ANTÓNIO MARTINS – OUTRAS PALAVRAS
Quebra da Irlanda confirma: “resposta” europeia à crise é a pior possível. Mas retrocesso continua, porque faltam alternativas e há um ganhador oculto: a poderosa máquina de exportação da Alemanha
Depois de semanas de relutância, o governo irlandês jogou a toalha domingo e pediu socorro à União Europeia (UE) e ao FMI. Receberá, nos próximos meses, um empréstimo que poderá chegar a 100 bilhões de euros. Como de praxe nestas operações, nenhum centavo irrigará a economia, muito menos a sociedade: tudo será destinado para remunerar os credores do país.
Aos irlandeses, caberá uma nova rodada de sacrifícios. Nos últimos meses, eles já haviam sido levados a aceitar um corte brutal nos direitos sociais (inclui reduções de salários e desmantelamento da assistência médica gratuita aos idosos, como mostra nossa matéria a respeito) e o resgate, pelo Estado, de três grandes bancos quebrados. Novas medidas serão anunciadas em 5 de dezembro. Mantidas em sigilo, elas parecem graves a ponto de levarem o primeiro-ministro, Brian Cowen, a prometer, para o início do próximo ano, eleições antecipadas – que provavelmente liquidarão seu mandato, mas não diminuirão o retrocesso social.
A quebra da Irlanda segue-se à da Grécia e, salvo em caso de reviravolta, será acompanhada em breve pela de Portugal e da Espanha. Itália e a própria Inglaterra – um dos grandes centros financeiros do mundo – estão intranquilas. A Europa, que no pós-II Guerra estabeleceu formas inovadoras de criar e distribuir riqueza e instituiu o Estado de Bem-Estar Social, agora trocou de papéis. É a região do mundo de onde vem a resposta mais conservadora, burocrática e retrógradas à crise global.
Ela tem dois pilares. O primeiro é a crença na ideia simplória segundo a qual os Estados devem responder a uma crise financeira grave cortando despesas. Logo após a queda da bolsa de Nova York, em 1929, esta postura foi adotada pela maior parte dos países ricos, após a quebra da bolsa. Projetou a economia mundial numa depressão profunda, que suscitou desemprego em massa, guerras comerciais, ondas de nacionalismo xenofóbico e… o nazi-fascismo.
Nos desdobramentos da crise iniciada em 2008, sobressaem três respostas. Em países como a China e o Brasil, os Estados procuram reanimar a economia por meio de investimentos sociais (aumento dos salários e benefícios), em infra-estrutura ou ambos. Nos Estados Unidos, prevalece uma postura mista. Barack Obama propôs uma reforma avançada no sistema de Saúde (que conseguiu emplacar parcialmente), mas também fala em cortar gastos públicos. Além disso, aposta num crescimento ainda maior da capacidade militar dos EUA (veja artigo de José Luís Fiori a respeito), e manobra com o poder de “criar” riqueza imprimindo a única moeda de circulação global.
No Velho Continente, não há sequer esta ambiguidade. O Banco Central Europeu, que também teria capacidade de irrigar a economia, recusa-se a fazê-lo. Os Estados-membros da UE quase não têm margem para estimular suas próprias economias – porque estão constrangidos pelas normas comuns do bloco, que os impedem de se endividar. E os órgãos que dirigem a União recusam-se a adotar políticas de investimento em direitos sociais ou obras públicas.
O resultado é uma camisa-de-força que deixa aos Estados nacionais, como única saída, o segundo pilar da “resposta” europeia à crise: um ataque generalizado aos direitos sociais e serviços públicos (veja nossa reportagem e, ao final, exame das medidas adotadas em cada país). Os resultados são os previsíveis. Como demonstrado no século passado (e nas crises cambiais latino-americanas, entre as décadas de 1980 e 2000), os “ajustes fiscais” golpeiam a sociedade, mas nunca satisfazem os credores. Cada concessão é vista como uma demonstração de fraqueza e um sinal de que é possível exigir ainda mais. Nesta segunda-feira (22/11), logo após a capitulação da Irlanda, os mercados financeiros passaram a exigir, de Portugal e Espanha, taxas de juros ainda mais elevadas para a rolagem de suas dívidas.
