Bernard Poter, do London Review of Books – Outras Palavras - Tradução: Coletivo VilaVudu
No século 19, era virtualmente impossível extraditar alguém da Grã-Bretanha. Em primeiro lugar, teria de haver acordo bilateral de extradição com o país envolvido. E esses tratados eram poucos. Todos especificavam muito precisamente a causa pela qual alguém poderia ser extraditado. Tinha de ser crime sério, reconhecido como tal também na Grã-Bretanha; teria de haver acusação formal; tinha de haver caso no qual se estabelecesse prima facie que a condenação seria altamente provável (também na Grã-Bretanha); ninguém poderia ser extraditado por um crime, para ser julgado por outro crime; e nunca haveria extradição por crime ‘político’. O conceito de crime ‘político’, naqueles dias, correspondia a crimes que seriam causa de extradição se não tivessem sido cometidos por causas políticas, como assassinato e também o que hoje se conhece como “terrorismo”.
Por fim, os magistrados britânicos tendiam a só extraditar para países cujos processos judiciais fossem considerados o mais próximos possível dos processos britânicos. A falta de sistema judiciário confiável era alegação frequente [para negar a extradição]. Vários governos estrangeiros, é claro, protestavam contra isso, quando, por exemplo, os britânicos negavam sistematicamente entregar-lhes refugiados políticos considerados perigosos; e os governos britânicos não raras vezes sentiram-se, é verdade, incomodados. A certa altura, nos anos 1850s, uma “questão dos refugiados” complicou-se a ponto de quase gerar uma guerra entre Inglaterra e França.
Mas os cidadãos britânicos ‘comuns’ orgulhavam-se muito da posição de seus magistrados; motivo pelo qual os governos jamais cediam ante exigências de estrangeiros nesse campo (nessa época, o verbo truckle começa a ser usado no sentido específico de ‘amaciar’ ou ‘ceder’, como sinônimo de rendição vergonhosa a potência estrangeira).
Talvez porque sempre penso em termos históricos, e estude história há muito tempo, mas absolutamente não estava preparado para a possibilidade de a Grã-Bretanha acolher o pedido feito pela Suécia, e extraditar Julien Assange para a Suécia. No século 19, o pedido dos suecos teria ido diretamente para a lata de lixo das cortes britânicas.
Sei que as coisas mudaram; mas eu ainda cria firmemente que a maioria das velhas salvaguardas ainda fossem vigentes. Parece que não. Pelo menos três das velhas boas exigências para que a Grã-Bretanha extraditasse alguém são absolutamente ausentes desse caso. Mas hoje já nem se poderia recorrer a elas, por obra do European Arrest Warrant [NT Mandato de Prisão Europeu. É mandato válido em todos os estados membros da Uninão Europeia (http://en.wikipedia.org/wiki/European_Arrest_Warrant)].
Essa ideia foi introduzida (por David Blunkett, do Partido Trabalhista inglês) em 2003, para tornar mais fácil a extradição de suspeitos de terrorismo, mas – como sempre acontece com medidas do chamado ‘contraterrorismo’ – já está sendo usada para prender também peixes pequenos: em 2009, cerca de 700 pessoas foram extraditadas da Grã-Bretanha para vários países da Europa. Basta que qualquer procurador estrangeiro requeira que lhe mandem qualquer tipo de suspeito, e lá se vai o suspeito, extraditado. Sequer se exige que haja processo ou acusação formais, e ninguém se interessa por saber com clareza o que alguém suspeita que o suspeito tenha feito.
Resta à defesa tentar mostrar que os procedimentos formais não foram corretamente cumpridos – e essa parece ser a principal linha de defesa no caso de Julien Assange. A defesa também pode tentar convencer os magistrados de que o pedido de extradição jamais foi necessário – posto que Assange poderia ser interrogado na Inglaterra –, não é racional, é politicamente motivado ou ativamente criminoso e mal intencionado (viciado, como se pode dizer, desde que partiu da mesa de uma procuradora sueca e ‘feminista radical’, de nome Marianne Ny); mas não há qualquer garantia de que essas objeções convencerão os magistrados britânicos, mesmo sendo verdadeiras.
