segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A VIDA DOS OUTROS

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Carlos Picassinos - Hoje Macau - 28 Janeiro 2011

“Os políticos são como as fraldas, de vez em quando têm de ser mudadas” ou “Cavaco ainda é mais sério quando está a dormir”. Enfim, foi um pagode de campanha. Pena ter acabado

1. UMA PALAVRA para a nova década? Refluxo. Refluxo de quê? Da democracia, pois claro. Não há dúvida de que a crise económica atrofia a virtude democrática e essa é também a segunda crise que começa a integrar o discurso público ocidental. Não é, exactamente, novidade o afastamento dos representados e representantes, a fraca imagem dos partidos, ou a suspeita ética sobre o exercício dos cargos públicos. O que parece novo e agudizar-se é a impunidade dos titulares de cargos políticos, a ideia de que em nome da sobrevivência é legítimo deitar fora a água e o menino, vender os anéis e os dedos, trocar a consciência pelo estômago e, já agora, por um paraíso fiscal. É mais ou menos este o cenário das democracias mais débeis da Europa em busca de uma folga económico-financeira nesta vertigem dos mercados, e de défices e da conversa económica. A outra face desta moeda é o lento desaparecimento da classe média, a reprodução de uma massa alargada de depauperados paralela à ascensão de uma elite enriquecida e abastada que sente que tudo pode e de nada é responsável. É nesta tenaz que a esfera pública se encontra – uns porque estão excluídos do exercício efectivo dos seus direitos, outros porque lhes são indiferentes e deles prescindem. É claro que o papel de bombeiro-sapador que ditaduras como a China ou avatares estão, neste momento, a exercer junto destas democracias em nada as beneficia. Elogiar o prodígio económico de regimes como o chinês e sacudir os direitos humanos do capote significa um tiro no próprio pé e, a longo prazo, a erosão de um património civilizacional de respeito pela radical autonomia e liberdade dos indivíduos que demorou séculos e custou sangue e inteligência a consolidar. Não é que as democracias sejam o sal da terra, e especialmente, a jovem democracia portuguesa que nunca conseguiu abandonar o estado de menoridade cívica e o concurso de polvos e padrinhos. Nem é preciso ir mais longe.
Mas entre uma ordem jurídica de direitos e garantias de boa convivência entre todos e um regime ditatorial em que predomina a lei dos mais forte não há indecisão possível. É claro que para quem o poder e os negócios estão primeiro toda esta conversa significa pouco mais que proselitismo ocidental. Numa cleptocracia, os democratas são sempre os bobos da corte. Mas como dizia o outro, é a vida.

2. Notícias da metrópole: a propósito de democracia, o povo decidiu, está decidido. Logo à primeira voltou a escolher, para Belém, o contabilista do Poço de Boliqueime. Deu-lhe ouvidos e assim evitou que uma segunda volta provocasse a subida das taxas de juro da dívida externa portuguesa. Alívio generalizado. E pronto, já está. Tudo não passou de um susto. Aníbal António e a sua senhora – sim a dona Maria, basta consultar o sítio da presidência da Republica portuguesa – lá estão. (Dona Maria?? A memória é tramada!)

Nasceu um anti-herói: da ilha adjacente da Madeira, José Coelho, filiado no direitista Partido da Nova Democracia, mas comunista por convicção, povoa os talk shows da tarde televisiva e é incensado pela turba de viúvas e domésticas continentais seduzidas pelo elan. Nas presidenciais, Coelho conseguiu mais num mês do que num ano não conseguiram máquinas partidárias e bocas cheias de cidadania. Frases para a eternidade (pronunciar com sotaque devido): “Digo em voz alta o que a maioria pensa em voz baixa. Portugal está cheio de intocáveis”; “Vou ser o José Mourinho da política portuguesa” ; “Cristo fez a multiplicação dos pães e grandes multidões afluíam. Mas as pessoas não iam para ouvir o mestre, vinham para comer e para beber”; “O sr. Dias Loureiro é que devia ser o nosso ministro das Finanças, porque ele sabe como gerar dinheiro facilmente”.

“Os políticos são como as fraldas, de vez em quando têm de ser mudadas” ou “Cavaco ainda é mais sério quando está a dormir”. Enfim, foi um pagode de campanha.

Pena ter acabado. Já lhe sinto a falta. Suponho que seja isto a que se chama a festa da democracia. Venha outra.

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