segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O PRIMEIRO PASSO PARA A RECONCILIAÇÃO NACIONAL EM ANGOLA

.

MARTINHO JÚNIOR

“Já estamos a pagar bem cara a nossa própria indulgência. Como conseguimos assemelhar-nos aos nossos inimigos, a KGB, o Mundo ficou atento. Por toda a África, América Latina e Ásia, pelo menos, todos os homens de negócios, professores e funcionários americanos genuínos são olhados com suspeita, como prováveis elementos operativos da CIA, capazes de traições perigosas. O Mundo sabe que, efectivamente muitos dos verdadeiros funcionários da delegação da CIA se apresentam por debaixo dessa capa, enquanto recrutam agentes, subornam funcionários e apoiam aventuras secretas. O contributo positivo de uma actividade desse tipo para a nossa segurança nacional é duvidoso. Mas o número crescente de vítimas, os milhões de pessoas cujas vidas foram esmagadas ou manchadas pelas operações da CIA torna-se cada vez mais cínico em relação à América. Foi devido à presença da CIA que o Mundo se tornou mais perigoso. Os Americanos perderam credibilidade. E ainda pior que tudo: ao conservarmos a CIA, estamos a aceitar para nós próprios a condição de povo duro e cruel. É um jogo errado para uma grande Nação. E os jogadores em que apostámos são os vencidos”. (In “A CIA contra Angola”, “Post Scriptum”, página 277, John Stockwell. (1)

Razões de consciência terão levado John Stockwell o chefe das operações da CIA contra Angola às ordens do “diktat” de Henry Kissinger, a afastar-se daqueles serviços de inteligência, sem perder o seu patriotismo, nem sua identidade norte americana.

Quando o chefe da estrutura de intervenção neo colonial em Angola, na altura decisiva da independência em 1975 se decidiu assim no rescaldo da clamorosa derrota militar por via dos etno nacionalismos em três frentes, oportunidade houve para outros com responsabilidades menores na estrutura da agressão alterarem o rumo de suas vidas, abandonando as condutas políticas e institucionais em que se encontravam determinados.

Essa oportunidade era por si também uma prova da emergência dos fenómenos característicos da própria globalização reflectida no espectro político interno de Angola.

O Comandante Militar da FNLA em Quifangondo, hoje Tenente General na Reforma das FAA, Afonso Tonta de Castro, à frente de muitos efectivos, acabou por tomar decisão similar à de John Stockwell em relação à organização que lhe era matriz, mas isso é praticamente desconhecido por que tem sido, como muitos outros factos, deliberadamente “esquecido”. (2)

Destacou-se do então ELNA (“Exército de Libertação Nacional de Angola”) participou no estabelecimento duma organização própria, o COMIRA (“Comité Militar de Resistência de Angola”) e a partir dessa plataforma institucional transitória procurou integrar as FAPLA, num bem sucedido processo que se arrastou de 1979 até 3 de Outubro de 1984.

Os seus efectivos (1.500 militares e 20.000 civis) estavam estacionados em Tembo Aluma e Kasango Lunda, no Kasai Ocidental, junto à fronteira com Angola, Província do Uíge (Cuango Internacional), assim como em Kinshasa. (3)

Para se conseguir esse êxito que resultaria no primeiro passo na direcção da Reconciliação Nacional, a 1ª República, na pessoa do Presidente Agostinho Neto, empenhou a então DISA, que ficou encarregue primeiro dos contactos clandestinos, depois da aproximação com vista aos actos de integração tirando partido de dispositivos seus sobretudo em Quimbele e Maquela do Zombo.

O que aconteceu nessa altura foi uma pequena mas marcante vitória, perdida na rica história dos 35 anos de independência de Angola, um pequeno passo no caminho para uma incessante busca de paz, plena de ensinamentos:

A paz não era para os homens da Revolução Angolana apenas uma ausência de tiros, era um objectivo a longo prazo, que visava neste caso concreto, ao integrar nas fileiras da República todos aqueles que pretendiam efectivamente lutar contra o colonialismo e o “apartheid”, estabelecer uma plataforma socialista e Não Alinhada que aprofundasse a valorização do movimento de libertação enquanto vanguarda interessada a trazer justiça social, equilíbrio e desenvolvimento sustentável ao Povo Angolano e a todos os Povos do Continente, pondo fim a séculos de opressão e dimensionando a construção dos emergentes estados africanos.

Esses efectivos do COMIRA foram resgatados do que era então uma organização “etno nacionalista”, que fora deliberadamente atraída tal como a UNITA e as FLECs para a manipulação que o imperialismo arquitectou às ordens de Henry Kissinger, um homem que em nome dos interesses da aristocracia financeira mundial e por via das instituições ao mais alto nível das Administrações e “think tanks” elitistas norte americanas, teceu manipulações, intrigas e guerras em direcção a Angola particularmente na altura crucial de sua independência, conforme foi fazendo aliás no campo de disputas em que com sua contribuição e enorme quota parte de responsabilidades se transformou o “Terceiro Mundo”.

O resgate era pois e por si prova de consciência e vida do Povo Angolano, com o qual se identificava em pleno o movimento de libertação, que era sua emanação e vanguarda “de Cabinda ao Cunene e do mar ao leste” e com isso a Segurança do Estado foi também empenhada da maneira mais funcional, discreta, sóbria e digna.

A semente da paz enquanto aspiração legítima sobre os escombros do colonialismo e do “apartheid”, constituía uma energia vigorosa e fértil que vencia barreiras, divisões e até fronteiras, implicando-se nos factores de construção de novas identidades nacionais e internacionais em todo o espaço constituído pelos componentes da Linha da Frente, mais tarde institucionalizado como espaço da SADC, tendo como fulcro e prioridade o homem.

