualdade social.
Com o fim da guerra, quem já tinha acesso aos recursos, tem agora muito mais facilidades e quem não tinha acesso aos recursos até os poucos que tinha está a perde-los. O que acontece agora é o contrário do que aconteceu durante a guerra, quando tínhamos a pobreza concentrada, os deslocados, as zonas de acantonamento … agora temos a riqueza concentrada. Vamos ai ao Talatona, damos uma volta e se colocarmos as imagens em revistas e jornais e dissermos que se está na num país europeu ou da América Latina, ou da Ásia, ninguém estranha. Há, de facto, um conjunto de situações preocupantes. Por exemplo, ouvi contar que, perto do bairro onde vivo, um bairro periférico, e que tinha abastecimento de água, a conduta que abastecia aquela zona foi cortada para abastecer um condomínio. O condomínio, se precisa de uma conduta que a crie e quem pode pagar as casas do condomínio que o faça … uma das coisas curiosas é que os ricos deste país pagam a água muito mais barata que os pobres. Uma família pobre paga a água a um custo insustentável …
Porque tem de comprar todos os dias?
Todos os dias. Porque tem de comprar o bidão, tem de carregar … já sem falar dos problemas de reumatismo porque a roupa molhada seca no corpo, os problemas de coluna porque culturalmente são as pessoas a carregar a água à cabeça … não basta dizer que se gastou milhões com o abastecimento de água a Luanda, por exemplo, tem de se dizer como é que este benefício é distribuído pela população.
E esta segunda parte normalmente não é divulgada. Há ainda um outro aspecto: a capital gasta grande parte do orçamento do país, do que vai para as províncias também é gasto, quase tudo, na capital da província, e o que vai para os municípios fica quase tudo na sede municipal. Estamos a conduzir uma política que em termos práticos leva a desertificação do país. Há uma concentração gradual nas zonas onde há investimento. E acabamos por criar condições em qu, num lado, vivem os ricos e, no outro, vivem os marginais, que vão tentar encontrar oportunidades para, muitas vezes através da delinquência, tentar obter o que não conseguem de outra maneira e a que também têm direito. Estamos a criar situações em que, ao contrário do que se possa pensar, as pessoas com mais rendimentos vivem mal, porque vivem com medo. Normalmente as cadeias têm polícias por fora para que os presos não saiam, os nossos condomínios têm polícia à porta para que os de fora não entrem. Mas quem está dentro está preso.
As crianças e jovens que crescem nos condomínios têm medo de andar na cidade, têm medo de ir a um bairro da periferia. É a maior parte da cidade que está a ser excluída, estamos a criar um fosso não só económico mas também mental, também cultural. As pessoas passam a andar com medo diante dos outros. Uma sociedade em que este tipo de medos mútuos existe, estas necessidades de segurança crescentes, são sinais de que há problemas de base que não estão a ser equacionados da melhor forma.
E pode correr mal isso?
Há o risco de correr mal, o risco inerente à vida humana …
Como o que aconteceu na África do Sul?
Ou como o que aconteceu em Moçambique. Eu creio que a memória fresca da guerra e de todo o sofrimento que a guerra comportou leva as pessoas a uma certa moderação. Ou seja, não criar situações em que possamos voltar ao sofrimento da guerra. Mas esta é uma memória que as novas gerações não têm. Quem hoje tem vinte anos não sabe o que é uma rusga. E, portanto, a paciência que aqueles que viveram a guerra ainda demonstram com certas situações, que são injustas do ponto de vista social, tende a esbater-se muito rapidamente. É só uma questão de renovação geracional. Eu creio que este risco existe hoje.
Numa sociedade que fica muito tempo cristalizada em torno de um certo número de pessoas, essas pessoas não são eternas, como nenhum de nós é eterno, então os problemas de sucessão põem-se de uma forma complicadíssima. Estamos a ver agora o que está a passar na Costa do Marfim e que é consequência, ainda, de alguma maneira, do que foi o tempo do Presidente Houphouët-Boigny … mas vemos a sabedoria do Mandela, na África do Sul, que, cumprido o seu tempo soube sair, vimos agora no Brasil uma situação em que um presidente que tinha oitenta e tal por cento de aceitação do povo e que não quis mudar a Constituição para ter mais um ou dois mandatos … este é outro problema que não é só ao nível do topo, se as instituições funcionarem numa lógica muito fechada as questões de sucessão e de adaptação às mudanças sociais põem-se de forma complicada.
