sábado, 9 de abril de 2011

EM BUSCA DUMA “NOVA” CONSTITUIÇÃO?




MARTINHO JÚNIOR

“Às casas, às nossas lavras às praias, aos nossos campos havemos de voltar. (...) Havemos de voltar à Angola libertada Angola independente”.

Em Angola neste momento, está aberta a discussão duma nova Constituição e por isso, tem-se assistido à proliferação de opiniões sobre o que deverá ser a Lei Fundamental com que se deverá reger a vida no país e sobre como se deverão equacionar as mudanças de parâmetro em relação à Lei ainda em vigor.

A maior parte dessas opiniões são emitidas por especialistas em direito, assim como por políticos dos principais partidos com assento na Assembleia Nacional, pouco espaço restando para os demais.

Em praticamente todo o leque de intervenções há uma questão que me parece fundamental que não é levada em consideração pelos interventores na discussão pública:

A construção da nova Lei Constitucional ao não conferir prioridade ao homem como centro de toda a atenção, inibe os inter relacionamentos possíveis entre as questões que se prendem com a soberania e as que constituem a esfera duma cidadania saudável, responsável e participativa.

Tornar a nova Lei Constitucional um manual de ética substantiva em prol da cidadania, será de facto preocupação dos doutos interventores?

A “nova” Constituição não está por isso a ser pensada em função do espaço prioritário que deveria ser conferido ao exercício de cidadania, enquanto fórmula de integrar nos mecanismos de decisão aos mais diversos níveis, os cidadãos, as comunidades, o povo angolano, exprimindo desse modo a prioridade para o homem.

O eleitor é quase só visto como tal, no outro extremo, como uma criatura que vai colocar um boletim de voto de tempos a tempos numa urna e que por tal é “representado”, sem mais “voto na matéria” em relação à vida em comunidade, em sociedade, em relação ao estado, permanecendo como passivo receptor de quem detém por inteiro o poder e suas rédeas no longo intervalo entre eleições!

O exercício de soberania está assim despido de maior capacidade de mobilização de todo o povo angolano na direcção das ingentes tarefas de reconstrução e de reconciliação, em busca duma identidade que seja também capaz de se integrar nos espaços regionais onde se encontra o país e possibilitar o empenho solidário em relação a outros povos próximos e de outros continentes, mas fica aberta à intervenção de grupos barricados no poder económico e financeiro.

Esse facto é ilustrativo de quanto se perdeu o sentido do movimento de libertação, ao se ir buscar as receitas pródigas da lógica capitalista neo liberal, uma lógica que com os parâmetros da “democracia representativa” promove desequilíbrios, faz aumentar o foço das desigualdades, provoca a injustiça social e tensões que vão fervendo muito em especial nos ambientes mais cosmopolitas das maiores cidades do país, onde se espelham com toda a evidência os impactos dos conflitos prolongados no tecido humano de todo o país.

Desse modo os que têm dado a sua opinião sobre o que deverá ser a nova Constituição, não dão relevância aos aspectos fundamentais de cidadania, inclusive enquanto pedagogia para melhor se vencer as sequelas humanas da guerra (tanto as sequelas psicológicas, quanto sociológicas, como as de índole cultural, considerando os factores antropológicos), por exemplo:

- Alegam que deverá o Chefe de Estado ser eleito não directamente pelo eleitorado, por todo o povo angolano, mas deverá ser uma emanação da Assembleia Legislativa, um Chefe de Estado que é o “cabeça de lista” do partido, ou coligação de partidos que vencerem as eleições e dão como exemplo o que se passa na África do Sul.

- Desconheço se há intervenções no sentido de ao menos se poderem realizar consultas em referendo o universo do eleitorado, particularmente sobre assuntos que se prendam aos fenómenos relativos à vida, ao exercício da soberania, ao exercício de cidadania saudável, responsável e participativa…

- Desconheço se têm havido intervenções no sentido do aprofundamento da democracia, conferindo espaço a essa cidadania responsável e participativa que sintetiza a linha de força do meu argumento e no entanto nada parece estar previsto para alguma vez se colocar numa instituição ao nível da Assembleia Nacional, a expressão Nacional da participação cidadã activa.

