quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

WASHINGTON E A FRATERNIDADE MUÇULMANA

.

Ian Johnson, New York Review of BooksOutras Palavras - Tradução Coletivo Vila Vudu

Ditadores apoiados pelos EUA no Norte da África e no Oriente Médio estão sendo derrubados ou, no mínimo, estão sendo vigorosamente sacudidos por protestos populares, e Washington vê-se às voltas com questão crucial de política externa: como lidar com a poderosa, embora opaca, Fraternidade Muçulmana.

No Egito, a Fraternidade está tomando parte muito ativa e cada vez mais significativa nos protestos de rua, e na 5ª-feira distribuiu manifesto em que exige a imediata renúncia de Mubarak. E embora ainda não se veja claramente (aliás, longe disso) que papel teria a Fraternidade se Mubarak renunciar ou for derrubado do poder, o presidente egípcio não se cansa de dizer, em tom de ameaça, que “os Irmãos” tomarão o poder. Seja como for, o movimento será ator importante, em qualquer governo de transição.

Jornalistas e comentaristas de amenidades já se dedicam a avaliar as forças e os perigos desse movimento islâmico que já completou 83 anos de idade, cujos vários ramos nacionais são a oposição mais potente aos aliados dos EUA em virtualmente todos os países da Região. Há os que se preocupam com como a Fraternidade tratará Israel e os que não acreditam que tenha renunciado definitivamente à violência. Muitos – entre os quais o governo Obama – parecem pensar que seja um movimento com o qual o ocidente pode negociar, ainda que a Casa Branca negue qualquer contato formal com a Fraternidade Muçulmana.

Se os parágrafos acima despertam sensação de déjà vu, é porque, nos últimos 60 anos, assistimos ao mesmo filme várias vezes, com resultados quase idênticos. Desde os anos 1950s, os EUA vêm construindo alianças e parcerias com a Fraternidade ou com seus epígonos nos campos mais diversos, de combater o comunismo a acalmar tensões entre muçulmanos europeus. E se se examina a história, vê-se que há padrão bem claro: volta e meia, políticos dos EUA decidem que a Fraternidade Muçulmana pode ser instrumento útil e tentam curvá-la aos interesses dos EUA; e todas as vezes que o fazem – o que talvez nem seja surpresa –, a Fraternidade Muçulmana colhe mais benefícios que os EUA.

Como se explica que os EUA saibam tão pouco da própria história? Uma mistura de otimismo simplório, autoconfiança além do racional e uma obsessão nacional pelo sigilo, e eis por que é tão difícil para os norte-americanos conhecerem a longa história dos contatos entre governos dos EUA e a Fraternidade Muçulmana.

O Presidente Eisenhower, por exemplo. Em 1953, um ano antes de Nasser declarar a Fraternidade ilegal, um programa clandestino de propaganda pró-EUA, chefiado pela Agência de Informações dos EUA [orig. US Information Agency] trouxe aos EUA quase 40 intelectuais islâmicos e líderes políticos civis para o que foi divulgado oficialmente como um simpósio acadêmico na Princeton University. O verdadeiro motivo para o “simpósio” era “impregnar” os visitantes com a força espiritual e moral dos EUA – porque se acreditava que teriam meios para influenciar a opinião pública nos países muçulmanos, com mais eficácia do que as ditaduras ossificadas que lá já estavam instaladas ou estavam em processo de implantação. O objetivo final era promover uma agenda anticomunista naqueles países que começavam a tornar-se independentes, em muitos dos quais havia maioria muçulmana.

Um daqueles convidados, segundo o livro de apontamentos de Eisenhower, foi “O Honorável Saeed Ramahdan, Delegado da Fraternidade Muçulmana” [1] (cujo nome também aparece grafado, romanizado, como Said Ramadan) – genro do fundador da Fraternidade e descrito então, em todo o mundo, como “ministro de Relações Exteriores” do grupo (e é pai do controvertido especialista suíço, teórico do Islamismo, Tariq Ramadan).

