Alain Gresh; 1 de Março de 2011
Foi no dia 14 de Fevereiro que decorreu no Bahrein a primeira manifestação contra a dinastia reinante e que tombou a primeira vítima; no dia seguinte, durante o seu funeral, um outro jovem foi morto. Num gesto espectacular, o rei apresentou então as suas desculpas pelos mortos e os opositores ocuparam pacificamente a praça Pérola. Na manhã de 17 de Fevereiro, o exército atacou, matando cinco pessoas, algumas das quais foram assassinadas enquanto dormiam, debaixo da tenda. No dia seguinte, o exército retirou-se, uma vez mais, das ruas e, desde então, instaurou-se uma paz precária, apesar de as manifestações continuarem sem interrupções. A história singular deste arquipélago de algumas dezenas de ilhas situado no Golfo Pérsico, a sua proximidade com a Arábia Saudita e a presença do quartel-general da 5.ª Esquadra norte-americana explicam tanto a forte politização da população como os vaivéns da monarquia e as incertezas que se mantêm.
Este país, cuja população é maioritariamente xiita — ao contrário da família reinante (Al-Khalifa), que é sunita — foi marcado pelos dois séculos de dominação persa que antecederam a colonização britânica. Teerão quis, aliás, anexar o Bahrein quando Londres renunciou, em 1968, ao seu protectorado. No entanto, a consulta organizada em 1970, sob o controlo da Organização das Nações Unidas (ONU), resultou na independência do país, proclamada em Agosto de 1971. A vida no Bahrein foi marcada por uma agitação política crónica e pela presença de forças de oposição, de esquerda radical e islamita influentes. A dissolução, em 1975, da assembleia eleita dois anos antes – então sinal de uma democratização balbuciante – e a descoberta de uma “conspiração iraniana” em 1981, seguida de uma tentativa de golpe de Estado em 1985, reforçaram o carácter repressivo do regime.
Mas a oposição, cada vez mais dominada pelos islamitas xiitas (após a revolução iraniana de 1979), não desarmou, encorajada pelas dificuldades económicas, nomeadamente o desemprego, muito elevado entre os xiitas, e pelas discriminações. Com efeito, a oposição reclamou o regresso à Constituição de 1973, tendo milhares de cidadãos assinado, em Outubro de 1994, uma petição nesse sentido. No mês seguinte rebentou uma verdadeira intifada, que se prolongará durante vários anos. Durante a revolta, dezenas de pessoas foram mortas, centenas foram presas; a tortura tornou-se uma prática comum.
Em 1999, a chegada ao poder do novo emir, o xeque Hamad Bin Isa Al-Khalifa, que sucede ao pai por sua morte, permite uma certa abertura democrática: os opositores são libertados, os exilados regressam ao emirado, a igualdade entre os cidadãos é reconhecida, as leis de excepção são abolidas e a liberdade de expressão é restaurada. Uma nova Carta nacional, aprovada em referendo em Fevereiro de 2001, confirma a reconciliação nacional, mas esta não perdurará.
Em Fevereiro de 2002, o emir proclama-se rei. Promulga, sem consulta, uma Constituição que institui uma Assembleia Nacional bicameral, para a qual quarenta membros são realmente eleitos, enquanto quarenta outros são designados pelo rei. Esse “golpe de Estado constitucional” é acompanhado por uma série de decretos reais que limitam o jogo político. Os principais movimentos da oposição (o Al-Wefaq e o Al-Waad, de esquerda) boicotam as eleições legislativas de Outubro de 2002 nas quais as mulheres são, pela primeira vez, autorizadas a votar. Acaba por ser encontrado um compromisso e a oposição aceita participar no escrutínio de 2 de Dezembro de 2006.