Para quem faz trabalho com as comunidades e conhece os problemas que ela vive, percebe se os problemas da sociedade têm efeito na estrutura familiar … ou será o contrário?
É um ciclo vicioso. A desestruturação das famílias desestrutura a sociedade e a desetruturação da sociedade desestrutura a família.
Por onde é que se deve começar para resolver isso?
Eu creio que não podemos começar por um lado sem pegar o outro. Talvez a medicina nos dê um bom exemplo.Se a gente chegar a um hospital com um ferido com hemorragias graves numa perna e num braço, não vamos escolher onde começar, vamos tratar do braço e depois da perna, ou vamos tratar da perna e depois do braço.
Temos de estancar o sangue no braço e na perna o tão rapidamente possível, senão o doente morre. Se fizermos um muito bom trabalho na perna mas não cuidarmos do braço perdemos a pessoa. Aqui é a mesma coisa, não podemos por em termos de alternativa, porque se há um círculo vicioso na desestruturação, também se pode criar um círculo virtuoso na construção.
Fortalecer a família acaba por fortalecer a sociedade e ajudar na estruturação da sociedade ajuda a estruturar a família. Hoje falamos de protecção do ambiente, devemos também proteger o ambiente social, humano, devemos falar da ecologia humana.
O que temos é que muitas vezes os discursos dizem uma coisa, mesmo nas famílias, e a prática é oposta ao que se está a dizer. Mas as pessoas guiam-se com a prática, não com os discursos. Eu estou convencido que algumas pessoas pensam que mudando o discurso muda-se a realidade. Mas não muda. Que o discurso evolua é importante, mas a realidade não muda só com ideias.
Mas o Centro Cultural Mosaico vai apontando caminhos?
Nós trabalhamos numa vertente divulgação de direitos humanos, com seminários, publicações, etc.; numa vertente de formação, com pessoas e instituições e uma vertente de protecção do cidadão, ligada a casos que possam eventualmente ser defendidos em tribunal ou, pelo menos, com aconselhamento jurídico a pessoas que normalmente não têm acesso a um advogado. Isso também no interior do país, onde praticamente não há advogados. A simples presença do advogado já muda o comportamento dos mais poderosos, porque sabem que há algumas coisas que se poderiam permitir abusando da ignorância dos outros, mas se os outros têm acesso a informação, eles, no mínimo, têm de ser mais cuidadosos. Aí sim, há um défice muito importante de informação, particularmente no interior do país, porque chega pouca informação e há muita gente que a recebe e guarda, com a ideia de que informação é poder. Se eu a tenho, facilmente posso manipular os outros. Infelizmente não se pensa que a informação é um bem básico para o desenvolvimento do país. Para que todos possamos saber e contribuir para o bem de todos.
Mas há também o caso de dirigentes que têm medo das pessoas, que elas saibam das suas limitações, da sua incompetência, quando temos casos de dirigentes que, conscientes das suas limitações, pedem a ajuda das pessoas e elas participam, criando um movimento mais positivo.
Mas os poderosos guardam a informação e também os bens para si...
Isso acontece também nas famílias. Pais que se recusam a contribuir para a educação dos filhos … há quem diga que antigamente também havia poligamia. Mas havia pedido a cada uma, havia casa para cada uma, uma lavra para cada uma e a assumpção dos filhos de cada uma, não era uma barafunda. O que temos hoje é uma irresponsabilidade enorme, muitas vezes, invocando uma tradição que nada tinha dessa irresponsabilidade. Independentemente de ele estar casado, um homem e uma mulher que coloquem uma criança no mundo, quer o tivessem ou não previsto, têm de assumir essa responsabilidade e têm de a partilhar. Uns evocam provérbios dizendo que quem cuida dos pintos é a galinha, mas os pombos cuidam e alimentam os filhos os dois … vamos viver na capoeira? Usam-se provérbios para justificar coisas que as pessoas sabem que não estão certas. Que nós não gostaríamos de passar. Quem de nós gostaria que os nossos pais não cuidassem de nós? Que nos abandonassem? Veja agora quantos homens tiveram muitas mulheres, muitos filhos e que, na velhice, estão abandonados … e os filhos dizem-lhes na cara: quando precisei não cuidou de mim, agora quer o quê? aí a pessoa que se julgava viva, esperta, agora vive as consequências do tipo de vida que levou. Mesmo que a lei obrigue, a própria consciência social deve levar-nos a perceber que não devemos promover isso.
