Além do governo Berlusconni, só os grandes jornais têm interesse na extradição do italiano. Um exame detalhado do caso revelará por que.
BRUNO CAVA - Quadrado dos Loucos – OUTRAS PALAVRAS
Todo crime é político. Em maior ou menor grau, a criminalização de uma conduta depende de escolhas políticas. No Brasil, não configura mais crime o adultério. Nem de incesto. No Irã, a mulher que trai o marido pode ser condenada ao apedrejamento. Na Suécia, transar sem camisinha em certos casos pode ser crime. No Vaticano, obviamente, não é assim. Mesmo delitos mais universais, como o assassinato, embutem uma política criminal. Em alguns lugares, o homicídio pune-se com a morte. Noutros, pode ser justificado pela defesa da honra. As condições agravantes e atenuantes divergem. A premeditação, nos EUA, agrava. Já no Brasil, é indiferente. Em todos os casos, direito e política penais se incidem mutuamente, de modo que a distinção entre “preso político” e “preso comum” acaba sendo de grau, e não de natureza. Não existe detento 100% apolítico.
No apagar das luzes do mandato, o presidente Lula se recusou a entregar Cesare Battisti a Silvio Berlusconi, negando o pedido de extradição feito pela Itália. Seguindo os termos do tratado entre os dois países, a decisão de Lula fundamentou-se na nítida conotação política do caso. Em outras palavras, entendeu o presidente que, se Battisti fosse extraditado, receberia do estado italiano um tratamento tendencioso, desproporcional, injusto.
Na decisão, a presidência ratificou o parecer técnico da Advocacia-Geral da União: “situações particulares ao indivíduo [Battisti] podem gerar riscos, a despeito do caráter democrático de ambos os Estados“. Lula também acolheu as opiniões de juristas do quilate de Dalmo Dallari, Bandeira de Mello, José Afonso, Nilo Batista e Paulo Bonavides, que assinaram juntos uma carta aberta. Outro manifesto pró-refúgio, por juristas baseados no Rio Janeiro, já havia sido publicado em outubro de 2009.
Na turbulenta Itália dos anos 1970, Battisti atuou como militante de esquerda. Participava do coletivo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), um dos muitos grupúsculos vermelhos da época, engajado na luta armada. Ao longo dos anos setenta, dezenas de milhares de pessoas foram presas. Houve repressão sistemática dos governos italianos a organizações de esquerda, tachadas de “terroristas”. Houve aplicação de leis de exceção, julgamentos sumários e financiamento de “comandos” paramilitares. Muita gente foi presa ou morta de roldão, sob suspeitas genéricas, tais como “mentor moral” de ações subversivas ou “associação” à militância armada.
Nesse contexto de convulsão social, e tendo como objetivo a derrubada do regime, os PAC se envolveram diretamente em furtos de carros, armas e bancos, propaganda “subversiva” e quatro mortes: um policial, um agente penitenciário e dois partidários da extrema-direita, que haviam matado militantes do outro lado.
Em 1979, o grupo foi desmantelado. Quatro de seus integrantes, mas não Cesare, foram condenados por um dos assassinatos citados. Sem conexão com os homicídios, Battisti foi acusado e condenado a doze anos de prisão pelo delito de associação (“participação em organização subversiva e em ações subversivas”), mas inocentado de qualquer homicídio. Cumpriu pena numa cadeia para presos políticos não-violentos, entre 1979 e 1981, ano em que conseguiu fugir.
Foi para o México e depois à França. Esta reconheceu seu status de asilado político e ele lá viveu tranqüilamente por 14 anos. A Itália requereu a extradição em 1991, mas o governo francês negou-a, sem maiores traumas. No entanto, uma vez empossado o presidente francês de centro-direita, Jacques Chirac, e dentro já do discurso de “caça aos terroristas” de Berlusconi, em 2003 a Itália solicitou novamente a extradição. O governo francês desta vez resolveu deferi-la, mas Cesare escapou para o Brasil.
Nesse ínterim, em 1982, um dos setenciados dos PAC por homicídio, Pietro Mutti decidiu”arrepender-se”. Para se dar bem com a delação premiada, jogou a culpa pelosquatro assassinatos nas costas do exilado Battisti. Apesar das versões conflitantes, os demais presos dos PAC confirmaram o alcagüete Mutti contra Cesare. Como dois homicídios tinham sido praticados ao mesmo tempo em lugares diferentes, explicaram que ele teria sido o “autor intelectual” de um e material do outro. Ou seja, na narrativa dos dedos-duros, de imberbe novato de 20 anos, Cesare se tornara o cérebro comandante da organização.
Como conseqüência, o processo do refugiado foi reaberto, agora como único acusado. Ausente, sem advogado constituído por ele, sem defesa minimanente eficaz, surgiu o bode expiatório. Num julgamento transformado em espetáculo, Cesare Battisti foi condenado à prisão perpétua, como único autor de todos os assassinatos políticos dos PAC.
Em 2007, Cesare Battisti foi preso no Brasil, com apoio logístico do ministro do interior francês Nicolau Sarkozy. Naquele ano, o político faria amplo uso eleitoral do fato e terminaria eleito presidente. Reconhecendo a perseguição motivada politicamente, o ministro da justiça Tarso Genro lhe concede o status de refugiado político em janeiro de 2009. Seguia o mesmo raciocínio aplicado a outros militantes italianos do período, refugiados no Brasil.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, em duvidosa interpretação jurídica, cassou a decisão do MJ. E, em apertada votação, declarou que Battisti é passível de extradição, reservando a competência pela decisão ao chefe de estado brasileiro. Por sua vez, Lula, provavelmente não querendo abrir a guarda para a grande imprensa em ano eleitoral, decidiu somente no último dia do mandato.
