Osvaldo Martinez* - 24.Nov.10 - Serpa 2010
A estrutura do orçamento dos Estados Unidos e a lógica da sua política económica, com Bush e Obama, é a de uma economia de guerra na qual a despesa militar exacerba o deficit orçamental, mas permite o funcionamento de um «equilíbrio de terror financeiro», reflecte imensos lucros do complexo militar-industrial e mantém a chantagem global baseada na força militar.
Um simples olhar sobre o orçamento para 2010 dos Estados Unidos permite apreciar a grandeza da despesa militar e o papel que este joga no conjunta da despesa com os pacotes de resgate dos bancos e entidades financeiras falidas.
O montante total do orçamento é de 3,94 biliões (milhões de milhões) de dólares e o deficit previsto é de 1,75 biliões, o equivalente a quase 12% do PIB [1].
A despesa militar oficial cifra-se em 739,5 mil milhões de dólares, ainda que se se incluírem outros gastos indirectos ou encobertos, a despesa superaria o bilião de dólares. A despesa no resgate das entidades financeiras afundadas na crise feita pelas administrações de Bush e Obama atinge os 1,45 biliões de dólares, enquanto os juros devidos pela dívida pública são de 164 mil milhões de dólares.
Significa isto que quase toda a receita do orçamento (2,38 biliões) é consumida somente pela despesa militar, os resgates da oligarquia financeira e uma pequena quantia por juros da dívida pública. Não resta praticamente nada para outros tipos de despesas.
Se considerarmos que a despesa militar ronda o bilião de dólares e que a parte da receita orçamental correspondente aos impostos familiares é de 1,06 biliões, temos que, nos Estados Unidos, a quase totalidade dos impostos que as famílias pagam não chega para mais que para cobrir a despesa militar.
Os Estados Unidos são o país mais endividado do mundo, apesar do significado prático disto ser diferente neste país do que seria em qualquer outro, porque se encontra endividado em moeda nacional que ele mesmo cria e põe em circulação.
O financiamento da enorme dívida pública federal ascende a 14 biliões de dólares, sem incluir dívidas de outros estados e municípios, o que assume características surrealistas.
Para o crescimento dessa dívida pública contribuíram os pacotes de resgate aos bancos, mas essa dívida é financiada através de uma retorcida operação, através da qual o governo financia o seu próprio endividamento, pois o dinheiro entregue como resgate dos bancos é parcialmente financiado com empréstimos dos próprios bancos.
Por sua vez, os bancos impõem ao governo as condições de gestão da dívida e impõem como o dinheiro deve ser empregue. Depois de terem sido «resgatados» os bancos impõem cortes massivos na despesa pública com serviços à população, a privatização, na privatização de infra-estruturas e serviços como a água, estradas, lazer, mas não se toca no gasto militar.
E não se toca porque «War is Good for Business» e a mesma oligarquia que dirige o mercado financeiro obtém elevados lucros procedentes da despesa militar. E essa despesa militar – como parte do deficit público – é financiado por operações de guerra económica que aquece cada vez mais e ameaça misturar a guerra económica com a guerra nuclear que os Estados Unidos incubam na complexa meada dos seus interesses e contradições económicas e geoestratégicas.
O equilíbrio do terror financeiro
financia a escalada militar dos Estados Unidos
A peculiar estrutura através da qual os Estados Unidos actua como uma economia parasita que financia os seus deficits e o seu gasto militar recebendo injecções financeiras do resto do mundo, faz parte da «normalidade» da ordem económica global. Ter reservas monetárias em dólares que se reciclam para comprar títulos ou outros instrumentos do Tesouro que financiam a dívida dos estadunidense, e com ela a escalada militar, é considerado pelos neoliberais como uma manifestação de equilíbrio de mercados livres.
O poder mediático apresenta esta reciclagem como o resultado da confiança na força económica dos Estados Unidos porque os outros países enviam para ali os seus dólares para serem investidos. [2]
A realidade é que os estrangeiros não põem o seu dinheiro nos Estados Unidos porque são compradores de exportações desse país, nem tampouco são investidores privados que compram acções ou títulos. Os maiores colocadores de dinheiro nos Estados Unidos são os bancos centrais que não fazem outra coisa que não seja reciclar os dólares que as suas exportações obtiveram e cambiaram por moedas nacionais.
Com deficits comercial e orçamental crescentes dos Estados Unidos, dá-se uma inundação de dólares para o exterior, agora incentivados pela baixa taxa de juro norte-americana e pela alegre emissão de notas de dólar.