Há também a arrogância de quem diz no meu dinheiro ninguém toca … ou que o filho foi um acidente. Eu, se tiver um acidente com o meu carro, fico responsável por reparar o carro da outra pessoa, cuidar dela e, se eu partir uma perna terei de me tratar ou viver com uma muleta. Agora dizer eu não queria? Quem está a perguntar isso? O facto é que está aí e há que assumir.
Homens fanfarrões, com grandes discursos e que, perante os filhos, são de uma cobardia vergonhosa …
Está a desculpabilizar as mulheres na sua quota-parte?
A mulher não é sempre vítima, o número de caso em que é o homem a tomar essa atitude é muito maior. O que há é casos em que a mulher endossa o filho aos avós. Isso é fruto também de uma inconsciência grande. Mesmo do ponto de vista da idade psicológica uma coisa é ser pai outra é ser avó. E faz falta no crescimento da criança tanto a condescendência dos avós como a exigência dos pais.
E o tema desta IV Semana Social?
Pretende-se chamar a atenção das pessoas sobre a importância do seu papel como cidadãos. No discurso de fim de ano o Presidente da República apelou a uma cidadania mais activa e plena. O papel desta semana é contribuir para que as pessoas debatam, vejam, tomem consciência de como podemos produzir coisas positivas, partindo das experiências nossas, das experiência das pessoas do interior e da de gente do estrangeiro. Isso é importante. A participação e democracia não são exclusivos de um grupo, respeitam a toda a gente.
Nenhuma pessoa concentra todos os conhecimentos, precisamos de interacção, de discutir. A ideia é não pensar que a participação das pessoas fica ligada aos processos eleitorais. É agindo no meios em que estamos para fazer coisas positivas para nós e para os outros. Há que criar a ideia, diria, que quem não participa não tem o direito de esperar um país melhor.
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JOSÉ KALIENGUE – O PAÍS (angola) 14 janeiro 2011
Está agora envolvido na IV Semana Social Nacional, com o tema centrado na democracia e participação dos cidadãos.
O resultado das semanas sociais e dos estudos desenvolvidos pelo Centro Cultural Mosaico são encaminhados apenas para a hierarquia da Igreja, para a produção dos seus documentos, ou também para as autoridades políticas e administrativas do país?
O Centro Cultural Mosaico foi a primeira entidade angolana a assumir, em 1997, que tinha como objectivo do seu trabalho a promoção dos direitos humanos…
Daí ter sido este o tema da vossa primeira publicação?
Exactamente. Mas durante a guerra, quando começamos, era coisa para questionar, se fazia sentido falar em direitos humanos naquelas condições.
Houve quem questionasse. Mas se colocássemos apenas as questões do imediato, naquela altura, nunca sairíamos da situação em que estávamos. Iríamos ficar na mesma ou piorar. Pode-se usar uma imagem como se andássemos na rua a olhar sempre para a ponta do pé, o bico do sapato, provavelmente bateríamos em muita coisa, porque ficamos sem uma visão mais alargada do que nos rodeia. Neste sentido, a promoção dos direitos humanos apareceu como um caminho para a promoção da paz e, desde que a guerra acabou, para a consolidação da paz.
Sendo uma iniciativa dos missionários dominicanos, cristãos católicos, sempre foi assumida no seio da Igreja, mas, desde o início, que as pessoas que colaboram e trabalham no Mosaico podem pertencer e pertencem às diferentes confissões religiosas. A confissão religiosa não é uma condição para trabalhar, ou não, no Mosaico, embora sendo evidente que as pessoas têm de partilhar uma série de ideais, o respeito por um conjunto de regras … mas, mesmo assim, temos colegas que ou não professam nenhuma confissão religiosa, ou confessam outras confissões religiosas e que respeitam …
Pode-se colaborar com o Mosaico mesmo a partir de fora, mesmo não vivendo em Angola?
Eventualmente pode-se colaborar a partir de fora, temos só de encontrar as modalidades de colaboração. Se as nossas condições de informação e de energia estivessem melhor, se calhar seria mais fácil ter colaborações a partir de fora. Mas temos tido, ainda que pontualmente, colaboração… Apesar das dificuldades a perspectiva dos fundadores do Mosaico sempre foi a de um trabalho para toda a sociedade.Aliás, a própria Igreja não trabalha para si mesma, trabalha para o benefício da sociedade…
E como é que avaliam, depois, o impacto do vosso trabalho na sociedade?