Se Ny conseguir arrancar Assange da Grã-Bretanha, não quero fazer prejulgamentos sobre o que enfrentará em corte sueca, mas entendo que o réu esteja nervoso, ainda que seja inocente.
A definição sueca de “estupro” é diferente e mais ampla que a britânica, onde se exige algum grau de coerção para que se caracterize o estupro. A imprensa e vários políticos suecos não se têm mostrado simpáticos. Já há quem diga que o problema está em os britânicos não levarmos o estupro muito a sério. O primeiro-ministro sueco Fredrik Reinfeldt já se saiu com essa – o que me parece muito flagrante interferência política em processo judicial.
E há também o fato de que a lei sueca não assegura segredo de justiça a julgamentos por estupro. Tenho amigos suecos que não vêm problema nessa total publicidade, antes de haver culpa e culpados. Mas me preocupa. A todos deve ser assegurado o direito de ser julgado em corte judicial, antes, pelo menos, de ser linchado por jornalistas e por alguma chamada ‘opinião pública’.
Fato é que a intromissão do primeiro-ministro sueco teria bastado, para que a Inglaterra vitoriana negasse à Suécia a extradição de Assange.
Valha o que valer a minha opinião, não creio em nenhuma das teorias conspiracionais que cercam o caso Assange: não acho que tenha sido ‘armado’ pela CIA. Tampouco acho que a opinião pública sueca teria permitido que Assange fosse extraditado para os EUA – esse, aliás, outro de seus temores: há telegramas publicados por WikiLeaks nos quais se descobre que o atual governo ‘moderado’ da Suécia mantém contatos não confessáveis com os EUA, mais não confessáveis do que os suecos parecem dispostos a admitir. E ninguém pode saber se Assange será condenado ou absolvido das acusações que surjam contra ele na Suécia, nem pelos termos da justiça britânica nem pelos termos da justiça sueca.
O que sei, sim, com razoável certeza, é que a Grã-Bretanha de modo algum concederia essa extradição, nas circunstâncias conhecidas, se o caso acontecesse há 100, 200 ou dez anos – quando a Grã-Bretanha orgulhava-se de ser mais liberal e, com certeza, orgulhava-se de ser nação soberana.
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No século 19, era virtualmente impossível extraditar alguém da Grã-Bretanha. Em primeiro lugar, teria de haver acordo bilateral de extradição com o país envolvido. E esses tratados eram poucos. Todos especificavam muito precisamente a causa pela qual alguém poderia ser extraditado. Tinha de ser crime sério, reconhecido como tal também na Grã-Bretanha; teria de haver acusação formal; tinha de haver caso no qual se estabelecesse prima facie que a condenação seria altamente provável (também na Grã-Bretanha); ninguém poderia ser extraditado por um crime, para ser julgado por outro crime; e nunca haveria extradição por crime ‘político’. O conceito de crime ‘político’, naqueles dias, correspondia a crimes que seriam causa de extradição se não tivessem sido cometidos por causas políticas, como assassinato e também o que hoje se conhece como “terrorismo”.
Por fim, os magistrados britânicos tendiam a só extraditar para países cujos processos judiciais fossem considerados o mais próximos possível dos processos britânicos. A falta de sistema judiciário confiável era alegação frequente [para negar a extradição]. Vários governos estrangeiros, é claro, protestavam contra isso, quando, por exemplo, os britânicos negavam sistematicamente entregar-lhes refugiados políticos considerados perigosos; e os governos britânicos não raras vezes sentiram-se, é verdade, incomodados. A certa altura, nos anos 1850s, uma “questão dos refugiados” complicou-se a ponto de quase gerar uma guerra entre Inglaterra e França.
Mas os cidadãos britânicos ‘comuns’ orgulhavam-se muito da posição de seus magistrados; motivo pelo qual os governos jamais cediam ante exigências de estrangeiros nesse campo (nessa época, o verbo truckle começa a ser usado no sentido específico de ‘amaciar’ ou ‘ceder’, como sinônimo de rendição vergonhosa a potência estrangeira).
Talvez porque sempre penso em termos históricos, e estude história há muito tempo, mas absolutamente não estava preparado para a possibilidade de a Grã-Bretanha acolher o pedido feito pela Suécia, e extraditar Julien Assange para a Suécia. No século 19, o pedido dos suecos teria ido diretamente para a lata de lixo das cortes britânicas.
