terça-feira, 8 de março de 2011

Protesto pouco participado pode criar nova dinâmica em Angola

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O apelo saltou da Internet e chegou aos bairros - MIGUEL MADEIRA

JOÃO MANUEL ROCHA – PÚBLICO – 08 março 2011

Apelo a manifestação contra regime teve fraca adesão. Mas pode ter criado clima desfavorável ao Governo. "Nos últimos dias dominava as conversas"

Um protesto contra o regime angolano e o Presidente José Eduardo dos Santos, convocado anonimamente pela Internet para a madrugada de ontem em Luanda, teve pouca adesão e levou à detenção temporária de 17 pessoas, entre as quais três jornalistas e o seu motorista. Ainda que tenha tido uma expressão pública diminuta, pode ter criado uma nova dinâmica e aberto uma "caixa de Pandora", como disse um dos angolanos ouvidos pelo PÚBLICO.

As cerca de uma dúzia de pessoas que, na noite de domingo para segunda-feira, se concentraram na Praça 1.º de Maio, essencialmente poetas e músicos, disseram a um primeiro polícia que as abordou que estavam a organizar uma actividade cultural, contou um dos detidos, o repórter luso-angolano Pedro Cardoso, do semanário Novo Jornal.

O grupo incluía o rapper Brigadeiro Mata Frakux, que tinha apelado à adesão ao protesto, e - segundo o site Clube-K - os músicos e activistas Janguinda, Firmino Costa, Tony K, Mona Dya Kidi, Dalio Kandé, Ronalda e Cláudia. Era cerca de meia-noite e meia. Não desmobilizaram. Uns cinco minutos depois, foram rodeados por dezenas de elementos da Polícia de Intervenção e da Polícia Militar, que os identificaram e lhes revistaram mochilas, onde encontraram folhetos sobre protestos pacíficos.

Os jornalistas explicaram que se encontravam a trabalhar, mas os polícias retorquiram-lhes que estavam "em conluio com os manifestantes" e foram igualmente levados para o Comando Provincial de Luanda, onde foram interrogados. A jornalista Ana Margoso, também detida, contou à Lusa que lhe foi perguntado várias vezes: "Por que é que está revoltada com o sistema?". Todos acabaram por ser libertados, ontem de manhã.

A convocatória, influenciada pela contestação no Norte de África, corria há cerca de três semanas na Internet. "Em toda Angola, vamos marchar com cartazes exigindo a saída do Ze Du, seus ministros e companheiros corruptos", referia o apelo, assinado por Agostinho Jonas Roberto dos Santos, designação que junta nomes dos líderes dos três movimentos independentistas angolanos ao do actual Presidente. A generalidade da oposição formal, designadamente a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), que durante décadas combateu o partido do poder, demarcou-se da acção.

Apesar do carácter pouco consistente da iniciativa, o regime reagiu com nervosismo. Alguns dirigentes fizeram declarações intimidatórias e no sábado o MPLA (Movimento para a Libertação de Angola), que governa Angola desde a independência, em 1975, organizou acções de apoio ao Governo, incluindo uma marcha que reuniu milhares em Luanda.

À margem dos partidos

Ainda que não tivesse tido adesão significativa, o apelo ao protesto contra Eduardo dos Santos "nos últimos dias dominava as conversas todas, passou da Internet, chegou aos bairros penetrou na sociedade angolana, é um movimento novo", disse ontem Pedro Cardoso. "Mais do que a manifestação em si, deu a perceber às pessoas que podem reivindicar, que há espaço para isso."

O escritor angolano José Eduardo Agualusa considera que "se criou uma dinâmica que pode ou não crescer e que em grande medida se criou por má gestão do regime, que não soube gerir de forma correcta e cabeça fria" e tornou uma apelo anónimo "num facto político". Agualusa sublinha que a iniciativa decorreu "à margem de qualquer partido" e considera que o poder de Luanda "devia ter reconhecido o direito à manifestação e ter protegido os manifestantes", mas "reagiu como reagem os regimes totalitários". O escritor dirigiu há dias, juntamente com o professor universitário e activista cívico Fernando Macedo, uma carta aberta a Eduardo dos Santos em que pedem ao líder angolano que "reinicie de forma séria o processo de democratização e "se retire da Presidência da República e do MPLA o mais depressa possível".

Para o jornalista e activista anticorrupção Rafael Marques, que desde o início duvidou da consistência da iniciativa, o apelo ao protesto tratou-se de "um golpe de publicidade que quase descambou em problemas maiores porque o MPLA reagiu de forma incompreensível". O partido governamental pode mesmo "ter aberto a caixa de Pandora, porque agora todo o mundo fala em manifestações. Criou-se um clima de discussão que em princípio não será favorável ao regime", disse.
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