Eu creio que o impacto ultrapassou muito o que nós poderíamos esperar de início. Digo-o por duas razões principais: por um lado, pela quantidade e diversidade de solicitações, que ultrapassam até a nossa capacidade de resposta, o que manifesta que o que estamos a fazer corresponde a uma necessidade das pessoas, por isso elas continuam a solicitar … o Mosaico, habitualmente corresponde às solicitações das pessoas, não toma a iniciativa de começar coisas sem um apoio e trabalho ao nível local que dêem sustentabilidade àquilo que se faz. Até porque o Mosaico começou com limitações financeiras, de pessoal … hoje a capacidade é muito maior, o que reflecte um impacto positivo, esta capacidade de crescimento sustentado.
Este crescimento só é possível com o reconhecimento de que o trabalho que se faz é positivo. Em muitos casos, onde se começou com um seminário de formação num município, hoje temos todos os municípios da província envolvidos em dinâmicas semelhantes.
As solicitações são normalmente feitas pelas administrações, entidades públicas, ou por pessoas já ligadas ao movimento social da Igreja?
Depende. Há uma grande parte de solicitações de pessoas ligadas à Igreja … mas que, muitas vezes, têm também ligações a outros órgãos… ou da administração do Estado, não necessariamente administradores, mas ao nível de instituições públicas e outras.
Mesmo nos ministérios, por exemplo, temos uma colaboração com a Direcção Nacional de Saúde Pública, que já data de há vários anos, há colaborações pontuais com o Instituto Nacional de Luta contra ao HIV SIDA, para falar de organismos públicos que não estão formalmente ligados à Igreja. Há também a solicitação de grupos de igrejas irmãs que nos pedem também apoio, informação, etc. e há grupos que, não sendo necessariamente confessionais, envolvem cristãos.
Além dos direitos humanos, o Mosaico trabalha a promoção da democracia, que é também um direito humano …
Exactamente. Nós não consideramos que trabalhamos outras áreas, nós trabalhamos várias componentes de uma área central que, genericamente, podemos denominar de direitos humanos. Os direitos que assentam na dignidade da pessoa. Parece-nos que se contribuirmos para que esse respeito vá crescendo em Angola, toda a sociedade vai beneficiar com isso. Em última análise é isso o que pretendemos. Agora, como chegar aí? Obviamente que uma das forma de chegar é contribuir para que haja maior espaço democrático, um maior espaço de participação. Não é a única maneira, mas é uma, certamente, das formas. Outra é contribuir para que o Estado possa estar melhor preparado para cumprir aquela que é a sua função numa sociedade: ajudar também os cidadãos, as organizações, para estarem também preparados para cumprirem com as suas actividades.
Se conseguirmos ter cidadãos mais preparados, organizações da sociedade civil mais preparadas, administrações ou entidades públicas mais preparadas e um sistema político com pessoas mais conscientes daquilo que deve ser a sua função, então, certamente, estamos a contribuir para um maior respeito dos direitos humanos e para que haja um sentido de pertença, de bem comum, de respeito com o outro e com as instituições, muito maior do que aquele que vamos observando no dia-a-dia.
Embora se deva reconhecer que várias coisas têm mudado no sentido positivo e que se conseguem coisas, hoje, que seriam muito difíceis de imaginar há dez, doze anos atrás.
Quando fala de democracia e direitos humanos fora de Luanda, como sente que as pessoas que encontra vivem estes dois conceitos?
Creio que os vivem de uma forma muito prática e, se calhar, ao contrário do que muita gente em Luanda imagina, eu creio que muitos destes processos participativos são mais fáceis de construir em municípios do interior do país do que, por exemplo, em Luanda e na periferia de Luanda. Porque superadas algumas desconfianças iniciais, normais, as pessoas acabam põe se conhecer e por estabelecer um capital de confiança maior que nas grandes cidades. Se as pessoas percebem que todos podem ganhar, que não se trata de beneficiar uns para prejudicar outros, que é para que cada um cumpra melhor o seu papel para que todos possam ganhar, não apenas nós mas também o que entregamos às gerações que nos seguem … neste sentido, apesar das dificuldades, há muitos exemplos admiráveis que muita gente em Angola não conhece. Há processos de participação, de transformação do cidadão que não são olhados pela media, mas que não deixam de ser reais e que transformam a realidade local representando mudanças muito positivas para as pessoas.