Os países receptores de dólares (especialmente a China) estão colocados perante um dilema. Não participam nem têm influência alguma sobre as decisões económicas do governo dos Estados Unidos, que se aproveita do privilégio do dólar. Se aceitam a inundação de dólares, seja por excedentes comerciais ou pela baixa taxa de juro norte-americana ou por ambos os factores, sofrem a pressão para a alta da sua taxa de câmbio, a perda da competitividade comercial e o perigo de deixarem aninhar-se perigosos capitais especulativos de curto prazo.
Para evitar essa inundação, a conduta obrigatória é comprar instrumentos de dívida emitidos pelo governo norte-americano, e acumulá-los nas reservas monetárias, correndo o risco de qualquer desvalorização do dólar ser uma desvalorização das suas reservas. A China e outros países que acumulam grandes quantidades de dólares ou de instrumentos de dívida norte-americana em dólares, não lhes é permitido comprar activos não financeiros nos Estados Unidos. Quando a China o tentou (compra de instalações para distribuição de combustíveis) o governo dos Estados Unidos proibi-o. Nesse caso, não é permitida a livre circulação de capitais, o livre comércio e a retórica habituais. Só podem comprar activos financeiros para financiar os deficits norte-americanos.
Ao comprar títulos de Tesouro os países entram no «equilíbrio do terror financeiro» e contribuem para o financiamento um destino não previsto nem desejado: a despesa militar do Pentágono.
Acontece então para os países receptores de dólares surgidos dos deficits norte-americanos, uma dupla compressão. São lesados ao ver-se estruturalmente empurrados para, passivamente, financiarem a máquina militar norte-americana através de um «equilíbrio de terror financeiro» baseado não na sua superioridade económica, mas no poderio militar. E ao fazê-lo, países como a China e a Rússia estão a alimentar a própria despesa e o poderio militar que aponta armas contra eles.
A massiva despesa militar tem um objectivo geoestratégico hegemónico e a sua lógica última é a guerra.
Não são pioucos os que nos Estados Unidos acreditam nas virtudes de estímulo que uma guerra pode trazer. Recordam com nostalgia que a guerra hispano-cubana-americana, a primeira guerra da etapa imperialista, serviu em 1898 para que os Estados Unidos escapassem à crise económica daquela década, e que foi a Segunda Guerra Mundial provocou a destruição de forças produtivas suficiente para deixar para trás a Grande Depressão e abrir caminho aos dourados anos 50 e que a recessão dos anos 40 foi superada com a ajuda da guerra da Coreia.
Esta nostalgia, que incrementa o perigo de uma catastrófica guerra nuclear, ignora que aquelas guerras convencionais, correspondentes à época pré-nuclear, puderam actuar como estímulos anticrise, mas que a guerra nuclear perdeu essa capacidade.
As guerras com armas convencionais tinham virtudes como reanimadoras da economia: através da produção massiva de armamento convencional para cumprir os pedidos do estado de guerra, geravam emprego em cadeias fabris de então, e também a guerra convencional acelerava a destruição de forças produtivas que a crise económica tinha iniciado, e levava-a a um grau suficiente para impulsionar a recuperação sobre a base da reconstrução do pós-guerra. A destruição era a suficiente para completar e acelerar o peculiar papel da crise económica enquanto destruidora de riqueza para iniciar a seguir outra fase expansiva, mas não o era para ameaçar a vida da espécie humana e do planeta. Então, era possível ao capitalismo não só sobreviver mas utilizar a guerra como um tónico estimulante para a economia.
A guerra nuclear actual não é estimulante face ao principal problema orgânico da crise que é o desemprego, pois agora a sofisticada tecnologia para fabricar armas utiliza muito pouca força de trabalho, mas a sua capacidade destrutiva é tão grandiosa que o destruído não seriam edifícios de fábricas, capitais financeiros ou algumas cidades, mas o planeta e a espécie humana, depois do cataclismo do Inverno nuclear.
A guerra actual, a guerra convencional de desgaste como o do Iraque e a do Afeganistão nem podem ser ganhas pelos Estados Unidos nem são estimulantes para a saída da crise económica, a guerra nuclear que se estabelece como ameaçadora possibilidade, tampouco serviria para sair da crise porque não eliminaria o grande problema do desemprego, mas em contrapartida serviria para fazer grandes negócios a partir do tipo de despesa pública que se manobra com total opacidade e discricionariedade, despesa em que os Bernanke, Geithner, Summers, Strauss Kahn, nada decidem: a despesa militar que é capaz de reunir em si mesma a ambição hegemónica e a super-ganância dos grandes negócios.