No mesmo momento rebenta um escândalo [1]: documentos divulgados por um funcionário público britânico de origem sudanesa revelam que o governo está a conceder a nacionalidade a cidadãos paquistaneses ou árabes desde que sejam sunitas e que, por outro lado, está a financiar directamente jornalistas e candidatos que lhe são favoráveis. Os resultados do escrutínio de 2006 confirmaram a influência do partido islamita xiita Al-Wefaq, que consegue 17 lugares em 40. Mas a coexistência revela-se difícil e o governo não tem em conta as reivindicações da oposição. O protesto regressa às ruas em 2010 e as eleições, apesar de terem tido lugar no mês de Novembro com a participação do Al-Wefaq (18 lugares), foram boicotadas por um movimento mais radical relativamente ao poder, o Al-Haq, e pelas organizações de defesa dos direitos humanos que procuram ultrapassar a clivagem entre sunitas e xiitas [2]. O descontentamento aumentou, provocando as manifestações de 14 de Fevereiro, a repressão e, a seguir, o frente-a-frente que se prolonga até hoje.
Os protagonistas são, antes de mais, as organizações nacionais. Face à mobilização, vista por uma parte da população como xiita ou até manipulada pelo Irão, as forças favoráveis à monarquia manifestaram-se em massa, reunindo dezenas de milhares de partidários, na maioria dos casos assente numa base confessional. Contudo, é de salientar que nas últimas eleições se assistiu a um recuo dos islamitas sunitas, nomeadamente dos Irmãos Muçulmanos.
O Al-Wefaq uniu-se ao movimento de protesto e os seus deputados decidiram abandonar a Assembleia Nacional. As primeiras vitórias foram a libertação pelas autoridades de todos os prisioneiros políticos e a concessão de amnistia a Hassan Mushaimaa, um dirigente do movimento Al-Haq que pôde voltar do exílio [3]. Mas essas vitórias puseram também à vista as divergências entre os que reclamam a abolição pura e simples da monarquia e os que defendem uma monarquia constitucional, temendo estes últimos que reivindicações mais radicais levem a um confronto entre sunitas e xiitas.
Quanto à família real, parece estar dividida e dificilmente poderá aceitar a própria ideia de uma monarquia constitucional. Após ter tentado comprar a população, oferecendo o equivalente de 2650 dólares a cada família, e ter tentado a repressão, as suas opções são agora limitadas. O rei e o príncipe herdeiro são favoráveis ao diálogo com as oposições, enquanto o primeiro-ministro, que ocupa o cargo há mais de quarenta anos, defende uma linha mais dura [4].
Os acontecimentos não podem deixar indiferente a Arábia Saudita, que sempre considerou a estabilidade do Bahrein como sendo parte da sua segurança nacional. Tanto mais quanto este pequeno reinado confina com a sua província oriental, maioritariamente xiita e onde estão concentradas as riquezas petrolíferas. Os Saud poderão intervir directamente, caso seja necessário, utilizando a ponte de 20 quilómetros de comprimento que une a ilha ao reino. Aliás, quando a ponte foi inaugurada, em 1986, todos os observadores destacaram a sua dimensão militar.
Para juntar às contradições, o Bahrein acolhe o quartel-general da 5.º esquadra americana, tendo Washington decidido lá investir quinhentos milhões de dólares — daí as declarações confusas da Casa Branca face à repressão. A 25 de Fevereiro, o chefe de estado-maior americano, o almirante Mike Mullen, declarou em visita ao Bahrein que o país era um aliado crucial (critical long-time ally). E o presidente Barack Obama usou toda a sua influência para apoiar o desejo do rei de iniciar reformas.
É de realçar a cobertura bastante “matizada” das manifestações pela Al-Jazira, que teve um papel decisivo na repercussão das revoltas egípcia e tunisina e que transmite os acontecimentos da Líbia sem esconder o seu apoio à oposição ao coronel Kadhafi: o emir do Qatar, patrocinador do canal, não quer irritar os seus vizinhos sauditas, com quem acabou de se reconciliar.
Retirado de Le Monde diplomatique – edição portuguesa.
[1] Alain Gresh, “Bandargate” et tensions confessionnelles, Le Monde diplomatique: Nouvelles d’Orient, 19 de Outubro de 2006. [2] Cortni Kerr e Toby C. Jones, A Revolution Paused in Bahrain, Middle East Report on line — Merip, 23 de Fevereiro. [3] Bahrain Unrest: Shia Dissident Hassan Mushaima Returns, BBC News, 26 de Fevereiro. [4] Olivier Da Lage, Bahreïn: dissensions chez les Al Khalifa?, 20 de Fevereiro de 2011.
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