Indica-nos exemplos desses?
Um dos municípios onde começámos este tipo de trabalho em 1999 foi o da Matala, no interior da Huila.
Na altura, a Matala era um município charneira, porque o domínio territorial do governo da Matala para a frente não estava garantido, era uma zona que oscilava de domínio conforme os avanços e recuos do conflito militar e, portanto, havia lá muita gente refugiada por ser uma espécie de tampão a partir do qual as pessoas se sentiam seguras… Com o fim da guerra, várias pessoas voltaram ao Kuvango, a Jamba Mineira, a outros municípios e a experiência de conhecimentos e práticas de direitos humanos que aprenderam na Matala, enquanto deslocadas, faz com que queiram ir para os seus municípios e introduzir também esse tipo de processos e dinâmicas,agora que é a fase de reconstruir a vida. São pessoas simples, com níveis académicos baixos, mas que percebem claramente que a questão dos direitos humanos pode ser importante para assegurar mudanças positivas na sua vida. Isto produz também uma aproximação entre os responsáveis e as próprias pessoas. Porque as pessoas deixam de ter medos dos responsáveis e estes deixam de ter medo das pessoas.
Fala-se em democracia a duas velocidades em Angola, quando anda pelo interior do país, sente-o?
Não diria que há duas velocidades … então há muitas velocidades. E não faria uma distinção linear entre zonas urbanas e zonas rurais. Assistimos também em zonas urbanas a acontecimentos que me parecem muito tristes, no ponto de vista da participação democrática das pessoas. Vimos como uma manifestação de apoio a lei contra a violência doméstica foi reprimida.
Numa sociedade democrática, num Estado de direitos, onde as pessoas … nunca ouvi que não tivessem cumprido os pressupostos da Lei das Manifestações que são mínimos … e isso aconteceu. Estamos no coração de Angola, onde se diz que estaríamos na primeira velocidade … a mim parece que este acontecimento está muito perto da última velocidade… Por outro lado, de formas pouco mediáticas, mas muito importantes, porque não passam por uma liberdade de expressão muito efectiva, mas pelo envolvimento das populações, dos dirigentes, conseguem-se transformações políticas importantes. Se calhar, formalmente os elementos democráticos não estão presentes, mas na prática são processos participativos, correspondem às necessidades das populações, ajudam a transformar a vida das pessoas para melhor.
Neste aspecto, existem experiências interessantíssimas, até mais no interior do país, mas que são desconhecidas.
Deixe-me voltar com um exemplo da Matala, que me parece admirável: fomos convidados pelo Arcebispo do Lubango, D. Zacarias, para fazermos seminários de formação na sua diocese.
Fomos ao Namibe, na altura pertencia a arquidiocese do Lubando, Matala e ao Lubango. Seria o Leste, o Centro e o Oeste da arquidiocese na altura. Na Matala falou-se, nos direitos humanos, da vontade das pessoas em fazer o ensino médio, na altura tinha-se que ir ao Lubango, o que nem todos podiam … e lembro-me que, quando apresentámos os indicadores de desenvolvimento humano em Angola e as pessoas tomaram consciência da situação da educação no país, que o índice de analfabetismo na nova geração poderia ser maior que na antiga geração, assim o diziam os indicadores na altura, … e as pessoas perceberam que se ficasse à espera do Estado se calhar as coisas nunca mais se resolveriam, ou que chegariam num tempo em que para eles já não viriam a tempo … lembro-me de as pessoas dizerem-se admiradas por a situação ser geral quando pensavam que era apenas com elas no interior … depois do seminário, já nós tínhamos vindo embora, fizeram uma lista das pessoas que queriam estudar, fizeram uma pequena contribuição, alugaram umas instalações, contactaram alguns engenheiros brasileiros da barragem da Matala, e alguns funcionários para colaborar.
Depois mandaram dizer ao Lubango que o Instituto Médio da Matala estava criado. O director era um aluno.
E foi legalizado?
A direcção da educação da Huila disse-lhes que não poderia legalizar o instituto, mas deu-lhes uma solução.
