domingo, 3 de abril de 2011

NOVE ANOS DEPOIS

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MARTINHO JÚNIOR

Comemora-se em Angola os nove anos em que finalmente o país chegou ao calar das armas e iniciou pela primeira vez depois da independência uma era que pode conduzir à melhoria substantiva do bem estar de todo o povo angolano.

Começo por lembrar, com a sensibilidade dum antigo combatente, os resgates maiores que foram alcançados até agora com o movimento de libertação na África Austral, 50 anos depois do início da luta armada em Angola:

1º - A independência nacional a 11 de Novembro de 1975 e, pela primeira vez, terem os angolanos possibilidades que nunca antes beneficiaram de se tornarem os autores maiores de sua própria história e de sua própria vivência em sociedade em busca de identidade nacional, dignidade, desenvolvimento sustentável, paz, democracia e justiça social.

2º - O fim do “apartheid” a 10 de Maio de 1994 (data em que, em resultado de eleições 1 homem, 1 voto, o Presidente Nelson Mandela tomou posse na África do Sul), que conduziu às possibilidades de se inaugurar efectivamente uma época de paz, de democracia multipartidária, de reconciliação e reconstrução nacional, factores que se repercutiram em toda a África Austral.

Em qualquer desses acontecimentos, nunca Angola foi alvo da atenção internacional no sentido de serem ressarcidas dívidas históricas para com o seu povo:

- A primeira por parte de Portugal, em função das responsabilidades em termos de escravatura, ocupação, fascismo e colonialismo.

- A segunda por parte da África do Sul, cujo regime fascista de “apartheid” foi o responsável maior por uma guerra de agressão de grandes proporções, uma guerra de riscos acrescidos se tivermos em conta que o regime sul africano detinha capacidade militar nuclear, bem como de algumas das sequelas que em Angola se estenderam até o 4 de Abril de 2002.

A expectativa em relação ao pagamento dessa dívida praticamente nunca se pôs, por que ela é de tal ordem, envolve questões de natureza tão complicada, que será impossível alguma vez Portugal ou a África do Sul pagarem…

No primeiro caso a dívida teria de ser levada em consideração em relação à esmagadora maioria dos países componentes da costa ocidental africana e praticamente a toda a América Latina, se tivermos em conta o que diz respeito a escravatura e a ocupação.

No segundo caso, seria mais exequível o pagamento da dívida, mas o carácter dos governos sul africanos de Nelson Mandela e Thabo M’Beki esteve longe de vir a corresponder a iniciativas de aproximação, pelo menos ao nível do que foi feito recentemente por Jacob Zuma junto ao marco da batalha de Cuito Cuanavale, pelo que qualquer veleidade no sentido de pagar qualquer espécie de compensação a Angola nem sequer foi alguma vez levantada “a sério”.

A ausência de tiros em Angola haveria de ter de esperar todavia até 2002, por imperativos de interesses internacionais característicos do final da chamada Guerra Fria conjugados a uma contínua e desgastante rebelião chefiada por Savimbi, uma rebelião que se entrosou com os conflitos em cadeia que eclodiram por uma vasta região da África Central e Grandes Lagos, que conduziu o país a traumas e destruições de tal ordem que só com muitos anos se pode evocar uma recuperação sofrível do seu povo e das suas infra-estruturas, estruturas, bens e equipamentos.

A chamada “comunidade internacional”, ou seja os estados capitalistas com interesses históricos na região, jamais consideraram ressarcir Angola também das dívidas duma ingerência tão destruidora como a última que foi levada a cabo até 2002, (a Iª guerra mundial africana, para Angola a guerra dos diamantes de sangue), malgrado uma progressiva viragem de opinião e opções em relação aos “assuntos angolanos”.

Aos apelos de Angola para darem sua contribuição para a reconstrução nacional (até o “plano Marshall” foi evocado à memória), nada de concreto se desencadeou e, por isso o estado angolano sustentou e sustenta o recurso à China, que tem vindo a desenvolver laços económicos duma forma sem precedentes, dando uma substancial contribuição para o crescimento do país em termos de infra estruturas, estruturas e tecnologias.