Para os Estados Unidos, economicamente debilitados e com uma cultura produtiva em declinio, o recurso de última instância é a ameaça de uma guerra sustentada no crescimento da despesa militar. Mas, a constante ameaça de guerra e de despesa militar possuem uma diabólica dinâmica que tende a realizar-se na guerra real, quando convergem a mentalidade belicista, nos conflitos pela hegemonia em petróleo, gás, água, etc., disfarçados em razões humanitárias ou religiosas e na crença que na guerra nuclear pode haver vencedores.
O declínio da economia da maior potência militar coloca fortes tensões entre um poderio militar muito superior a qualquer outro e, ao mesmo tempo, sedento de hegemonia e com uma economia em retrocesso, que exportou boa parte da sua capacidade industrial, se afundou no parasitismo financeiro, se acomodou ao consumismo da produção alheia e perdeu a cultura produtiva que em tempos foi relevante. Alguns assinalam que continuando com essas tendências, o país que ao terminar a Segunda Guerra Mundial dominava a economia mundial com a sua capacidade produtiva, se encaminha para consumir os produtos do exterior e a exportar apenas filmes, espectáculos musicais, imagens glamorosas de um consumismo insustentável e armas.
O atraso económico perante os ritmos de crescimento da China e não só, mas também dos chamados BRIC+3 (Indonésia, Coreia do Sul e Malásia) é também uma fonte de tensões. Ao ritmo a que crescem estes países chamados emergentes, o seu ritmo igualará em 2020 o que agora tem o conjunto dos países do G7.
As tendências apontam para o atraso económico dos Estados Unidos e para a previsível utilização da força militar para manter a posição dominante da segunda metade do século XX.
Essas tendências manifestam-se na guerra do Iraque, do Afeganistão, do Paquistão, na ameaça de guerra nuclear contra o Irão e a Coreia do Norte e também os golpes e tentativas de golpes de estado na América Latina (Honduras, Venezuela, Equador e Bolívia), na crescente militarização sob a forma de desenvolvimento de bases militares norte-americanas à escala global e a formulação de uma doutrina de guerra que inclui entre outras coisas, a perigosa reconceptualização das «pequenas» bombas nucleares – podem oscilar entre metade e seis vezes a capacidade da bomba de Hiroshima – como armas que fazem parte de um menu de opções cuja utilização pode, em teoria, ser decidida pelo comando no teatro de operações. Significa que um general no teatro de operações dispõe de uma «caixa de ferramentas» para escolher e entre as ferramentas tem disponíveis mini-bombas nucleares que poderá utilizar como o fará com os blindados, artilharia, etc..
Para a guerra económica?
Nas últimas semanas a economia mundial está sendo caldeada com as notícias sobre a guerra das divisas. Esta guerra foi a preocupação central da reunião de ministros das Finanças do FMI em 23 de Outubro e de novo, tal como em todas as Cimeiras do G20 realizadas depois do início desta crise global, foram reiteradas as solenes declarações de compromisso com o «livre comércio» e a não aplicação de barreiras ao funcionamento de mercados.
Nestas primeiras escaramuças de uma possível guerra vê-se com claridade os contendores. Por um lado, os Estados Unidos tratam de reanimar a sua economia a todo o custo, aproveitando-se do facto de a moeda de reserva internacional ser também a sua moeda nacional e lançando uma torrente de dólares no exterior para desvalorizar o dólar, melhor a sua capacidade de concorrência e, ao fazê-lo, elevar as taxas de câmbio dos outros, prejudicar-lhes o comércio, obrigá-los a reciclar dólares através da compra de instrumentos da dívida norte-americana.
No outro campo, as restantes economias do mundo e, especialmente, os exportadores de matérias-primas do Sul, os que além disso sofrem a afluência de capitais especulativos voláteis impulsionados pela muito baixa taxa de juro que os Estados Unidos mantêm, sem êxito, como instrumento para reanimar o investimento.
A transformação destas escaramuças numa verdadeira guerra no estilo da ocorrida nos anos da Grande Depressão dependerá da profundidade e duração que a crise global atingir. Se ela se agravar poderá acontecer que a guerra das divisas seja o prelúdio de uma guerra comercial com aplicação de políticas nacionais de «empobrecimento do vizinho» e o desaparecimento da retórica livre-cambista e dos juramentos de fé no multilateralismo.
