quarta-feira, 16 de março de 2011

CRISE DE REGIME?

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MÁRIO SOARES – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião

1. Há quase dois anos só se ouve falar de crise em Portugal. As televisões, as rádios e os jornais - em doses maciças - não falam de outra coisa. O que tem criado, mesmo nos mais optimistas, um estado de depressão generalizado, que é muito negativo, principalmente para as jovens gerações. Sobretudo quando estas se deparam com uma ausência de horizontes e, especialmente, o aumento do desemprego no próximo futuro. O que é grave, deprimente e pode acarretar consequências sociais muito negativas.

A crise, como se sabe, é de raiz financeira e económica. E, como tenho escrito nesta mesma coluna várias vezes, veio de fora. Foi, por assim dizer, importada. Teve a sua origem nos Estados Unidos e propagou-se à União Europeia e, mais ou menos, depois, por todo o resto do mundo, com maior ou menor intensidade.

No próximo dia 11 do corrente mês de Março reunir-se-á, em Bruxelas, uma Cimeira dos Estados da Zona Euro, a que Portugal pertence, para decidir quanto a uma política concertada de defesa do euro. É uma decisão que já devia ter sido tomada há muito. Se o tivesse sido, ter-se-ia evitado, em tempo próprio, a agressividade dos mercados puramente especulativos dos últimos meses.

Mas não foi. As culpas cabem, em especial, à Alemanha, da chanceler Merkel, que parece querer "germanizar" a União Europeia, e à França, do Presidente Sarkozy, que, de reviravolta em reviravolta, segue agora à letra as opções da chanceler alemã, com evidente subserviência. Talvez por não ter o poder económico da sua parceira.

Tenho bastantes dúvidas quanto ao que sairá da reunião do dia 11 de Março. Trata-se de debater o futuro do euro, o que representa, em si, um progresso. Os líderes europeus não se entendem entre si, por terem interesses divergentes e, por outro lado, não querem compreender as grandes transformações que o mundo está a viver, por toda a parte. Serão elas que os obrigarão, aliás, mais tarde ou mais cedo, a mudar de paradigma de desenvolvimento. Como está a acontecer nos Estados Unidos.

Contudo, por enquanto, na União Europeia, o primado das preocupações centrou-se nos equilíbrios financeiros - que, obviamente, são importantes - menosprezando a economia real. Ora, essa posição, para países como Portugal e Espanha, mas não só, pode vir a ser fatal. Porquê? Porque as medidas de austeridade, a que os Estados mais fracos são obrigados, conduzem-nos, necessariamente, à recessão, visto que impedem o crescimento económico, reduzem os investimentos, fazendo crescer o desemprego e podem, mesmo, provocar revoltas sociais extremamente perigosas.

Assim se vai somando à crise financeira - sem a resolver - a crise económica e porventura social. Diz o povo que "casa em que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão". É verdade. Com um Governo minoritário - como é o nosso caso - é provável que as dificuldades venham a complicar-se, juntando às crises referidas uma crise política.

Com efeito, a situação política, apesar dos esforços corajosos do primeiro-ministro, que corre de um lado para o outro, incansável, a tapar buracos, vai-se degradando. Todos os partidos, à excepção do PS, atacam o Governo furiosamente e, com frequência, usando termos pouco próprios. Mas não o querem atirar a baixo e substituí-lo. O que é muito significativo. Porquê? Porque não têm alternativa? É em parte verdade. Mas, sobretudo, porque não é hoje nada cómodo, para ninguém, ser Governo, dadas as tremendas dificuldades a que Portugal está sujeito. E é muito cómodo e fácil - reconheça-se - ser oposição e dizer mal dos membros do Governo...

