segunda-feira, 14 de março de 2011

OS DITADORES

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Gabriel Garcia Marquez e o Outono do Patriarca

LEANDRO KONDER – CORREIO DO BRASIL, opinião - do Rio de Janeiro

É conhecida a história da chamada colonização. Nos Estados Unidos, ela foi feita por ingleses protestantes que planejavam enriquecer. Na América do Sul, especialmente no Brasil, proliferaram aventureiros portugueses e espanhóis, em busca de ouro, com o objetivo de enriquecer e retornar à Europa o mais rapidamente possível.

O filósofo alemão Hegel previu que um contraste entre as duas Américas resultaria, inevitavelmente, numa guerra entre ambas. Mesmo sem a guerra (o filósofo se enganou), os Estados Unidos assumiram agressões militares a seus vizinhos do sul. Ao longo de décadas e de séculos, os estadunidenses impuseram seus critérios aos sul-americanos. E a imposição se deu por meio de setores das classes dominantes, que se reuniram organizadamente para exercer o poder de cima para baixo: os ditadores “modernos”.

No mesmo período Garcia Marques publicou o Outono do Patriarca; Augusto Roas Bastos publicou Eu, o Supremo; e Alejo Carpentier publicou O recurso do método. Todos por volta de 1975. Esses ditadores criados pelos três escritores nos ajudavam a compreender porque os personagens dos romancistas eram tão abomináveis. E mentiam e matavam sem qualquer escrúpulo. Mas não eram burros. Não lhes faltava cultura. O leitor, ao lê-los, podia ter dúvida quanto à competência dessa galeria dos ditadores.

O ditador paraguaio de Roas Bastos ameaçava punir severamente seu chefe de polícia se não identificasse e prendesse imediatamente quem, de madrugada, havia afixado no portão da catedral um manifesto contra o governo (isto é, ele mesmo).

O patriarca de Garcia Marques zela pelo cumprimento de suas ordens: para liquidar um bando de crianças que sabiam como o governo roubava na Loteria, mandou colocá-las em um navio e fazê-lo explodir e afundar. O coronel incumbido de matar as crianças cumpre a ordem recebida, mas também se mata, fazendo explodir uma banana de dinamite enfiada em seu próprio corpo.

O ditador justificou o castigo dizendo: “Há ordens que não podem ser acatadas. No entanto, também não podem deixar de ser cumpridas”.

O ditador, que é o principal personagem de O recurso do método, criado por Alejo Carpentier, lê muito. Não tem nenhuma vergonha de repetir ideias liberais e mesmo pensamentos libertários. Confessa-se admirador de um dos seus assessores, que era considerado de “esquerda”. Citava sempre Bakunin, Kropotkin e Proudhon.

Em seu cinismo drástico e em sua brutalidade assumida, os ditadores dos três escritores lembrados (há outros) rivalizavam com o estilo doentio que os tiranos mostravam no início do século XX, na vida real. Nas atuais condições, a classe dominante cobra de seus líderes políticos que eles sejam pragmáticos e não se exponham com demasiada facilidade, ao ódio popular ou ao sarcasmo da classe média.

Mudou a situação histórico-política. Isso não significa que as velhas formas de autoritarismo, prepotência, crueldade e intimidação não existem mais. Ao contrário, elas ainda são fortíssimas. Os hábitos que pautam a vida cultural, as fantasias e os critérios usuais das pessoas, os sentimentos formados diante da televisão, os compromissos com a preservação dos princípios democráticos (mesmo quando são proclamados hipocritamente), tudo isso contribui para que a burguesia fale de valores a serem preservados e reivindique para ela certa respeitabilidade não merecida.

A ficção não se limita a refletir a realidade: ela a recria. Os ditadores na literatura chegam a ser tão monstruosos como os da vida real. Um pouco da Colômbia, bem como um pouco de Cuba e do Paraguai, só passaram a existir depois que os escritores, sobre os quais acabamos de falar, escreveram seus romances brilhantes e expuseram seus criminosos ditadores.

*Leandro Konder é filósofo, escritor e colunista semanal do hebdomadário socialista Brasil de Fato.

**Publicado originalmente na edição 416 do Brasil de Fato.
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