Para todos é evidente que o governo dos Estados Unidos não faz outra coisa senão aplicar o nacionalismo para resolver os problemas internos, valendo-se do privilégio do dólar e encostando às cordas todos os outros. Não será estranho que esta conduta encontrará reciprocidade noutros países e, no contexto de uma longa crise agravada, poderá rebentar com o sistema de regras e instituições nascido no pós-guerra com a promessa de não repetir jamais uma guerra comercial.
Crise económica e tendências políticas
A crise económica tem estado mais virada com uma volta para a direita que com um fortalecimento das forças anticapitalistas.
A relação entre a crise económica e tendências políticas foi diferente no século passado. Considerando apenas as maiores crises económicas e a sua tradução em resultados políticos, estes deram lugar a um movimento de pêndulo para a esquerda nos anos da Primeira Guerra Mundial e para a direita nos anos da Grande Depressão.
A economia russa em 1917 sofria os danos da guerra, mas também do impacto da crise económica europeia. A crise associou-se ao triunfo da Revolução de Outubro de 1917, ainda que, obviamente, ela só por si não pode gerar esse triunfo histórico anticapitalista. Muitos outros factores interagiram com a crise económica, mas o resultado final foi que a situação extrema a que a guerra, a autocracia czarista e a crise tinham levado a população russa foi apercebida, interpretada e dirigida por uma organização política que se propunha acabar com o capitalismo e construir o socialismo.
Nos anos 30 do século passado A Grande Depressão foi a maior crise económica até então ocorrida, mas o que predominou associado a ela foi o fortalecimento do fascismo. Na Alemanha, a combinação de indemnizações pagas aos vencedores da guerra anterior, a galopante inflação, eliminada por uma condução centralizada e fortemente controlada pelo Estado fascista, a eliminação do desemprego por grandes obras públicas e liderança de um fanático de direita teve como resultado o fascismo no poder e a Segunda Guerra mundial.
Nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina houve nesses anos movimentos de esquerda, mas estes não alcançaram vitórias estratégicas. Não existe uma determinação mecânica segundo a qual o desemprego, a pobreza, a insegurança conduzem o pêndulo para a esquerda.
A insegurança e inclusive o desespero que uma crise provoca pode ser apropriada e conduzida para objectivos políticos quer pela esquerda quer pela direita, em função da correcta ou incorrecta leitura que façam as forças em luta, das acções concretas e da capacidade de liderança.
Na actual crise não foi até ao momento relevante a resistência aos efeitos e às políticas a elas associadas, apesar do forte impacto no emprego e no custo social que atingiu. A greve geral em Espanha em 29 de Setembro e as manifestações francesas contra a política do Fundo Monetario Internacional de ajustamento fiscal são notícias a acompanhar mas, simultaneamente, a direita nos Estados Unidos fortalece-se, enquanto na América latina desenvolve-se uma contra-ofensiva imperialista contra os governos da Alba.
Nos Estados Unidos, o Tea Party avança no controlo do Partido Republicano e nas próximas eleições espera-se um forte castigo a Obama e a guinada à direita de massas norte-americanas, para aí deslocadas pelo desemprego, a extensão da pobreza e a perda das casas.
O Tea Party é um perigoso aglomerado onde se misturam a ignorância, o primitivismo político gerador da intolerância, os preconceitos e a crença cega de que é o povo eleito para conduzir o mundo.
A sua ideologia é uma mistura facistóide que inclui unir a Igreja e o Estado, eliminar os subsídios de desemprego, expulsar os imigrantes, eliminar ajudas a pessoas deficientes, a considerar que a masturbação é equivalente a adultério e, naturalmente, a reduzir os impostos, a desmantelar o «grande governo» e a destruir pela força a conspiração islâmica-chinesa-russa que obstaculiza o domínio mundial.
A Europa apresenta tendências numa direcção semelhante. Refira-se que na Alemanha um partido racista e xenófobo poderá alcançar os 15% dos votos. Na Itália, a Liga do Norte tem força. Na Holanda e na Suécia, apesar das suas tradições de tolerância, partidos racistas chegaram ao Parlamento. Em França foram expulsos milhares de ciganos para a Roménia e a Bulgária, países membros da União Europeia.
O movimento alter-mundista do Fórum Social Europeu perdeu força e encontra-se impregnado de lutas entre ONGsde países do Norte financiadas por interesses políticos nada interessados em chegar a um mundo melhor, e movimentos sociais com posições de luta anticapitalista, particularmente na América Latina.
A luta em França e em Espanha contra as medidas fiscais neoliberais na época do desprestigiado neoliberalismo, pode marcar o início de uma ascensão da resistência popular.