Com esse âmbito, pouco a pouco vai ganhando consistência a ideia da premente necessidade do aumento das relações Sul – Sul para melhor enquadrar Angola e para que os angolanos melhor se relacionem a nível internacional.

Se não valorizaram a ajuda a Angola, os países ocidentais reagiram de forma inequívoca a favor da adopção da lógica capitalista de sua conveniência e sobretudo a favor de políticas neo liberais, por que é através delas que melhor podem os ocidentais implementar as “engenharias sociais” adequadas aos seus interesses e as manipulações a que recorrem.

Tirando partido dos sectores do petróleo e dos diamantes, as instituições foram-se modelando à feição de medidas neo liberais, que com o recurso a parcerias foram injectando em Angola capacidades e acções que muito contribuíram para a construção das elites correntes e também para o seu distanciamento em relação às outras classes sociais.

A sociedade angolana que viveu a sucessão de conflitos e de guerras (umas justas, a última injusta, escusada), aos traumas advenientes do passado, está condenada a juntar pois, apesar do crescimento bem visível, os traumas que resultam do fosso das desigualdades, com todas as tensões adicionais que isso implica na sociedade contemporânea.

O que seria de esperar do estado angolano, uma vez que do ocidente ninguém quis ajudar Angola na reconstrução nacional, perante as circunstâncias internacionais, seria um muito maior cuidado em relação primeiro ao estabelecimento da lógica capitalista que abraçou a partir de 1985, quando começou por tocar profundamente no carácter de sua própria segurança, segundo à adopção das políticas e incentivos neo liberais que, particularmente após 1992, conduziram a uma abertura de portas de tal ordem que resultam hoje numa profusão de riscos da mais diversa natureza e duma forma sem precedentes.

A economia angolana após as situações sucessivas de guerra, está praticamente assente no sector do petróleo e dos minerais e essa fragilidade, ao ser induzida à lógica capitalista neo liberal, ficou intimamente associada à gestação de novas elites que se foram coligando a interesses internacionais alguns dos quais com um lastimoso passado em relação à história recente de Angola, novas elites que muito contribuíram para o fosso de desigualdades que se incrementou com o crescimento económico.

Ao contrário do que esperavam aqueles que não tiveram outra alternativa senão de armas na mão se empenharam para resgatar o povo angolano do fascismo, do colonialismo e da agressão do “apartheid”, ao invés de se optar pelo início dum desenvolvimento sustentável voltado para a prioridade humana em sequência do próprio movimento de libertação, o que eu considero o sentido da vida, optou-se por um crescimento “macro económico” que se tem vindo a tornar num autêntico esteio para o aumento do fosso das desigualdades, promotor de riscos e manipulações acrescidos que podem colocar em causa a frágil plataforma de paz, melhor, de ausência de tiros, que se conseguiu em 2002.

As opções seguindo a lógica capitalista e os “conteúdos” do “mercado” neo liberal sustentam o momento e, com a abertura de portas pouco cuidada do país, as contradições sociais têm vindo a ser incrementadas, tornando-se o ambiente sócio-político aferido a manipulações de ordem crescente, uma parte delas procuração de autênticas ingerências.

Em Angola não há partido algum, nem tendência alguma com expressão política clara, nem organizações sociais fortes, que estejam dispostos às alternativas em relação à lógica capitalista e ao neo liberalismo, o que quer dizer que duma forma ou de outras todos, oposições incluídas, estão de acordo com essa lógica; só aqueles que são fieis à origem do movimento de libertação, tendo em conta os seus objectivos maiores, parecem perseguir opções com sentido de vida e, com elas estão dispostos ao aprofundamento das culturas de paz, desenvolvimento sustentável e democracia.