Sei que as coisas mudaram; mas eu ainda cria firmemente que a maioria das velhas salvaguardas ainda fossem vigentes. Parece que não. Pelo menos três das velhas boas exigências para que a Grã-Bretanha extraditasse alguém são absolutamente ausentes desse caso. Mas hoje já nem se poderia recorrer a elas, por obra do European Arrest Warrant [NT Mandato de Prisão Europeu. É mandato válido em todos os estados membros da Uninão Europeia (http://en.wikipedia.org/wiki/European_Arrest_Warrant)].
Essa ideia foi introduzida (por David Blunkett, do Partido Trabalhista inglês) em 2003, para tornar mais fácil a extradição de suspeitos de terrorismo, mas – como sempre acontece com medidas do chamado ‘contraterrorismo’ – já está sendo usada para prender também peixes pequenos: em 2009, cerca de 700 pessoas foram extraditadas da Grã-Bretanha para vários países da Europa. Basta que qualquer procurador estrangeiro requeira que lhe mandem qualquer tipo de suspeito, e lá se vai o suspeito, extraditado. Sequer se exige que haja processo ou acusação formais, e ninguém se interessa por saber com clareza o que alguém suspeita que o suspeito tenha feito.
Resta à defesa tentar mostrar que os procedimentos formais não foram corretamente cumpridos – e essa parece ser a principal linha de defesa no caso de Julien Assange. A defesa também pode tentar convencer os magistrados de que o pedido de extradição jamais foi necessário – posto que Assange poderia ser interrogado na Inglaterra –, não é racional, é politicamente motivado ou ativamente criminoso e mal intencionado (viciado, como se pode dizer, desde que partiu da mesa de uma procuradora sueca e ‘feminista radical’, de nome Marianne Ny); mas não há qualquer garantia de que essas objeções convencerão os magistrados britânicos, mesmo sendo verdadeiras.
Se Ny conseguir arrancar Assange da Grã-Bretanha, não quero fazer prejulgamentos sobre o que enfrentará em corte sueca, mas entendo que o réu esteja nervoso, ainda que seja inocente.
A definição sueca de “estupro” é diferente e mais ampla que a britânica, onde se exige algum grau de coerção para que se caracterize o estupro. A imprensa e vários políticos suecos não se têm mostrado simpáticos. Já há quem diga que o problema está em os britânicos não levarmos o estupro muito a sério. O primeiro-ministro sueco Fredrik Reinfeldt já se saiu com essa – o que me parece muito flagrante interferência política em processo judicial.
E há também o fato de que a lei sueca não assegura segredo de justiça a julgamentos por estupro. Tenho amigos suecos que não vêm problema nessa total publicidade, antes de haver culpa e culpados. Mas me preocupa. A todos deve ser assegurado o direito de ser julgado em corte judicial, antes, pelo menos, de ser linchado por jornalistas e por alguma chamada ‘opinião pública’.
Fato é que a intromissão do primeiro-ministro sueco teria bastado, para que a Inglaterra vitoriana negasse à Suécia a extradição de Assange.
Valha o que valer a minha opinião, não creio em nenhuma das teorias conspiracionais que cercam o caso Assange: não acho que tenha sido ‘armado’ pela CIA. Tampouco acho que a opinião pública sueca teria permitido que Assange fosse extraditado para os EUA – esse, aliás, outro de seus temores: há telegramas publicados por WikiLeaks nos quais se descobre que o atual governo ‘moderado’ da Suécia mantém contatos não confessáveis com os EUA, mais não confessáveis do que os suecos parecem dispostos a admitir. E ninguém pode saber se Assange será condenado ou absolvido das acusações que surjam contra ele na Suécia, nem pelos termos da justiça britânica nem pelos termos da justiça sueca.
O que sei, sim, com razoável certeza, é que a Grã-Bretanha de modo algum concederia essa extradição, nas circunstâncias conhecidas, se o caso acontecesse há 100, 200 ou dez anos – quando a Grã-Bretanha orgulhava-se de ser mais liberal e, com certeza, orgulhava-se de ser nação soberana.
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