- Como serão alguma vez e assim, equacionadas as questões relativas aos direitos das minorias?

- Como se deve equacionar as questões da opinião pública e sua inter relação com o poder, com o estado, com os vários intervenientes sociais, inclusive enquanto elementos de pressão que reflectem os interesses de opinião de classe?

- Desconheço se as questões de responsabilidade cidadã em relação ao ambiente e à natureza, inclusive aquelas que se prendem com a exploração e utilização das riquezas naturais, são minimamente “tidas ou achadas” privilegiando os interesses de toda a nação e dos espaços regionais de integração, ao invés de deixar que elas sejam “pasto” de desequilíbrios que só beneficiam entidades privadas “emparceiradas” com multinacionais que em África se têm por vezes constituído em sanguinolentas “aves da rapina”, ou que sejam capazes de, “sem limites nem fronteiras”, contaminar os próprios expedientes de paz e aprofundamento da democracia.

Mantendo-se a lógica capitalista de pendor neo liberal dominante, a “democracia representativa” serve às mil maravilhas para que as novas elites se consolidem, sem que ao menos seja dado início a um processo de luta saudável contra a corrupção, se iniba definitivamente a tendência para as “parcerias público privadas” causadoras dos processos de deliquescência da “res publica”, sem se adoptarem as medidas convenientes para controlar bancos, sem se aplicar as escalas tributárias adequadas à transparência com que se deve nortear o próprio estado, sem que haja transparência na prestação de contas (a começar pela SONANGOL)…

Desse modo, a influência dos “lobbies” em relação ao exercício do poder marca indelevelmente a “representatividade”, marginalizando a lógica eminentemente socialista que é opção própria de muitos cidadãos e de praticamente nenhum partido (é só analisar as opiniões dos seus políticos)…

Os que são fluentes na lógica capitalista de pendor neo liberal dominante, tornaram-se clientes do sistema, ficando “pela rama” até no exercício das capacidades de oposição, sem dar abertura às alternativas que respeitando o sentido do movimento de libertação visam aprofundar a democracia e, no que diz respeito aos fenómenos sociais, interpretá-los tendo em conta os relacionamentos causa – efeito e segundo a perspectiva marxista.

O sistema vigente, conferindo imensas potencialidades às novas elites, não inibem as parcerias “contra natura” que irremediavelmente se vão assistindo, uma fórmula que eu sintetizo no paradoxo de serem alguns daqueles que mais foram influenciando no colonialismo, no “apartheid”, na proliferação de “bantustões” e de “neo colónias”, os que se vão aliando a essas novas elites, conforme uma tão evidente “radiografia” do processo histórico contemporâneo na África Austral como a que nos transmite por exemplo Jaime Nogueira Pinto nos “Jogos Africanos”, respondendo sempre “à voz do dono”.

Ao rejeitar intelectualmente uma Constituição que se abra à neo colónia, não posso deixar de lembrar as sábias palavras de Miguel d’Escoto na sua intervenção na Conferência de Alto Nível realizada entre 24 e 26 de Junho do corrente ano, sobre a Crise Financeira e Económica Mundial, em Nova York:

“Não é humano, nem responsável construir uma Arca de Noé que salve somente o sistema económico que impera, deixando a grande maioria da humanidade à sua própria sorte, sofrendo as nefastas consequências dum sistema imposto por uma irresponsável, se bem que poderosa minoria.

Temos que tomar colectivamente um conjunto de decisões que atendam o mais possível a todos, incluindo a grande comunidade de vida e a Casa Comum, a Mãe Terra”.

Voltar às casas, às nossas lavras, às praias, aos nossos campos”, voltar “à Angola libertada, à Angola independente”, não pode corresponder apenas uma decisão visionária dum poeta, circunscrita aos termos limitados de sua corajosa e digna vida, circunscrita aos caboucos duma pátria, por que ela, para se tornar alguma vez efectiva, deve merecer a equação duma vontade colectiva que só se poderá tornar sustentável com o esforço de sucessivas gerações!

O caminho que se está a seguir não honra o poeta, nem aqueles que pavimentaram heroicamente os caboucos da independência e do não alinhamento!