Dois fatores ajudam a entender por que a Europa sucumbe a esta espiral regressiva. O primeiro é uma crise profunda da esquerda institucional — que parece, em suas diversas vertentes, presa ao século passado. A social-democracia esteve no governo de quase todos os países europeus, ao longo das duas últimas décadas. Ao fazê-lo, numa época em que o neoliberalismo era hegemônico, comprometeu-se diversas vezes com políticas de corte de direitos semelhantes às atuais – ainda que mais brandas. Não é capaz, agora, de enxergar, que a crise reembaralhou as cartas, que respostas novas são possíveis, que é permitido ousar. Na Grécia, em Portugal e na Espanha, as medidas brutais que estão violando o Estado do Bem-Estar Social são adotadas por partidos “socialistas”.
Mas a esquerda radical não é muito diferente, na insensibilidade aos novos tempos. Com as possíveis exceções de Portugal e da Alemanha, continua presa apenas à denúncia e à resistência. Sem ambição para formular alternativas, sem pique para dialogar com setores sociais emergentes, que se orientam por lógicas não-convencionais para os europeus: os imigrantes, por exemplo.
O segundo motor que empurra e Europa para trás é concreto e poderoso. Desde 2009, quando reelegeu-se com base num governo claramente à direita, a chanceler alemã Angela Merkel tem sido a defensora destacada das políticas de “ajuste fiscal” e “austeridade”. Não o faz por mera defesa de valores ideológicos. A economia da Alemanha está posicionada de modo muito particular, na conjuntura que se abriu após a crise.
Há um setor exportador muito robusto, que tira proveito inclusive do desenvolvimento acelerado dos países do Sul. Produz bens de capital sofisticados – máquinas necessárias para o avanço da indústria ou o desenvolvimento da infra-estrutura em países distintos como China, Índia, Angola, Brasil. Ou vende bens de luxo (automóveis Mercedes-Benz ou BMW, digamos) para os novos ricos que estão surgindo nos “mercados emergentes”.
Basta uma rápida consulta aos números da macroeconomia mundial para demonstrar o fenômeno. No período de doze meses encerrado em setembro, a Alemanha obteve o maior superávit comercial do planeta: 210 bilhões de dólares, 20% superior ao da tão falada China e em absoluto contraste, por exemplo, com os déficits da França (- US$ 69,6 bilhões), Reino Unido (-142,8 bi) ou Espanha (-72,9 bi). Impulsionada por este movimento, a economia alemã cresceu 9% no terceiro trimestre do ano – enquanto o resto da Europa vive dificuldades crescentes.
Para grandes empresas germânicas – e para os planos de médio prazo de Angela Merkel (ela só terá de submeter-se a eleições em 2003) – interessa consolidar a posição da Alemanha como grande exportador mundial. A redução de direitos sociais e salários contribuem para tanto: refreiam a capacidade de adquirir produtos importados e barateiam a produção. Neste exato momento, as federações empresariais alemãs estão estimulando seu governo a ampliar os incentivos à imigração de trabalhadores semi-qualificados, como forma de combater o aumento do salário-mínimo, reivindicado pelas centrais sindicais…
Em contraste com as hesitações e incertezas da esquerda, Angela Merkel tem um projeto: quer achatar os custos de produção em toda a Europa, comprimindo principalmente os direitos sociais, e garantir competitividade internacional a longo prazo para as grandes empresas do continente – com clara liderança alemã. É uma aposta extremamente arriscada: para que ela triunfe, será preciso passar por cima de seis décadas de lutas e conquistas dos trabalhadores e sociedades europeias. Derrotar tamanha regressão é perfeitamente possível: a chanceler enfrenta dificuldades políticas em seu próprio país. Mas falta, para resistir, algo essencial: um projeto alternativo.