Parece mediar um certo tempo entre o rebentar da crise e o aparecimento da mobilização social contra as medidas referidas, como se fosse necessário que o desemprego, a insegurança e a desesperança se aprofundassem o suficiente para que as pessoas avancem para os protestos e a mobilização social. Assim aconteceu nos anos da Grande Depressão, pois não foi até 1932-33, três anos depois do aparecimento da crise que apareceu a pressão «dos de baixo».
Para lutar por um mundo melhor, para deixar para trás o capitalismo, a espécie humana tem de sobreviver e o planeta deve ser salvo. Para que os humanos sobrevivam há que parar a ameaça da guerra nuclear e para salvar o planeta deve cessar a agressão do mercado contra a natureza.
Travar a ameaça de guerra nuclear é, no imediato, desactivar o plano de agressão ao Irão com a participação de Israel e, igualmente no imediato, cortar na despesa militar que se combina de modo perverso com o declínio da economia norte-americana, para sustentar equilíbrios de terror: financeiro e militar. E para desbaratar recursos imensos em máquinas, tecnologias e bombas para matar.
Notas:
[1] Michel Chossudovsky and Andrew Gavin Marchall. The Global Economic Crisis. Global Research. 2010. Pág. 47-48.
[2] Michael Hudson: The "Dollar Glut" Finances America`s Global Military Build Up. En The Global Economic Crisis. Capítulo 10.
* Economista cubano, Osvaldo Martinez é Deputado na Assembleia Nacional do Poder Popular, Director do Centro de Investigação de Economia Mundial e presidente da Comissão de Assuntos Económicos da Assembleia Nacional do Poder Popular
in http://www.odiario.info/?p=1875 .
A peculiar estrutura através da qual os Estados Unidos actua como uma economia parasita que financia os seus deficits e o seu gasto militar recebendo injecções financeiras do resto do mundo, faz parte da «normalidade» da ordem económica global. Ter reservas monetárias em dólares que se reciclam para comprar títulos ou outros instrumentos do Tesouro que financiam a dívida dos estadunidense, e com ela a escalada militar, é considerado pelos neoliberais como uma manifestação de equilíbrio de mercados livres.
O poder mediático apresenta esta reciclagem como o resultado da confiança na força económica dos Estados Unidos porque os outros países enviam para ali os seus dólares para serem investidos. [2]
A realidade é que os estrangeiros não põem o seu dinheiro nos Estados Unidos porque são compradores de exportações desse país, nem tampouco são investidores privados que compram acções ou títulos. Os maiores colocadores de dinheiro nos Estados Unidos são os bancos centrais que não fazem outra coisa que não seja reciclar os dólares que as suas exportações obtiveram e cambiaram por moedas nacionais.
Com deficits comercial e orçamental crescentes dos Estados Unidos, dá-se uma inundação de dólares para o exterior, agora incentivados pela baixa taxa de juro norte-americana e pela alegre emissão de notas de dólar.
Os países receptores de dólares (especialmente a China) estão colocados perante um dilema. Não participam nem têm influência alguma sobre as decisões económicas do governo dos Estados Unidos, que se aproveita do privilégio do dólar. Se aceitam a inundação de dólares, seja por excedentes comerciais ou pela baixa taxa de juro norte-americana ou por ambos os factores, sofrem a pressão para a alta da sua taxa de câmbio, a perda da competitividade comercial e o perigo de deixarem aninhar-se perigosos capitais especulativos de curto prazo.
Para evitar essa inundação, a conduta obrigatória é comprar instrumentos de dívida emitidos pelo governo norte-americano, e acumulá-los nas reservas monetárias, correndo o risco de qualquer desvalorização do dólar ser uma desvalorização das suas reservas. A China e outros países que acumulam grandes quantidades de dólares ou de instrumentos de dívida norte-americana em dólares, não lhes é permitido comprar activos não financeiros nos Estados Unidos. Quando a China o tentou (compra de instalações para distribuição de combustíveis) o governo dos Estados Unidos proibi-o. Nesse caso, não é permitida a livre circulação de capitais, o livre comércio e a retórica habituais. Só podem comprar activos financeiros para financiar os deficits norte-americanos.
Ao comprar títulos de Tesouro os países entram no «equilíbrio do terror financeiro» e contribuem para o financiamento um destino não previsto nem desejado: a despesa militar do Pentágono.
Acontece então para os países receptores de dólares surgidos dos deficits norte-americanos, uma dupla compressão. São lesados ao ver-se estruturalmente empurrados para, passivamente, financiarem a máquina militar norte-americana através de um «equilíbrio de terror financeiro» baseado não na sua superioridade económica, mas no poderio militar. E ao fazê-lo, países como a China e a Rússia estão a alimentar a própria despesa e o poderio militar que aponta armas contra eles.
