MAIR PENA NETO – DIRETO DA REDAÇÃO
Se todas as razões exaustivamente expostas ainda não fossem suficientes para justificar uma emissora pública de televisão no país, a exibição da série “O dia que durou 21 anos”, na TV Brasil, já seria suficiente para explicar a necessidade de sua existência. Sim, porque só uma emissora pública coproduziria e abriria espaço para um documentário que expõe toda a participação do governo dos Estados Unidos no golpe militar de 1964, com base em documentação do arquivo norte-americano, que permaneceu secreta por 46 anos.
Seria inimaginável uma emissora comercial destinar três dias da sua programação para o documentário realizado pelo jornalista Flavio Tavares e seu filho Camilo. A TV Brasil já brindara seu público ano passado com a série “Era das Utopias”, de Silvio Tendler, fruto de 20 anos de pesquisa do documentarista brasileiro, exibida durante toda uma semana útil.
Compromissos com patrocinadores e foco exclusivo na audiência levam as emissoras comerciais a apostarem em programas fáceis e de apelo barato, desprezando produções históricas e mais profundas, como documentários. A TV Brasil vem cumprindo seu papel nesse campo e colaborando para o conhecimento e reflexão sobre a nossa história, condição essencial para a formação de verdadeiros cidadãos.
“O dia que durou 21 anos” enterra qualquer inocência sobre a origem e execução do golpe militar de 64 apenas como fruto do anseio dos militares e de parcela da população civil brasileira. A ação começa a ser orquestrada dois anos antes, quando o presidente John Kennedy toma as primeiras medidas, impressionado com os relatos alarmantes do embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon, que via o país como uma segunda Cuba.
É Gordon quem sugere que Jango seja levado à base militar de Nebraska, na visita do presidente brasileiro aos EUA, em abril de 1962. Jango conhece de perto a sala de comando capaz de destruir o planeta sem entender o porque de toda aquela exibição. Jango não tinha nenhum problema particular com os Estados Unidos e as reformas que propunha são as mesmas que (infelizmente) continuam ocupando a agenda brasileira sem que fantasmas comunistas sejam vistos.
Mas Lincoln Gordon não pensava assim e em conversas gravadas com Kennedy recebeu o sinal verde para organizar a conspiração. A CIA executou operações de propaganda no Brasil e o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) financiaram políticos, jornalistas, meios de comunicação e grupos religiosos para atacarem Jango e criarem o clima propício ao golpe..
A morte de Kennedy e a chegada ao poder de Lyndon Johnson não alteram a estratégia e o novo presidente norte-americano aparece em vídeo afirmando que outro regime comunista no hemisfério ocidental não pode e não iria acontecer. “Vamos ficar em cima de Goulart e nos expor se for preciso”, disse Johnson.
O documentário exibe documentos com referências à operação Brother Sam, que o assistente de Lincoln Gordon, Robert Bentley, afirma desconhecer. A exposição a que Johnson se referia se configurava no envio de força-tarefa naval ao Brasil para “controlar as massas”. Junto aos militares brasileiros, a ação era organizada pelo adido militar da embaixada dos EUA, Vernon Walters.
A reação esperada pelos EUA e os militares golpistas não veio, mas isso não impediu que o regime de exceção se transformasse numa ditadura sanguinária, que perseguiu, torturou e matou muitos de seus cidadãos, sempre com apoio incondicional dos EUA, inclusive responsável pela formação de torturadores na famigerada escola do Panamá.
A maioria desses fatos é conhecida, mas o documentário de Flavio Tavares tem o mérito de trazer à luz documentos e gravações que comprovam o envolvimento dos EUA na conspiração. E a TV Brasil, ao exibi-lo em canal aberto, amplia seu alcance e cumpre a função constitucional de ser educativa, cultural e informativa, abrindo espaço para produções independentes que expandem o mercado e contribuem para a melhoria da qualidade da televisão brasileira.
* Mair Pena Neto - Jorrnalista carioca. Trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil, Agência Estado e Agência Reuters. No JB foi editor de política e repórter especial de economia.
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