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Quebra da Irlanda confirma: “resposta” europeia à crise é a pior possível. Mas retrocesso continua, porque faltam alternativas e há um ganhador oculto: a poderosa máquina de exportação da Alemanha
Depois de semanas de relutância, o governo irlandês jogou a toalha domingo e pediu socorro à União Europeia (UE) e ao FMI. Receberá, nos próximos meses, um empréstimo que poderá chegar a 100 bilhões de euros. Como de praxe nestas operações, nenhum centavo irrigará a economia, muito menos a sociedade: tudo será destinado para remunerar os credores do país.
Aos irlandeses, caberá uma nova rodada de sacrifícios. Nos últimos meses, eles já haviam sido levados a aceitar um corte brutal nos direitos sociais (inclui reduções de salários e desmantelamento da assistência médica gratuita aos idosos, como mostra nossa matéria a respeito) e o resgate, pelo Estado, de três grandes bancos quebrados. Novas medidas serão anunciadas em 5 de dezembro. Mantidas em sigilo, elas parecem graves a ponto de levarem o primeiro-ministro, Brian Cowen, a prometer, para o início do próximo ano, eleições antecipadas – que provavelmente liquidarão seu mandato, mas não diminuirão o retrocesso social.
A quebra da Irlanda segue-se à da Grécia e, salvo em caso de reviravolta, será acompanhada em breve pela de Portugal e da Espanha. Itália e a própria Inglaterra – um dos grandes centros financeiros do mundo – estão intranquilas. A Europa, que no pós-II Guerra estabeleceu formas inovadoras de criar e distribuir riqueza e instituiu o Estado de Bem-Estar Social, agora trocou de papéis. É a região do mundo de onde vem a resposta mais conservadora, burocrática e retrógradas à crise global.
Ela tem dois pilares. O primeiro é a crença na ideia simplória segundo a qual os Estados devem responder a uma crise financeira grave cortando despesas. Logo após a queda da bolsa de Nova York, em 1929, esta postura foi adotada pela maior parte dos países ricos, após a quebra da bolsa. Projetou a economia mundial numa depressão profunda, que suscitou desemprego em massa, guerras comerciais, ondas de nacionalismo xenofóbico e… o nazi-fascismo.
Nos desdobramentos da crise iniciada em 2008, sobressaem três respostas. Em países como a China e o Brasil, os Estados procuram reanimar a economia por meio de investimentos sociais (aumento dos salários e benefícios), em infra-estrutura ou ambos. Nos Estados Unidos, prevalece uma postura mista. Barack Obama propôs uma reforma avançada no sistema de Saúde (que conseguiu emplacar parcialmente), mas também fala em cortar gastos públicos. Além disso, aposta num crescimento ainda maior da capacidade militar dos EUA (veja artigo de José Luís Fiori a respeito), e manobra com o poder de “criar” riqueza imprimindo a única moeda de circulação global.
No Velho Continente, não há sequer esta ambiguidade. O Banco Central Europeu, que também teria capacidade de irrigar a economia, recusa-se a fazê-lo. Os Estados-membros da UE quase não têm margem para estimular suas próprias economias – porque estão constrangidos pelas normas comuns do bloco, que os impedem de se endividar. E os órgãos que dirigem a União recusam-se a adotar políticas de investimento em direitos sociais ou obras públicas.
O resultado é uma camisa-de-força que deixa aos Estados nacionais, como única saída, o segundo pilar da “resposta” europeia à crise: um ataque generalizado aos direitos sociais e serviços públicos (veja nossa reportagem e, ao final, exame das medidas adotadas em cada país). Os resultados são os previsíveis. Como demonstrado no século passado (e nas crises cambiais latino-americanas, entre as décadas de 1980 e 2000), os “ajustes fiscais” golpeiam a sociedade, mas nunca satisfazem os credores. Cada concessão é vista como uma demonstração de fraqueza e um sinal de que é possível exigir ainda mais. Nesta segunda-feira (22/11), logo após a capitulação da Irlanda, os mercados financeiros passaram a exigir, de Portugal e Espanha, taxas de juros ainda mais elevadas para a rolagem de suas dívidas.