A massiva despesa militar tem um objectivo geoestratégico hegemónico e a sua lógica última é a guerra.
Não são pioucos os que nos Estados Unidos acreditam nas virtudes de estímulo que uma guerra pode trazer. Recordam com nostalgia que a guerra hispano-cubana-americana, a primeira guerra da etapa imperialista, serviu em 1898 para que os Estados Unidos escapassem à crise económica daquela década, e que foi a Segunda Guerra Mundial provocou a destruição de forças produtivas suficiente para deixar para trás a Grande Depressão e abrir caminho aos dourados anos 50 e que a recessão dos anos 40 foi superada com a ajuda da guerra da Coreia.
Esta nostalgia, que incrementa o perigo de uma catastrófica guerra nuclear, ignora que aquelas guerras convencionais, correspondentes à época pré-nuclear, puderam actuar como estímulos anticrise, mas que a guerra nuclear perdeu essa capacidade.
As guerras com armas convencionais tinham virtudes como reanimadoras da economia: através da produção massiva de armamento convencional para cumprir os pedidos do estado de guerra, geravam emprego em cadeias fabris de então, e também a guerra convencional acelerava a destruição de forças produtivas que a crise económica tinha iniciado, e levava-a a um grau suficiente para impulsionar a recuperação sobre a base da reconstrução do pós-guerra. A destruição era a suficiente para completar e acelerar o peculiar papel da crise económica enquanto destruidora de riqueza para iniciar a seguir outra fase expansiva, mas não o era para ameaçar a vida da espécie humana e do planeta. Então, era possível ao capitalismo não só sobreviver mas utilizar a guerra como um tónico estimulante para a economia.
A guerra nuclear actual não é estimulante face ao principal problema orgânico da crise que é o desemprego, pois agora a sofisticada tecnologia para fabricar armas utiliza muito pouca força de trabalho, mas a sua capacidade destrutiva é tão grandiosa que o destruído não seriam edifícios de fábricas, capitais financeiros ou algumas cidades, mas o planeta e a espécie humana, depois do cataclismo do Inverno nuclear.
A guerra actual, a guerra convencional de desgaste como o do Iraque e a do Afeganistão nem podem ser ganhas pelos Estados Unidos nem são estimulantes para a saída da crise económica, a guerra nuclear que se estabelece como ameaçadora possibilidade, tampouco serviria para sair da crise porque não eliminaria o grande problema do desemprego, mas em contrapartida serviria para fazer grandes negócios a partir do tipo de despesa pública que se manobra com total opacidade e discricionariedade, despesa em que os Bernanke, Geithner, Summers, Strauss Kahn, nada decidem: a despesa militar que é capaz de reunir em si mesma a ambição hegemónica e a super-ganância dos grandes negócios.
Para os Estados Unidos, economicamente debilitados e com uma cultura produtiva em declinio, o recurso de última instância é a ameaça de uma guerra sustentada no crescimento da despesa militar. Mas, a constante ameaça de guerra e de despesa militar possuem uma diabólica dinâmica que tende a realizar-se na guerra real, quando convergem a mentalidade belicista, nos conflitos pela hegemonia em petróleo, gás, água, etc., disfarçados em razões humanitárias ou religiosas e na crença que na guerra nuclear pode haver vencedores.
O declínio da economia da maior potência militar coloca fortes tensões entre um poderio militar muito superior a qualquer outro e, ao mesmo tempo, sedento de hegemonia e com uma economia em retrocesso, que exportou boa parte da sua capacidade industrial, se afundou no parasitismo financeiro, se acomodou ao consumismo da produção alheia e perdeu a cultura produtiva que em tempos foi relevante. Alguns assinalam que continuando com essas tendências, o país que ao terminar a Segunda Guerra Mundial dominava a economia mundial com a sua capacidade produtiva, se encaminha para consumir os produtos do exterior e a exportar apenas filmes, espectáculos musicais, imagens glamorosas de um consumismo insustentável e armas.
O atraso económico perante os ritmos de crescimento da China e não só, mas também dos chamados BRIC+3 (Indonésia, Coreia do Sul e Malásia) é também uma fonte de tensões. Ao ritmo a que crescem estes países chamados emergentes, o seu ritmo igualará em 2020 o que agora tem o conjunto dos países do G7.