Alguns desses, por defenderem essa linha de há muito têm vindo a experimentar injustiças e até situações gravosas que, se implicaram uma relativa marginalização em relação a muitas instituições angolanas, têm resultado no facto de se terem vindo a tornar publicamente esquecidos pelas novas gerações, conforme se pode constatar nos termos actuais de suas próprias manifestações.

Por muito ignorados que eles sejam, a história os absolverá, por que se foram sempre lembrando no decurso de suas efémeras vidas, que o grande objectivo nacional é a libertação de todo o povo angolano, não os privilégios de alguns, nem tampouco a abertura de espaços para as ingerências.

Lutaram contra fascismo, colonialismo e “apartheid” e estão a dar a sua modesta contribuição para que Angola não seja pasto de neo colonialismo, nem do império.

As novas gerações, em resultado do pouco estudo da história contemporânea do seu país, deveriam já ter percebido que há muitos angolanos antigos combatentes, que respeitarem o movimento de libertação, respeitaram o sentido de vida que lhes foi transmitido de forma solidária a partir do próprio processo de luta e não caucionam nem a lógica capitalista, muito menos a injecção neo liberal em Angola.

Eles sabem que, se tendo sido dada a oportunidade ao ocidente de ajudar Angola na sua reconstrução nacional, tendo sido pelo ocidente essa oportunidade votada ao ostracismo, o ocidente não deveria ter o recurso a ética, nem a moral, para dinamizar o que quer que seja em direcção a Angola, muito menos a injectar políticas neo liberais para construir elites de sua feição, especular em relação às riquezas do país e promover mal paradas manipulações.

Para esses, como é óbvio, há que não perder a oportunidade que se oferece pela ausência de tiros e tudo farão para evitar o aumento de tensões e riscos de conflito, mas a encruzilhada em que se encontra Angola, se lhes dá a vantagem de melhor se aperceberem dos fenómenos correntes, dá-lhes também a fraqueza de suas opções não terem sido entendidas, muito menos aplicadas de forma coerente em estreita consonância com as mais legítimas aspirações do povo angolano, conforme a projecção realizada nas primeiras décadas da actuação do movimento de libertação e na primeira década do estado angolano.

Sob o ponto de vista ético e moral, eles têm a profunda convicção que é insustentável o aumento do fosso das desigualdades cada vez mais sentido em Angola, pelo cortejo imenso de contradições e manipulações que acarreta, sabem que esse fosso das desigualdades tem origem nas opções de lógica e de abertura (particularmente a abertura ao ocidente) nos termos das características actuais da economia angolana e têm a seu favor o facto de terem sido dos primeiros a alertarem poder e sociedade para os riscos, durante a década de 80!

Essa corrente de ideias e convicções não se identifica com corrupção, nem com oportunismo e, se não tem maior expressão pública, inclusive nos termos de seu comportamento cívico exemplar, é preciso não esquecer que em função de sua força histórica ela subsiste nos subterrâneos da pátria angolana para além da temporalidade das gerações.

As novas gerações não têm muitos desses patriotas como referência, nem tampouco estão devidamente atentas aos riscos do neo liberalismo que, se promovem elites, fazem também em relação aos jovens a mobilização através de slogans e mensagens de conveniência, esquecendo a história e estabelecendo um corte em relação ao passado, quando esse passado é muito mais rico do que possam eles supor.

Aos desequilíbrios parece-me ser proibitivo adicionar mais desequilíbrios.

A saída para um outro diálogo em Angola, um diálogo cívico e pedagógico abrangente e amplo que reforce os parâmetros da paz, que contribua para se ultrapassar os traumas, um outro diálogo que impeça a contradição entre gerações e, ao respeitar o passado, saiba promover o homem no presente e para o futuro, está em aberto, restando saber até que ponto os angolanos, todos os angolanos, estão despertos para responder aos desafios, sem mais ingerências, por mais veladas que elas sejam, sem mais ingerências do que aquelas que já ocorreram particularmente da década de 90 até aos nossos dias!

Martinho Júnior - 3 de Abril de 2011

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