O principal partido da oposição - o PSD - tem tido uma posição discreta e assegura não querer derrubar o Governo - talvez para o fritar em lume brando? - apesar de alguns dos "barões" do PSD não esconderem a sua avidez para voltar a assumir o poder. Não é o caso de Passos Coelho. No barómetro deste mês da Eurosondagem, o PSD está acima do PS por 36,9% contra 30,6%. Conjuntamente com o CDS/PP, o PSD faria uma maioria folgada. No entanto, 63% dos portugueses querem evitar eleições antecipadas. O que demonstra, uma vez mais, o bom senso do eleitorado. Num momento em que o Presidente da República inicia o seu novo mandato, é significativo.

Dissolver o Parlamento, provocando novas eleições, só complicaria ainda mais a situação. Também não parece que o primeiro-ministro se disponha, quaisquer que sejam as dificuldades, a autodemitir--se das suas funções. É o que seria para ele mais fácil, mas não está na sua psicologia nem no seu estilo político.

Assim, vamos continuar a assistir, como nos últimos meses, a uma degradação da situação interna e porventura também externa, em termos europeus. É perigoso. Até porque alguns comentadores e políticos, mais à direita, começam a falar de uma crise de regime, isto é, da democracia. Tentam comparar a situação actual à que vivemos em Portugal nos últimos anos da I República. Ora de ditadores pseudo--salvadores tivemos a nossa conta, durante 48 anos. Não queremos mais. Estou seguro de que os portugueses, com o seu bom senso, têm ainda a memória do que se viveu então e não querem, de modo algum, repetir a dose. Mas é útil ir relembrando o passado próximo, sobretudo quando a União Europeia começa a claudicar quanto ao projecto comunitário. Onde estão hoje os valores da unidade e da solidariedade entre os Estados membros? E, no plano externo, por que razão a Comunidade fecha os olhos aos valores universais da democracia e dos direitos humanos, quando lhe é conveniente acarinhar os piores ditadores, por terem dinheiro e segundo as exigências do mercado?...

2. Como democrata que me prezo de ser, sempre considerei as manifestações cívicas e políticas como um direito inalienável dos cidadãos. Participei em centenas delas, sem exagero - durante os 32 anos da minha vida de combate contra a ditadura, sujeitando-me a levar bastantes bastonadas da polícia e duas vezes, pelo menos, a ser preso. E depois do 25 de Abril, na luta contra o PREC, em manifestações colossais, mas com evidente menor risco. Quanto era presidente e houve uma manifestação na Ponte 25 de Abril, com uma intervenção policial bastante dura - estava eu na Guarda, numa "presidência aberta" - não deixei de lembrar publicamente aos portugue- ses que o "direito à indignação" e à sua expressão em manifestações ordeiras e não violentas é um direito de todos os cidadãos em qualquer democracia que se preze, como era, e é, o caso. Depois de ser presidente, participei numa manifestação, descendo a pé a Avenida da Liberdade, contra a invasão do Iraque.

Vem isto a propósito da manifestação da "geração à rasca" que se realizará no próximo dia 12 de Março. Tomei conhecimento dela ao ler um artigo do meu amigo Vasco Pulido Valente. E manifestei-me logo, favoravelmente, nesta mesma coluna. O problema dos jovens desempregados preocupa-me imenso. Depois, li um blogue - anónimo, ao que julgo - de um dos promotores. E fiquei muito preocupado. Porque expressava uma crítica negativista contra a política, os partidos e os políticos, em geral, sem discriminações. O que se quer afinal? O caos? Voltei a escrever uma nota breve, expressando essa minha preocupação, sobretudo num momento político em que é tão fácil dizer mal de tudo e de todos. E há muita gente desesperada.

Foi a propósito dessa nota que o Vasco Pulido Valente me brindou - com muita simpatia por mim, reconheço - com um novo artigo, garantindo-me que as pessoas que irão manifestar-se não são "perigosas, antidemocráticas nem niilistas", que descerão "tranquilamente a Avenida da Liberdade (...) para protestar contra a maneira como o PS e o PSD governaram Portugal, em plena impunidade, durante quase 40 anos". Se assim é, muito bem. Manifestem-se e indignem- -se, pacificamente. Só resta reconhecer que os governantes, desde que há democracia, resultam sempre do voto popular, que os legitimou em inúmeras eleições. Claro que a democracia não é perfeita e às vezes o povo engana-se nas suas escolhas. Mas, como dizia Churchill - e sabia do que falava - "a democracia é o pior dos regimes, com a excepção de todos os outros"...