Dois fatores ajudam a entender por que a Europa sucumbe a esta espiral regressiva. O primeiro é uma crise profunda da esquerda institucional — que parece, em suas diversas vertentes, presa ao século passado. A social-democracia esteve no governo de quase todos os países europeus, ao longo das duas últimas décadas. Ao fazê-lo, numa época em que o neoliberalismo era hegemônico, comprometeu-se diversas vezes com políticas de corte de direitos semelhantes às atuais – ainda que mais brandas. Não é capaz, agora, de enxergar, que a crise reembaralhou as cartas, que respostas novas são possíveis, que é permitido ousar. Na Grécia, em Portugal e na Espanha, as medidas brutais que estão violando o Estado do Bem-Estar Social são adotadas por partidos “socialistas”.
Mas a esquerda radical não é muito diferente, na insensibilidade aos novos tempos. Com as possíveis exceções de Portugal e da Alemanha, continua presa apenas à denúncia e à resistência. Sem ambição para formular alternativas, sem pique para dialogar com setores sociais emergentes, que se orientam por lógicas não-convencionais para os europeus: os imigrantes, por exemplo.
O segundo motor que empurra e Europa para trás é concreto e poderoso. Desde 2009, quando reelegeu-se com base num governo claramente à direita, a chanceler alemã Angela Merkel tem sido a defensora destacada das políticas de “ajuste fiscal” e “austeridade”. Não o faz por mera defesa de valores ideológicos. A economia da Alemanha está posicionada de modo muito particular, na conjuntura que se abriu após a crise.
Há um setor exportador muito robusto, que tira proveito inclusive do desenvolvimento acelerado dos países do Sul. Produz bens de capital sofisticados – máquinas necessárias para o avanço da indústria ou o desenvolvimento da infra-estrutura em países distintos como China, Índia, Angola, Brasil. Ou vende bens de luxo (automóveis Mercedes-Benz ou BMW, digamos) para os novos ricos que estão surgindo nos “mercados emergentes”.
Basta uma rápida consulta aos números da macroeconomia mundial para demonstrar o fenômeno. No período de doze meses encerrado em setembro, a Alemanha obteve o maior superávit comercial do planeta: 210 bilhões de dólares, 20% superior ao da tão falada China e em absoluto contraste, por exemplo, com os déficits da França (- US$ 69,6 bilhões), Reino Unido (-142,8 bi) ou Espanha (-72,9 bi). Impulsionada por este movimento, a economia alemã cresceu 9% no terceiro trimestre do ano – enquanto o resto da Europa vive dificuldades crescentes.
Para grandes empresas germânicas – e para os planos de médio prazo de Angela Merkel (ela só terá de submeter-se a eleições em 2003) – interessa consolidar a posição da Alemanha como grande exportador mundial. A redução de direitos sociais e salários contribuem para tanto: refreiam a capacidade de adquirir produtos importados e barateiam a produção. Neste exato momento, as federações empresariais alemãs estão estimulando seu governo a ampliar os incentivos à imigração de trabalhadores semi-qualificados, como forma de combater o aumento do salário-mínimo, reivindicado pelas centrais sindicais…
Em contraste com as hesitações e incertezas da esquerda, Angela Merkel tem um projeto: quer achatar os custos de produção em toda a Europa, comprimindo principalmente os direitos sociais, e garantir competitividade internacional a longo prazo para as grandes empresas do continente – com clara liderança alemã. É uma aposta extremamente arriscada: para que ela triunfe, será preciso passar por cima de seis décadas de lutas e conquistas dos trabalhadores e sociedades europeias. Derrotar tamanha regressão é perfeitamente possível: a chanceler enfrenta dificuldades políticas em seu próprio país. Mas falta, para resistir, algo essencial: um projeto alternativo.
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