A social democracia que tomou conta do aparelho do movimento de libertação, indicia cada vez mais que não dá garantia alguma, muito pelo contrário, de se constituir em vanguarda na prossecução de esforços tendo como objectivo o aprofundamento da democracia seguindo a trilha da participação e, com isso, demonstra que não pretende dar sequência justa ao próprio movimento de libertação!

Martinho Júnior - 17 de Setembro de 2009.

Nota:

Quando emiti a minha opinião sobre a então futura Constituição de Angola, é evidente que essa opinião “não contou”: não houve partido algum que se aproximasse do meu ponto de vista, inclusive aqueles que agora, com mais ou com menos fervor, defendem o que consideram “direitos humanos”, ou “direitos das minorias”

Essa constatação é sintomática: não há partido algum em Angola que esteja a pôr em causa, de forma consistente e esclarecida, a lógica capitalista e o cortejo de injustiças que ela fomenta, desde as medidas neo liberais que têm sido implementadas duma forma sem precedentes, até às medidas redundantes da especulação financeira, que tão bem se prendem ao “emaranhado” das conexões sob o rótulo das “parcerias público-privadas”.

Os constitucionalistas foram logicamente os “catedráticos” portugueses, que se inspiraram em Constituições que têm dado azo às aberturas neo liberais e à especulação financeira e os reflexos no estado são visíveis: são aqueles que estão aferidos a esses constitucionalistas (e à produção constitucional que eles ao longo de suas vidas têm advogado) que estão colocados nos pontos-chave dos mecanismos de decisão e execução.

Da parte dos interesses foi óbvio que nem sequer quiseram dar uma olhada às Constituições dos países latino-americanos, muito menos às Constituições dos componentes da ALBA, como se a busca pela independência, 200 anos após o hastear das bandeiras, fosse um perigo a evitar e a esquecer deste lado do Atlântico Sul.

Foi-se buscar o que de mais arcaico existe, em termos de Constituição, para se fugir aos processos legítimos de sustentação jurídica de independência, soberania, cidadania, aprofundamento da democracia e lógica com sentido de vida!

Por este andar parece que vai chegar um dia em que os seguidores da cartilha que se vai instrumentalizando vão perguntar se alguma vez houve libertação e se era mesmo necessário continuar a saga da libertação!

É nesse e com esse ambiente jurídico-institucional que cresce o fosso das desigualdades em Angola, confundindo tantas vezes crescimento económico com desenvolvimento sustentável, até por que o segundo está subalternizado quase por completo ao primeiro.

Em alguns casos, para aqueles que lutaram contra o “apartheid”, nada mais resta senão ver-se instalar na geografia social de nossas próprias cidades, de construções fisicamente orientadas para implementar regras, comportamentos e atitudes de “apartheid”: é só constatar-se, por exemplo, a distância entre os condomínios fechados (e com muros altos alguns dele coroados de arame farpado) de Talatona e o Cazenga, na cidade de Luanda (aproveite-se agora, que está de chuva).

Nove anos depois da ausência de tiros, relembro o que escrevi sobre o que poderia e deveria ser para mim a Constituição de Angola, pois aqueles que lutaram contra o colonialismo e o “apartheid”, deveriam ser os primeiros a assumir a luta para, ao se reconstruir e ao se reconciliar Angola, impedirem-se as (imensas) possibilidades do choque neo colonial gerado nos impactos das políticas de portas abertas de âmbito neo liberal e para que Angola trouxesse benefícios de forma tão equilibrada quanta a possível, para todos os angolanos.

Nove anos depois, a classe média-alta angolana, formada por empresários e executivos de várias instituições e entidades, range sob a pressão das elites, que são capazes de, em função dos seus emparceiramentos desregrados e que só visam o lucro tão fácil (e arrogante) quanto o possível, aproveitar o fosso das desigualdades para instalarem até os “retornados” de mau augúrio, a coberto das crises alheias como as que evoluem em Portugal.

Trinta e cinco anos depois da independência, está aí o “retorno dos retornados” e só falta cantar o “Angola é nossa”

Pela minha ousadia, a história me absolverá!

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