sábado, 2 de abril de 2011

VENCER OS TRAUMAS

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MARTINHO JÚNIOR

Se há nação no mundo que, apesar da riqueza histórica e humana de sua revolução, viveu ao longo de mais de 200 anos situações gravosas que levaram à projecção de traumas de natureza mais diversa, traumas acumulados geração atrás de geração, essa nação é o Haiti.

Por isso mesmo a “comunidade internacional”, tão deliberadamente pródiga em semear tensões, conflitos e guerras, ao invés do que pratica de forma ostensiva e avassaladora, deveria estar vocacionada a contribuir para resgatar a nação haitiana (e todas as nações subdesenvolvidas do planeta), das sequelas acumuladas ao longo de todo o seu turbulento processo histórico de 500 anos, no caso do Haiti uma situação agravada pelos desastres a que ultimamente tem sido sujeita sua sociedade (um terramoto devastador, seguido duma epidemia de cólera cujo fim parece estar finalmente próximo, após meses de intenso labor).

Seria de supor que nas presentes condições psicológicas as tensões eclodissem uma vez mais com intensidade em época de eleições, até por que as experiências anteriores relativas ao exercício da Presidência por parte de Jean-Bertrand Aristide, foram defraudadas na sua legitimidade democrática e as experiências no 1º turno das actuais eleições, registaram exemplos negativos que colocaram interrogações sobre como evoluiria o comportamento das pessoas no 2º turno que agora se realizou.

Parece ter havido um esforço conjugado das instituições nacionais, não só aquelas directamente envolvidas, como das instituições internacionais com intervenção na vida do país, entre elas as instituições da ONU cuja composição humana abarca um bastante expressivo e diversificado contingente brasileiro.

Imediatamente antes do 2º turno foi-se gerando um ambiente político propício ao acontecimento, recebendo o Haiti em Janeiro o ex ditador Jean-Claude Duvalier, que se manifestou disposto a regressar a fim de dar a sua contribuição à reconstrução nacional, assim como o “controverso” padre salesiano exilado Jean-Bertrand Aristide, que por duas vezes havia sido conduzido à Presidência e há 7 anos vivia exilado na África do Sul.

Apesar do pessimismo de alguns sectores nacionais e internacionais em relação a esses regressos emblemáticos, eles, os termos de aceitação de integração e compromisso dessas entidades, assim como a divulgação da sua chegada, acabaram por contribuir para que o ambiente se tornasse suficientemente estável para a realização do 2º turno, que beneficiou também dum grau de organização mais adequado.

O primeiro pessimismo referiu-se ao regresso do ex ditador, que poucas ou nenhumas simpatias populares tem no Haiti, diga-se de passagem, mas que ainda possui envolvências importantes em alguns sectores das elites nacionais e apoios no exterior.

É evidente que ele seguirá a trilha do crescimento em função das correntes neo liberais, aquelas mesmas correntes que impulsionam deliberadamente o fosso das desigualdades e os traumas característicos do capitalismo especulativo de nossos dias.

O segundo pessimismo, levantado pelos Estados Unidos e França em relação a Jean-Bertrand Aristide, foi formulado, em desespero de causa, na base de haver indício de tráfico de drogas em relação a apoiantes seus…

Forçado ao exílio quando ocupava o cargo de Presidente para o qual tinha sido eleito, Jean-Bertrand Aristide teve de esperar sete anos para voltar e para isso teve de haver um terrível terramoto, uma epidemia de cólera que ameaçava passar fronteiras espalhando-se pelos arquipélagos e nações vizinhas e eleições em relação às quais não se pôde candidatar, nem o partido que o apoia, o Fanmi Lavalas, que possui uma base de mobilização popular historicamente forte, no campo e na massa de deserdados das comunidades urbanas.

Jean-Bertrand Aristide voltou finalmente privilegiando uma trilha eminentemente cívica e prometendo, ao não se candidatar, nem ao seu partido, envolver-se no reforço de programas de educação, procurando evitar os desgastes originados em interesses que têm optado por provocar seus amplos apoios populares, para depois atribuir a culpa a esses apoios pela “desestabilização”…

Na profundidade da sociedade porém, as respostas relativas à questão de se a complexa sociedade haitiana se vai tornar definitivamente mais estável ou não ainda não poderão ser dadas de forma optimista, pois o jogo de tendências entre as várias opções está presente e possui raízes sociais importantes, interligando-se com as opções que chegam do exterior, entre elas as opções do império.

Mesmo com o impacto de fortes políticas de reconstrução nacional que conduzam ao crescimento, efectivamente o capitalismo contemporâneo dominado pelo neo liberalismo (com reflexos sobretudo nas elites nacionais e nos relacionamentos com as outras classes a nível interno) e o ambiente que se vive a nível internacional (particularmente o papel de intervenção sistemática a que se reservam os Estados Unidos e seus aliados em substância da hegemonia), são obstáculos não descuráveis que se colocam ao objectivo de recuperar o Haiti dos traumas acumulados e que atingem com tanto impacto a vida humana e o ambiente natural do país.

O fosso das desigualdades que as sociedades do Terceiro Mundo se tornaram expoente maior, uma vez que as elites nacionais são minorias e a pobreza está disseminada, é o cadinho que torna possível ingerências com condimentos locais, mas estritamente vinculadas aos interesses que surgem do exterior, através das escancaradas portas abertas pelas correntes neo liberais.

A “bomba de controlo remoto” em que se estão a tornar as “engenharias sociais” nas nações subdesenvolvidas, “engenharias sociais” que dão corpo a políticas de ingerência onde proliferam mecanismos e instrumentos das potências (o Haiti é disso também outra amostra histórica), é por si uma ameaça à estabilidade, um impedimento que se relaciona com todos os aspectos inerentes ao crónico subdesenvolvimento que é imposto.

A contribuição cubana para que as dores do Haiti sejam ao menos diminuídas tem sido relevante de há 12 anos a esta parte e são inspiradoras de intercomunicabilidade com iniciativas do povo do Haiti (continua a crescer o número de médicos haitianos formados em Cuba com actuação crescente a nível nacional) e de outros povos (é o caso dos relacionamentos em curso com o Brasil e sua presença no Haiti).

Creio que esse inter relacionamento está em parte na origem do relativo sucesso alcançado imediatamente antes, durante e depois do 2º turno das eleições no Haiti, até por que a organização melhorou muitos dos aspectos que antes ou foram descorados, ou nem sequer tinham sido considerados.

Esse sucesso aponta para que a presença de Jean-Bertrand Aristide possa derivar para se alcançar uma mobilização cívica incontornável, em particular se essa mobilização conseguir manter-se imune às provocações: recuperar de traumas só será possível com um forte impacto de medidas na educação e na saúde e, nesse aspecto, não haverá candidato algum às eleições no Haiti que não tenha de levar esse esforço em conta, colocando efectivamente o homem como prioridade.

Fazer crescer não é desenvolver de forma sustentável e só há sustentabilidade nas políticas de reconstrução nacional onde quer que elas sejam praticadas, se o homem se tornar na prioridade cívica e cidadã, no âmbito duma democracia plena que não se esgote em agenciadas representatividades.

Isso é válido para o Haiti, como para todas as nações e povos da Terra, a começar pelos Estados Unidos e Europa, uma Europa que vai evidenciando cada vez mais exemplos do caminho que os povos devem saber evitar.

Vencer os traumas é também vencer de forma inteligente, mobilizada e exemplarmente responsável as opções do império!

Martinho Júnior - 2 de Abril de 2011.

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