Disse-lhes: vocês estudam nessa escola em regime de autogestão, seguindo os programas, e no fim candidatam-se aos exames do Ministério da Educação como alunos externos. Assim, por iniciativa local, as pessoas que viviam na Matala puderam estudar o ensino médio, administradores incluídos. Sei que, a seguir, os municípios vizinhos de Kaluquembe, e Chicomba apanharam boleia e fizeram o mesmo, também criaram o ensino médio … sem fazer isso contra ninguém, temos aqui um exemplo de como as pessoas tomaram a iniciativa e envolveram as autoridades. Há várias experiências deste tipo.
Recordo-me de algumas palestras dos direitos humanos em que a polícia ia como que para espiar o que se estava a passar, mas depois de duas ou três iniciativas eram eles a sugerir que aquelas iniciativas fossem desenvolvidas também na própria polícia. A partir daí houve formação sobre direitos humanos no comando municipal da Matala, feita por pessoas da comunidade. Podemos ou não chamar a isso processos democráticos? Neste sentido, creio que estas simplificações de democracias a duas velocidades não ajudam nada, criam uma imagem estereotipada do país, não ajudam a reconhecer o imenso valor de inúmeras iniciativas pouco conhecidas, mas que produzem efeitos. O facto de os jornais não chegarem a todo o lado e das rádios não serem ouvidas em toda a parte, o que não é bom, não significa, por outro lado, que existem duas velocidades.
Mas não está tudo nivelado …
No interior do país há situações muito diversas, como na zona urbana há situações muito diversas. Creio que este estereotipo acaba por esconder mais a realidade que por mostrá-la.
Mas no plano económico há diferenças evidentes. Existem creches a cobrar 2500 dólares, por mês, por cada criança. Isto pode ser um potencial de conflito ou apenas a dinâmica social que vai diferenciando as classes?
O facto isolado, em si, é um indicador de que alguma coisa não está bem na sociedade. Porque para se ter uma criança na creche tem de se pagar, ao mês, aquilo que muitas pessoas não ganham num ano … alguma coisa não está muito bem. Do ponto de vista individual, há iniciativa, as pessoas podem livremente abrir uma creche e estabelecer os preços que entenderem adequados, e se houver clientes para essa oferta …
Mas estamos a falar da nossa sociedade, com os salários oficiais que se conhecem … haver gente para estas instituições que se vão multiplicando …
Eu creio que um dos indicadores muito preocupantes, principalmente desde que a guerra acabou, é o que aponta para que na sociedade angolana aumente a desigualdade social.
Com o fim da guerra, quem já tinha acesso aos recursos, tem agora muito mais facilidades e quem não tinha acesso aos recursos até os poucos que tinha está a perde-los. O que acontece agora é o contrário do que aconteceu durante a guerra, quando tínhamos a pobreza concentrada, os deslocados, as zonas de acantonamento … agora temos a riqueza concentrada. Vamos ai ao Talatona, damos uma volta e se colocarmos as imagens em revistas e jornais e dissermos que se está na num país europeu ou da América Latina, ou da Ásia, ninguém estranha. Há, de facto, um conjunto de situações preocupantes. Por exemplo, ouvi contar que, perto do bairro onde vivo, um bairro periférico, e que tinha abastecimento de água, a conduta que abastecia aquela zona foi cortada para abastecer um condomínio. O condomínio, se precisa de uma conduta que a crie e quem pode pagar as casas do condomínio que o faça … uma das coisas curiosas é que os ricos deste país pagam a água muito mais barata que os pobres. Uma família pobre paga a água a um custo insustentável …
Porque tem de comprar todos os dias?
Todos os dias. Porque tem de comprar o bidão, tem de carregar … já sem falar dos problemas de reumatismo porque a roupa molhada seca no corpo, os problemas de coluna porque culturalmente são as pessoas a carregar a água à cabeça … não basta dizer que se gastou milhões com o abastecimento de água a Luanda, por exemplo, tem de se dizer como é que este benefício é distribuído pela população.
E esta segunda parte normalmente não é divulgada. Há ainda um outro aspecto: a capital gasta grande parte do orçamento do país, do que vai para as províncias também é gasto, quase tudo, na capital da província, e o que vai para os municípios fica quase tudo na sede municipal. Estamos a conduzir uma política que em termos práticos leva a desertificação do país. Há uma concentração gradual nas zonas onde há investimento. E acabamos por criar condições em qu, num lado, vivem os ricos e, no outro, vivem os marginais, que vão tentar encontrar oportunidades para, muitas vezes através da delinquência, tentar obter o que não conseguem de outra maneira e a que também têm direito. Estamos a criar situações em que, ao contrário do que se possa pensar, as pessoas com mais rendimentos vivem mal, porque vivem com medo. Normalmente as cadeias têm polícias por fora para que os presos não saiam, os nossos condomínios têm polícia à porta para que os de fora não entrem. Mas quem está dentro está preso.