3. O Partido Comunista Português, vulgo PCP, foi criado em 1921, em plena I República, em consequência da vitória da URSS, em 1917, e do entusiasmo que suscitou no movimento operário internacional. O seu principal líder foi Bento Gonçalves, operário da Cordoaria Nacional, que morreu no Tarrafal após vários anos de prisão. Depois foi Álvaro Cunhal, desde a reconstituição de 1941, que, apesar de não ser operário, dirigiu o PCP. Esteve pelo menos duas vezes preso pela ditadura, e da última vez, cerca de 11 anos, na Penitenciária e em Peniche, donde fugiu.

Álvaro Cunhal, não somente marcou o Partido como, efectivamente, o formou, até hoje.

Fui, como muitos saberão, militante do Partido Comunista entre 1942, ainda andava na universidade, e 1949, quando o partido estava em plena clandestinidade. Não estou arrependido. Foi, para mim, uma boa experiência - nos anos da guerra, quando o importante era vencer o nazi-fascismo e as ditaduras associadas. Depois da guerra, foram anos de desilusão: da guerra fria, da cisão do marechal Tito e da revelação dos campos de concentração na URSS, os gulags.

O meu problema com o PCP foi sempre o direito a pensar politicamente pela minha cabeça e, sobretudo, o problema da liberdade. Depois da minha saída do PCP - ou da minha expulsão, como gostam de dizer - defendi alguns comunistas no Tribunal Plenário e tive divergências políticas com o PCP a propósito da luta unitária que travávamos contra a ditadura.

Quando estava no exílio e já era secretário-geral do PS, fui convidado, por intermédio do PCP, a visitar a URSS, quando começava a chamada détente. Estive lá um mês e visitei várias cidades. Voltei mais do que esclarecido, vacinado, quanto àquele tipo de regimes. Isso não impediu de me encontrar duas vezes com Álvaro Cunhal, em Paris, em reuniões entre as duas delegações do PCP e do PS. Foram cordiais, mas não passaram disso. Havia a percepção, dos dois lados, de que a ditadura estava a entrar em agonia.

Depois do 25 de Abril, quando o marechal Spínola me convidou para ministro dos Negócios Estrangeiros, disse-lhe que só aceitaria se Cunhal também entrasse no Governo. A reacção do então presidente da Junta de Salvação Nacional foi negativa, mas acabou por aceitar. Cunhal, desde a sua chegada a Lisboa, quando discursou em cima de um tanque, a copiar Lenine, em Sampetersburgo, percebi o que pretendia: ser o Lenine da última metade do século. Não me enganei.

Durante o PREC, essa estratégia tornou-se claríssima. O PS opôs-se - como o Grupo dos Nove - e chegámos a estar à beira da guerra civil, evitada in extremis. Foi então que André Malraux escreveu: "Os socialistas portugueses mostraram ao mundo que os mencheviques são capazes de vencer os bolcheviques." Nem por isso deixei de proclamar, no dia seguinte ao 25 de Novembro de 1975, que o PS se oporia à ilegalização do PCP, que muitos desejavam.

Passaram os anos, deu-se a normalização democrática, em Portugal, e o colapso do comunismo na URSS e nas "democracias populares", que sempre foram e só ditaduras. O mundo continua em grandes transformações, umas positivas, outras negativas. Mas o PCP não mudou. Nunca fez autocrítica, de que tanto costuma falar. Continua a ler pela cartilha deixada pelo dr. Cunhal.

De qualquer modo, parabéns ao PCP. Tem uma bonita idade!
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