Os funcionários de Eisenhower sabiam o que faziam. Na batalha contra o comunismo, entenderam que a religião seria tema e força de que os EUA poderiam servir-se – porque a URSS era ateísta e os EUA eram campeões da liberdade de culto. Nas análises da CIA, Said Ramadan aparecia descrito como “falangista”, “fascista interessado em arregimentar pessoas para o poder”. Mas a Casa Branca convidou-o, apesar do falangismo e do fascismo diagnosticados pela CIA.

Ao final daquela década, a CIA já apoiava Ramadan abertamente. Embora seja excesso de simplificação descrevê-lo como agente dos EUA nos anos 1950s e 1960s, os EUA o apoiaram na ação de invadir e ocupar uma mesquita em Munique, expulsando de lá os muçulmanos locais, para construir o que viria a ser um dos centros mais importantes da Fraternidade Muçulmana – e paraíso seguro para membros perseguidos do grupo durante as décadas de mais aguda perseguição. No final, os EUA pouco colheram dos seus esforços, porque Ramadan trabalhava mais para divulgar sua agenda islamita, do que para combater o comunismo. Anos depois, apoiou a Revolução democrática iraniana e ajudou a dar fuga a um ativista pró-Teerã que assassinara um dos diplomatas do Xá em Washington.

A cooperação teve fases de maré montante e fases de maré vazante. Durante a Guerra do Vietnã, a atenção dos EUA esteve concentrada noutra parte do mundo, mas com o início da guerra dos soviéticos no Afeganistão, ressurgiu o interesse em cultivar relações com islamitas. O período durante o qual os EUA apoiaram os mujahedeen — alguns dos quais se converteram em al-Qaeda— é bem conhecido, mas Washington continuou a flertar com islamitas, e especialmente, sempre, com a Fraternidade Muçulmana.

Imediatamente depois dos ataques de 11/9, os EUA caçaram, inicialmente, a Fraternidade Muçulmana, declarando que vários “Irmãos” seriam apoiadores de terroristas. Mas à altura do segundo mandato de Bush, os EUA já perdia duas guerras no mundo muçulmano e encarava minorias muçulmanas hostis na Alemanha, França e outros países europeus nos quais a Fraternidade estabelecera presença influente. Sem alarde, os EUA mudaram de alvo.

O governo Bush construiu estratégia para criar relações íntimas com grupos muçulmanos na Europa, que eram ideologicamente próximos da Fraternidade, supondo que a Fraternidade poderia ser útil, como interlocutor, nos contatos com grupos mais radicais como os extremistas organizados em Paris, Londres e Hamburgo. E, como nos anos 1950s, os funcionários do governo dos EUA planejaram divulgar para o mundo islâmico uma imagem de Washington como próxima de islamitas organizados no ocidente. Para isso, a partir de 2005, o Departamento de Estado disparou esforços para atrair a Fraternidade Muçulmana. Em 2006, por exemplo, organizou uma conferência em Bruxelas entre esses membros europeus da Fraternidade Muçulmana e muçulmanos norte-americanos, como a Islamic Society of North America, grupo tido como próximo da Fraternidade egípcia. Tudo isso a partir de análises da CIA, uma das quais, datada de 2006, informa que a Fraternidade manifestava “impressionante dinamismo interno, organização e talento para operar com a mídia”.

Apesar de aliados ocidentais manifestarem preocupações com os riscos de tanto apoio à Fraternidade na Europa, a CIA sempre recomendou a cooperação. Como no governo Obama, foi obra de alguns funcionários do governo Bush, que se encarregaram de construir essa estratégia.

Por que tanto interesse, por tanto tempo, na Fraternidade Muçulmana?

Desde a fundação, em 1928, pelo professor primário e imã Hassan al-Banna, a Fraternidade tem conseguido dar voz às aspirações de uma classe média quase sempre confusa e desprestigiada no mundo muçulmano. Isso explica o conservadorismo da Fraternidade, uma mistura interessante de fundamentalismo e fascismo (ou de políticas reacionárias e xenofobia): os muçulmanos de hoje jamais são considerados suficientemente muçulmanos, e devem voltar ao espírito do Corão. Os estrangeiros, especialmente os israelenses, são parte de uma vasta conspiração para oprimir os muçulmanos. Essa mensagem era – e ainda é – veiculada por estrutura eficaz, como de partido político, que inclui grupos de mulheres, clubes para jovens, publicações e veículos de mídia eletrônica e, em algumas fases, alas paramilitares.