As crianças e jovens que crescem nos condomínios têm medo de andar na cidade, têm medo de ir a um bairro da periferia. É a maior parte da cidade que está a ser excluída, estamos a criar um fosso não só económico mas também mental, também cultural. As pessoas passam a andar com medo diante dos outros. Uma sociedade em que este tipo de medos mútuos existe, estas necessidades de segurança crescentes, são sinais de que há problemas de base que não estão a ser equacionados da melhor forma.
E pode correr mal isso?
Há o risco de correr mal, o risco inerente à vida humana …
Como o que aconteceu na África do Sul?
Ou como o que aconteceu em Moçambique. Eu creio que a memória fresca da guerra e de todo o sofrimento que a guerra comportou leva as pessoas a uma certa moderação. Ou seja, não criar situações em que possamos voltar ao sofrimento da guerra. Mas esta é uma memória que as novas gerações não têm. Quem hoje tem vinte anos não sabe o que é uma rusga. E, portanto, a paciência que aqueles que viveram a guerra ainda demonstram com certas situações, que são injustas do ponto de vista social, tende a esbater-se muito rapidamente. É só uma questão de renovação geracional. Eu creio que este risco existe hoje.
Numa sociedade que fica muito tempo cristalizada em torno de um certo número de pessoas, essas pessoas não são eternas, como nenhum de nós é eterno, então os problemas de sucessão põem-se de uma forma complicadíssima. Estamos a ver agora o que está a passar na Costa do Marfim e que é consequência, ainda, de alguma maneira, do que foi o tempo do Presidente Houphouët-Boigny … mas vemos a sabedoria do Mandela, na África do Sul, que, cumprido o seu tempo soube sair, vimos agora no Brasil uma situação em que um presidente que tinha oitenta e tal por cento de aceitação do povo e que não quis mudar a Constituição para ter mais um ou dois mandatos … este é outro problema que não é só ao nível do topo, se as instituições funcionarem numa lógica muito fechada as questões de sucessão e de adaptação às mudanças sociais põem-se de forma complicada.
Para quem faz trabalho com as comunidades e conhece os problemas que ela vive, percebe se os problemas da sociedade têm efeito na estrutura familiar … ou será o contrário?
É um ciclo vicioso. A desestruturação das famílias desestrutura a sociedade e a desetruturação da sociedade desestrutura a família.
Por onde é que se deve começar para resolver isso?
Eu creio que não podemos começar por um lado sem pegar o outro. Talvez a medicina nos dê um bom exemplo.Se a gente chegar a um hospital com um ferido com hemorragias graves numa perna e num braço, não vamos escolher onde começar, vamos tratar do braço e depois da perna, ou vamos tratar da perna e depois do braço.
Temos de estancar o sangue no braço e na perna o tão rapidamente possível, senão o doente morre. Se fizermos um muito bom trabalho na perna mas não cuidarmos do braço perdemos a pessoa. Aqui é a mesma coisa, não podemos por em termos de alternativa, porque se há um círculo vicioso na desestruturação, também se pode criar um círculo virtuoso na construção.
Fortalecer a família acaba por fortalecer a sociedade e ajudar na estruturação da sociedade ajuda a estruturar a família. Hoje falamos de protecção do ambiente, devemos também proteger o ambiente social, humano, devemos falar da ecologia humana.
O que temos é que muitas vezes os discursos dizem uma coisa, mesmo nas famílias, e a prática é oposta ao que se está a dizer. Mas as pessoas guiam-se com a prática, não com os discursos. Eu estou convencido que algumas pessoas pensam que mudando o discurso muda-se a realidade. Mas não muda. Que o discurso evolua é importante, mas a realidade não muda só com ideias.
Mas o Centro Cultural Mosaico vai apontando caminhos?
Nós trabalhamos numa vertente divulgação de direitos humanos, com seminários, publicações, etc.; numa vertente de formação, com pessoas e instituições e uma vertente de protecção do cidadão, ligada a casos que possam eventualmente ser defendidos em tribunal ou, pelo menos, com aconselhamento jurídico a pessoas que normalmente não têm acesso a um advogado. Isso também no interior do país, onde praticamente não há advogados. A simples presença do advogado já muda o comportamento dos mais poderosos, porque sabem que há algumas coisas que se poderiam permitir abusando da ignorância dos outros, mas se os outros têm acesso a informação, eles, no mínimo, têm de ser mais cuidadosos. Aí sim, há um défice muito importante de informação, particularmente no interior do país, porque chega pouca informação e há muita gente que a recebe e guarda, com a ideia de que informação é poder. Se eu a tenho, facilmente posso manipular os outros. Infelizmente não se pensa que a informação é um bem básico para o desenvolvimento do país. Para que todos possamos saber e contribuir para o bem de todos.
Mas há também o caso de dirigentes que têm medo das pessoas, que elas saibam das suas limitações, da sua incompetência, quando temos casos de dirigentes que, conscientes das suas limitações, pedem a ajuda das pessoas e elas participam, criando um movimento mais positivo.
Mas os poderosos guardam a informação e também os bens para si...
Isso acontece também nas famílias. Pais que se recusam a contribuir para a educação dos filhos … há quem diga que antigamente também havia poligamia. Mas havia pedido a cada uma, havia casa para cada uma, uma lavra para cada uma e a assumpção dos filhos de cada uma, não era uma barafunda. O que temos hoje é uma irresponsabilidade enorme, muitas vezes, invocando uma tradição que nada tinha dessa irresponsabilidade. Independentemente de ele estar casado, um homem e uma mulher que coloquem uma criança no mundo, quer o tivessem ou não previsto, têm de assumir essa responsabilidade e têm de a partilhar. Uns evocam provérbios dizendo que quem cuida dos pintos é a galinha, mas os pombos cuidam e alimentam os filhos os dois … vamos viver na capoeira? Usam-se provérbios para justificar coisas que as pessoas sabem que não estão certas. Que nós não gostaríamos de passar. Quem de nós gostaria que os nossos pais não cuidassem de nós? Que nos abandonassem? Veja agora quantos homens tiveram muitas mulheres, muitos filhos e que, na velhice, estão abandonados … e os filhos dizem-lhes na cara: quando precisei não cuidou de mim, agora quer o quê? aí a pessoa que se julgava viva, esperta, agora vive as consequências do tipo de vida que levou. Mesmo que a lei obrigue, a própria consciência social deve levar-nos a perceber que não devemos promover isso.
Há também a arrogância de quem diz no meu dinheiro ninguém toca … ou que o filho foi um acidente. Eu, se tiver um acidente com o meu carro, fico responsável por reparar o carro da outra pessoa, cuidar dela e, se eu partir uma perna terei de me tratar ou viver com uma muleta. Agora dizer eu não queria? Quem está a perguntar isso? O facto é que está aí e há que assumir.
Homens fanfarrões, com grandes discursos e que, perante os filhos, são de uma cobardia vergonhosa …
Está a desculpabilizar as mulheres na sua quota-parte?
A mulher não é sempre vítima, o número de caso em que é o homem a tomar essa atitude é muito maior. O que há é casos em que a mulher endossa o filho aos avós. Isso é fruto também de uma inconsciência grande. Mesmo do ponto de vista da idade psicológica uma coisa é ser pai outra é ser avó. E faz falta no crescimento da criança tanto a condescendência dos avós como a exigência dos pais.
E o tema desta IV Semana Social?
Pretende-se chamar a atenção das pessoas sobre a importância do seu papel como cidadãos. No discurso de fim de ano o Presidente da República apelou a uma cidadania mais activa e plena. O papel desta semana é contribuir para que as pessoas debatam, vejam, tomem consciência de como podemos produzir coisas positivas, partindo das experiências nossas, das experiência das pessoas do interior e da de gente do estrangeiro. Isso é importante. A participação e democracia não são exclusivos de um grupo, respeitam a toda a gente.
Nenhuma pessoa concentra todos os conhecimentos, precisamos de interacção, de discutir. A ideia é não pensar que a participação das pessoas fica ligada aos processos eleitorais. É agindo no meios em que estamos para fazer coisas positivas para nós e para os outros. Há que criar a ideia, diria, que quem não participa não tem o direito de esperar um país melhor.
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