A bem da verdade, o presidente Lula teve o singelo mérito de não contornar o óbvio. O caso de Cesare Battisti é político. Acintosamente. Não há como considerá-lo “criminoso comum“. De todos os ângulos imagináveis.
Não é questão simplesmente de ser pró-Battisti. Em situação análoga à prisão (política!) de Julian Assange do Wikileaks, o caso não é ser pró-Battisti, mas anti-anti-Battisti.
A quem interessa a extradição?
Em primeiro lugar, ao primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi. Quem acha a grande imprensa daqui conservadora, oligopólica e racista, não conhece a italiana. Dono de boa parte dos jornais, rádios e TV da Itália, Berlusca encabeça um governo corrupto e às raias do fascismo. O intelectual italiano Antônio Negri compara-o à pusilânime República de Saló (1943-45), — assunto de famoso filme de Pier Paolo Pasolini. Pródigo em discriminar imigrantes e baixar o porrete em descontentes, a permanência do premiê no poder foi o estopim centelhou a seqüência de protestos do “dezembro quente”.
Decidida a não-extradição em 31 de dezembro, Berlusconi inaugurou uma campanha jactante, atacando o governo brasileiro e a pessoa do presidente. Afinal, intimidar sempre foi a especialidade do fascismo. Com ainda mais motivo tratando-se de países terceiromundistas. Mas suas estridências somente comprovam o caráter político da perseguição à Battisti. Tornou-se um cavalo de batalha do governo italiano porque era militante de esquerda, e não por supostamente ter praticado crimes.
Cito o Blog do Miro:
“Um caso emblemático envolve Delfo Zorzi, 62 anos, ex-líder da seita neofascista Ordine Nuovo, que promoveu, nos anos 60 e 70, inúmeros atentados à bomba. Zorzi foi condenado em primeiro grau, e depois absolvido, pelo atentado da Piazza Fontana, em Milão, em 1969, que resultou em 17 mortos e 84 feridos. Atualmente, está sendo processado pelo atentado em Brescia, em 1974, contra uma manifestação sindical antifascista, que causou oito mortes e mais de 90 feridos. Zorzi vive há anos no Japão, onde se naturalizou e tornou-se um rico empresário do setor têxtil. O pedido de extradição feito ao Japão jamais foi atendido, nem o governo italiano fez muito para isso. Vários ex-integrantes do Ordine Nuovo são hoje militantes da AN (partido herdeiro do neofascista do Movimento Sociale Italiano – MSI) e da ‘Lega Nord’, um partido xenófobo. NA e Lega são aliados de Berlusconi e integram seu governo.”
Vale também recordar o caso de Nicola Calipari. Agente do serviço secreto italiano, morreu em 2005, em serviço no Iraque. Confundido com um carro-bomba pelas tropas dos Estados Unidos, seu veículo recebeu mais de 400 tiros numa barreira. Em vez de determinar uma investigação com a seriedade pertinente, Berlusconi propôs ao embaixador americano “ultrapassarmos rapidamente o incidente” [meu grifo], como demonstrou informação vazada pelo Wikileaks.
A grande imprensa brasileira é a outra interessada com a remessa de Battisti a Berlusconi. Não à toa, apressou-se em colar em Cesare a pecha de “terrorista”. Contraditoriamente, chama-o também de “criminoso comum”. Deu como inquestionável a condenação do militante no processo viciado da justiça italiana. Fechou os olhos para a violação de garantias fundamentais e do devido processo legal substantivo, no julgamento espetacular de Cesare. Tapou o sol com a peneira, ao não explicar a situação histórica da Itália dos anos 1970, quando vigia praticamente uma guerra civil. Não deu espaço equivalente para os fortes argumentos da defesa de Battisti.
Tentou, com todos os artifícios de seu péssimo jornalismo, desgastar o governo Lula. Com diuturnos editoriais e notícias enviesadas, concitou os seus próceres no STF (sobremaneira o ministro Gilmar Mendes) a desautorizar o ministro da justiça e o presidente. Manobrou eleitoralmente para associar o ex-guerrilheiro Cesare à ex-guerrilheira Dilma, como “criminosos comuns”. Só noticiou os protestos de simpatizantes de Berlusconi em Piazza Navona, mas não as manifestações européias de apoio a Lula.
Em suma, como é praxe: a grande imprensa brasileira, — sobretudo as Organizações Globo e a Folha de São Paulo (esta chegou a forjar vítimas inexistentes), — procurou fazer do quadrado redondo, em mais um desserviço à democracia brasileira.
O fato é que, hoje, a década de 1970 está no núcleo das lutas pela memória brasileira e italiana.
De um lado, o governo de Berlusconi busca reforçar a mitologia nacionalista que o sustenta, ao redor da bandeira antiterrorista. Outra farsa, em que a imolação de Battisti reafirmaria o triunfo do consenso autoritário que vem desde os anos setenta, entre uma direita fascistóide e a esquerda velha.
Por outro lado, a grande imprensa brasileira se assusta diante dos fantasmas, que, quarenta anos depois, insistem em levantar-se de tumbas anônimas. Simbolicamente, condenar Battisti significa mais uma vez inocentar a participação dessa mídia na ditadura brasileira. É ela, sub-repticiamente, que está começando a ser julgada. Daí a virulência de noticiários e colunas opinativas. Lançar a cortina de fumaça sobre o caso Battisti é também camuflar a si mesmo, exilando a verdade em algum futuro distante.
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