A Fraternidade deu origem a vários dos grupos considerados mais violentos do radicalismo islâmico, do Hamás à al-Qaeda, embora para alguns desses grupos a Fraternidade já pareça tradicionalista demais. Não surpreende que a Fraternidade Muçulmana, apesar de seus aspectos confusos ou mal conhecidos, seja sempre tema que interessa a estrategistas ocidentais em busca de conquistar influência naquela parte estratégica do mundo.

Mas a Fraternidade Muçulmana sempre foi parceiro cheio de segredos e truques. Nos países nos quais os Irmãos aspiram a algum espaço na política governante, renunciam localmente ao uso da violência. Por isso a Fraternidade Muçulmana no Egito diz que não recorrerá a vias violentas para derrubar o governo Mubarak — embora vários Irmãos não se impeçam de pregar a destruição de Israel.

No Egito, a Fraternidade também diz que é a favor da criação de cortes religiosas para implantar a Shariah, tanto quanto, outras vezes, acrescenta que haveria tribunais seculares, aos quais teriam a última palavra. Não se trata de sugerir que a moderação é para efeito de propaganda, mas ajuda a lembrar que a Fraternidade só abraçou parcialmente os valores da democracia e do pluralismo.

O clérigo mais poderoso da Fraternidade Muçulmana, Youssef Qaradawi, que vive no Qatar, é exemplo dessa visão de mundo bifurcada. Diz que as mulheres devem poder trabalhar e que, em alguns países, os muçulmanos podem contratar hipotecas (transação que se baseia em juros, tabu para os fundamentalistas). Mas Qaradawi advoga o apedrejamento de homossexuais e o assassinato de crianças israelenses – que serão obrigatoriamente soldados ao alcançar a maioridade.

Qaradawi não é de modo algum marginal, na Fraternidade. No passado, foi várias vezes mencionado como candidato a líder principal do ramo egípcio. É provavelmente o nome da Fraternidade mais influente no mundo muçulmano – na 6ª-feira, por exemplo, milhares de manifestantes egípcios assistiram na praça Tahrir a um de seus sermões. Foi quem declarou mártires os manifestantes que morreram por desafiarem o governo Mubarak.

É indicação de que a influência da Fraternidade está crescendo na onda de manifestações por toda a Região. No Egito, a Fraternidade começou devagar, mas tornou-se ator chave na coalizão de oposição ao governo; na 5ª-feira, o novo vice-presidente Omar Suleiman convidou a Fraternidade para conversações. Na Jordânia, onde o grupo é legal, o rei Abdullah reuniu-se com “os Irmãos” pela primeira vez em dez anos. E em Túnis, o líder da oposição islamita Rachid Ghanouchi, um dos pilares da rede da Fraternidade em toda a Europa, voltou recentemente do exílio em Londres, para a Tunísia.

Tudo isso aponta para a principal diferença entre antes e agora. Há meio século, o ocidente optou por servir-se da Fraternidade com vistas a algum ganho tático de curto prazo, e mais tarde apoiou muitos dos governos autoritários que tentavam varrer o grupo para sempre. Agora, com esses governos por um fio, o ocidente ficou praticamente sem escolha; depois de décadas de opressão, é a Fraternidade Muçulmana, com sua estranha combinação de fundamentalismo antiquado e métodos modernos de fazer política social que aí está, sobrevivente, no centro da disputa.

NOTA[1] O livro de apontamentos, com detalhes da visita de Ramadan, está nos arquivos presidenciais de Eisenhower em Abilene, Kansas. Sobre isso, ver meu livro A Mosque in Munich, pp. 116-119. Sobre a Fraternidade pós 9/11, ver pp. 222-228.
.

Sem comentários: