quinta-feira, 10 de março de 2011

QUE MERDA É ESSA?

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RUI MARTINS*, Berna – DIRETO DA REDAÇÃO

Nem tudo é Carnaval no Brasil pós-Lula, como provou a polêmica levantada pelo bloco com camisetas desenhadas pelo cartunista Ziraldo, mostrando o escritor Monteiro Lobato agarrado numa mulata. Mas Que merda é Essa, ironizava Ziraldo, diante da celeuma provocada pelo Conselho Nacional de Educação ao considerar impróprio para a criançada, por racismo, o livro Caçadas de Pedrinho, do consagrado autor do Sítio do Picapau Amarelo, paulista de Taubaté.

Com sua costumeira irreverência, Ziraldo quis por um fim na polêmica « Lobato era racista ? » mas sua brincadeira teve o efeito de merda jogada no ventilador, e o próprio Ziraldo, nesta quarta-feira de cinzas deve estar sorrindo amarelo. Sua explicação de racismo com ódio e racismo sem ódio não convenceu e foi interpretada como conversa de quem é racista enrustido.

Na verdade, Ziraldo nisso não é exceção. A maioria da sociedade brasileira é racista enrustida, o que o jornalista Dojival Vieira, da comunidade negra Afrokut, define como « racismo bonzinho » na versão ipanemense de Ziraldo. Se o racismo bonzinho brasileiro não deu origem à criação de um Klu Klux Klan brazuca, como lamentava Monteiro Lobato, em sua correspondência revelada pela escritora negra Ana Maria Gonçalves, se manifesta numa sociedade de pessoas cor-de-rosa e pessoas marrom, como bem retrata o livro O Menino Marrom, do próprio Ziraldo.

Ziraldo queria protestar zombeteiramente da exclusão do livro Caçadas de Pedrinho das escolas pelo Ministério da Educação, por veicular racismo entre as crianças. Para o cartunista isso seria censura ao velho Lobato e quis provavelmente reagir com caçoada, ele que também escreve para crianças « mas que merda é essa minha gente, deixem o Lobato em paz! ». Só que o racismo no Brasil não se resolve com brincadeiras e caçoadas.

Lembro-me de um artigo que escrevi sobre Darwin no Masp, em São Paulo, quando o autor da teoria da evolução declarou ao deixar o Rio de Janeiro, em 1832, « espero nunca mais voltar a um país com escravos ». Foram cerca de 5 milhões de escravos importados da África e seus descendentes viveram muitas décadas, e muitos deles ainda vivem, numa situação de semi-escravidão, pois o Brasil era, e ainda é em muitos lugares, um país de apartheid social e econômico, com os descendentes dos escravos excluídos da sociedade.

Digo era, porque de certa maneira, esse quadro começou a mudar com o governo Lula, que marcou também a ascensão de alguém vindo da classe pobre e excluída à presidência, lugar até ali sempre ocupado pela mesma elite branca, rica e diplomada. Se hoje se fala abertamente de racismo em Monteiro Lobato, o escritor de idéias eugenistas de raça pura e crítico dos descendentes dos escravos, que julgava feios, disformes e decadentes, acentuando-se esse lado antes ignorado ou tolerado, essa é a consequência de um novo Brasil em criação.

A diminuição da desigualdade social, os resultados práticos das bolsas família e escola retirando quase 30 milhões de brasileiros da miséria, o aumento do salário mínimo de míseros 80 aos 250 dólares atuais, as cotas nas universidades abrindo aos negros as portas do ensino superior estão mudando o Brasil.

E nesse novo Brasil, Ziraldo devia saber, não se toleram mais as levianas brincadeiras de racismo bonzinho e de racistas enrustidos, mesmo se procedem de um Ziraldo. A consciência negra desperta, toma posições e é hora de se abrir alas para passar esse novo Brasil emergente.

* Jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. Escreve para o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress.
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