As tendências apontam para o atraso económico dos Estados Unidos e para a previsível utilização da força militar para manter a posição dominante da segunda metade do século XX.
Essas tendências manifestam-se na guerra do Iraque, do Afeganistão, do Paquistão, na ameaça de guerra nuclear contra o Irão e a Coreia do Norte e também os golpes e tentativas de golpes de estado na América Latina (Honduras, Venezuela, Equador e Bolívia), na crescente militarização sob a forma de desenvolvimento de bases militares norte-americanas à escala global e a formulação de uma doutrina de guerra que inclui entre outras coisas, a perigosa reconceptualização das «pequenas» bombas nucleares – podem oscilar entre metade e seis vezes a capacidade da bomba de Hiroshima – como armas que fazem parte de um menu de opções cuja utilização pode, em teoria, ser decidida pelo comando no teatro de operações. Significa que um general no teatro de operações dispõe de uma «caixa de ferramentas» para escolher e entre as ferramentas tem disponíveis mini-bombas nucleares que poderá utilizar como o fará com os blindados, artilharia, etc..
Para a guerra económica?
Nas últimas semanas a economia mundial está sendo caldeada com as notícias sobre a guerra das divisas. Esta guerra foi a preocupação central da reunião de ministros das Finanças do FMI em 23 de Outubro e de novo, tal como em todas as Cimeiras do G20 realizadas depois do início desta crise global, foram reiteradas as solenes declarações de compromisso com o «livre comércio» e a não aplicação de barreiras ao funcionamento de mercados.
Nestas primeiras escaramuças de uma possível guerra vê-se com claridade os contendores. Por um lado, os Estados Unidos tratam de reanimar a sua economia a todo o custo, aproveitando-se do facto de a moeda de reserva internacional ser também a sua moeda nacional e lançando uma torrente de dólares no exterior para desvalorizar o dólar, melhor a sua capacidade de concorrência e, ao fazê-lo, elevar as taxas de câmbio dos outros, prejudicar-lhes o comércio, obrigá-los a reciclar dólares através da compra de instrumentos da dívida norte-americana.
No outro campo, as restantes economias do mundo e, especialmente, os exportadores de matérias-primas do Sul, os que além disso sofrem a afluência de capitais especulativos voláteis impulsionados pela muito baixa taxa de juro que os Estados Unidos mantêm, sem êxito, como instrumento para reanimar o investimento.
A transformação destas escaramuças numa verdadeira guerra no estilo da ocorrida nos anos da Grande Depressão dependerá da profundidade e duração que a crise global atingir. Se ela se agravar poderá acontecer que a guerra das divisas seja o prelúdio de uma guerra comercial com aplicação de políticas nacionais de «empobrecimento do vizinho» e o desaparecimento da retórica livre-cambista e dos juramentos de fé no multilateralismo.
Para todos é evidente que o governo dos Estados Unidos não faz outra coisa senão aplicar o nacionalismo para resolver os problemas internos, valendo-se do privilégio do dólar e encostando às cordas todos os outros. Não será estranho que esta conduta encontrará reciprocidade noutros países e, no contexto de uma longa crise agravada, poderá rebentar com o sistema de regras e instituições nascido no pós-guerra com a promessa de não repetir jamais uma guerra comercial.
Crise económica e tendências políticas
A crise económica tem estado mais virada com uma volta para a direita que com um fortalecimento das forças anticapitalistas.
A relação entre a crise económica e tendências políticas foi diferente no século passado. Considerando apenas as maiores crises económicas e a sua tradução em resultados políticos, estes deram lugar a um movimento de pêndulo para a esquerda nos anos da Primeira Guerra Mundial e para a direita nos anos da Grande Depressão.
A economia russa em 1917 sofria os danos da guerra, mas também do impacto da crise económica europeia. A crise associou-se ao triunfo da Revolução de Outubro de 1917, ainda que, obviamente, ela só por si não pode gerar esse triunfo histórico anticapitalista. Muitos outros factores interagiram com a crise económica, mas o resultado final foi que a situação extrema a que a guerra, a autocracia czarista e a crise tinham levado a população russa foi apercebida, interpretada e dirigida por uma organização política que se propunha acabar com o capitalismo e construir o socialismo.
Nos anos 30 do século passado A Grande Depressão foi a maior crise económica até então ocorrida, mas o que predominou associado a ela foi o fortalecimento do fascismo. Na Alemanha, a combinação de indemnizações pagas aos vencedores da guerra anterior, a galopante inflação, eliminada por uma condução centralizada e fortemente controlada pelo Estado fascista, a eliminação do desemprego por grandes obras públicas e liderança de um fanático de direita teve como resultado o fascismo no poder e a Segunda Guerra mundial.
Nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina houve nesses anos movimentos de esquerda, mas estes não alcançaram vitórias estratégicas. Não existe uma determinação mecânica segundo a qual o desemprego, a pobreza, a insegurança conduzem o pêndulo para a esquerda.
A insegurança e inclusive o desespero que uma crise provoca pode ser apropriada e conduzida para objectivos políticos quer pela esquerda quer pela direita, em função da correcta ou incorrecta leitura que façam as forças em luta, das acções concretas e da capacidade de liderança.
Na actual crise não foi até ao momento relevante a resistência aos efeitos e às políticas a elas associadas, apesar do forte impacto no emprego e no custo social que atingiu. A greve geral em Espanha em 29 de Setembro e as manifestações francesas contra a política do Fundo Monetario Internacional de ajustamento fiscal são notícias a acompanhar mas, simultaneamente, a direita nos Estados Unidos fortalece-se, enquanto na América latina desenvolve-se uma contra-ofensiva imperialista contra os governos da Alba.
Nos Estados Unidos, o Tea Party avança no controlo do Partido Republicano e nas próximas eleições espera-se um forte castigo a Obama e a guinada à direita de massas norte-americanas, para aí deslocadas pelo desemprego, a extensão da pobreza e a perda das casas.
O Tea Party é um perigoso aglomerado onde se misturam a ignorância, o primitivismo político gerador da intolerância, os preconceitos e a crença cega de que é o povo eleito para conduzir o mundo.
A sua ideologia é uma mistura facistóide que inclui unir a Igreja e o Estado, eliminar os subsídios de desemprego, expulsar os imigrantes, eliminar ajudas a pessoas deficientes, a considerar que a masturbação é equivalente a adultério e, naturalmente, a reduzir os impostos, a desmantelar o «grande governo» e a destruir pela força a conspiração islâmica-chinesa-russa que obstaculiza o domínio mundial.
A Europa apresenta tendências numa direcção semelhante. Refira-se que na Alemanha um partido racista e xenófobo poderá alcançar os 15% dos votos. Na Itália, a Liga do Norte tem força. Na Holanda e na Suécia, apesar das suas tradições de tolerância, partidos racistas chegaram ao Parlamento. Em França foram expulsos milhares de ciganos para a Roménia e a Bulgária, países membros da União Europeia.
O movimento alter-mundista do Fórum Social Europeu perdeu força e encontra-se impregnado de lutas entre ONGsde países do Norte financiadas por interesses políticos nada interessados em chegar a um mundo melhor, e movimentos sociais com posições de luta anticapitalista, particularmente na América Latina.
A luta em França e em Espanha contra as medidas fiscais neoliberais na época do desprestigiado neoliberalismo, pode marcar o início de uma ascensão da resistência popular.
Parece mediar um certo tempo entre o rebentar da crise e o aparecimento da mobilização social contra as medidas referidas, como se fosse necessário que o desemprego, a insegurança e a desesperança se aprofundassem o suficiente para que as pessoas avancem para os protestos e a mobilização social. Assim aconteceu nos anos da Grande Depressão, pois não foi até 1932-33, três anos depois do aparecimento da crise que apareceu a pressão «dos de baixo».
Para lutar por um mundo melhor, para deixar para trás o capitalismo, a espécie humana tem de sobreviver e o planeta deve ser salvo. Para que os humanos sobrevivam há que parar a ameaça da guerra nuclear e para salvar o planeta deve cessar a agressão do mercado contra a natureza.
Travar a ameaça de guerra nuclear é, no imediato, desactivar o plano de agressão ao Irão com a participação de Israel e, igualmente no imediato, cortar na despesa militar que se combina de modo perverso com o declínio da economia norte-americana, para sustentar equilíbrios de terror: financeiro e militar. E para desbaratar recursos imensos em máquinas, tecnologias e bombas para matar.
Notas:
[1] Michel Chossudovsky and Andrew Gavin Marchall. The Global Economic Crisis. Global Research. 2010. Pág. 47-48.
[2] Michael Hudson: The "Dollar Glut" Finances America`s Global Military Build Up. En The Global Economic Crisis. Capítulo 10.
* Economista cubano, Osvaldo Martinez é Deputado na Assembleia Nacional do Poder Popular, Director do Centro de Investigação de Economia Mundial e presidente da Comissão de Assuntos Económicos da Assembleia Nacional do Poder Popular
in http://www.odiario.info/?p=1875 .
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