O movimento de libertação conseguiu-o fazendo-se esquecer de muitos agravos sangrentos, como por exemplo os casos das 5 heroínas angolanas assassinadas pela FNLA, ou dos muitos patriotas que desapareceram e foram assassinados quando o MPLA foi forçado a sair de Kinshasa pelo regime de Mobutu, ou ainda dos “mártires de Kifangondo”, registados numa emboscada poucos dias antes do 11 de Novembro de 1975, mártires esses que deveriam ser lembrados no âmbito das comemorações da batalha do mesmo nome e não o têm sido… (4)

Lembrar os acontecimentos no Uíge em finais da década de 70, princípios da década de 80 do século passado, ultrapassando sequelas que culminaram na absorção desses efectivos do então COMIRA, (que entretanto havia de ser dissolvido), obriga-nos a sublinhar a importância do homem, dos objectivos maiores que se almejavam… do homem enquanto actor da história, enquanto factor fundamental na construção da identidade nacional e enquanto impulsão após a independência no caminho a trilhar pelo movimento de libertação.

A história contemporânea na África Austral só foi conseguida com o sentido da vida que foi fielmente interpretado e transmitido pelo movimento de libertação, um tesouro estratégico que o MPLA tem a obrigação ética e moral de evocar e de dar continuidade, forjando muito mais equilíbrio e harmonia social do que está hoje a acontecer.

Alguns membros das “novas elites” Angolanas, perdendo a vocação de unidade e de luta pela gestação duma identidade nacional forte a partir da ética do movimento de libertação, pretendem fazer esquecer esses pequenos feitos e os princípios que deram oportunidade a eles por que o capitalismo é assim e torna-se necessário não só “dividir e dividir para melhor reinar”, mas também “pôr fim à história”… para depois a contar de acordo com as conveniências…

Há cada vez mais sinais de que em Angola se está a dar espaço às ligações com o AFRICOM e até com a OTAN (neste caso Portugal está a desempenhar um papel precursor no sistema de “vasos comunicantes”, a coberto das relações bilaterais) ou com os falcões de Israel e isso quer significar que há indícios de muitos não terem aprendido (talvez por que este assunto nunca foi abordado desta maneira) a lição de prova de vida e patriotismo do Tenente General Afonso Tonta de Castro.

A estratégia do movimento de libertação, que foi também uma estratégia de segurança no âmbito do Não Alinhamento, gizada a 2 de Janeiro de 1965 no encontro entre o Presidente Agostinho Neto e Che Guevara, que estiveram na origem da gesta comum angolano-cubana e no fortalecimento das acções progressistas em África face ao colonialismo e o “apartheid”, sublimou o esforço nacional e deu-lhe projecção até aos nossos dias, mas essa estratégia nem sequer tem merecido evocação por alturas das efemérides. (5)

Assim como muitos oficiais da DISA que participaram no processo de integração dos efectivos do COMIRA nas FAPLA aprenderam conhecimentos técnicos de Segurança em Cuba e em outros países Não Alinhados ou Socialistas, muitos filhos desses efectivos do COMIRA, após a integração nas FAPLA de seus pais, tiveram oportunidade de estudar nesses mesmos lugares, as mesmas ou outras disciplinas de conhecimento, resultando muitos deles formados…

Estão mais interessados alguns por um lado em lembrar apenas a DISA como responsável “estalinista” pelo holocausto do 27 de Maio, reduzindo a “história” dessa instituição a isso (evidência pública numa simples consulta na Internet) , de forma a com todo o oportunismo muitos desses encobrirem as suas próprias responsabilidades políticas e outras sobre esses tão fatídicos acontecimentos.

A DISA historicamente tinha muito mais a ver com o relacionamento de Angola com Cuba, segundo a visão estratégica Não Alinhada de Agostinho Neto e Che Guevara, que com qualquer condicionalismo “estalinista”, apesar do peso das Academias Soviéticas e de outros países socialistas…

É mais fácil por parte ainda de outros, lembrar Quifangondo e, tirando partido do relativo êxito que foi a integração dos efectivos provenientes do ELNA, levar o Tenente General Afonso Tonta de Castro, que é agora assessor do Ministro dos Antigos Combatentes, General Kundipahiama, a pronunciar-se sobre a histórica batalha e sobretudo sobre as vicissitudes que a Operação da CIA contra Angola trouxe para a FNLA, factos que estão na origem da posterior trajectória desses patriotas. (6)

Os Serviços de Inteligência e Segurança de Angola, continuadores de instituições que foram suas “catapultas”, deveriam ser os primeiros a impedir o deliberado “esquecimento” da história e a dar a sua contribuição para a divulgar em todos os seus termos, assim como alguns dos factos mais relevantes do caminho longo para a paz social e para a construção da identidade nacional, até por que os primeiros passos são sempre os mais difíceis, pelo grau de riscos e de imprevisibilidade que comportam.

Os SISE, “Serviços de Inteligência e Segurança do Estado” de Angola fizeram a 29 de Novembro do corrente, 35 anos (a criação da DISA mereceu um dos primeiros diplomas da República Popular de Angola) e a efeméride foi em relação a este caso do COMIRA uma oportunidade publicamente perdida: “esqueceu-se” a oportunidade de divulgação do lançamento da primeira pedra no caminho da Paz e da Reconciliação Nacional, na arquitectura da Angola contemporânea, com todas as elevadas virtudes que nesse sentido desde logo houve. (7)

Entre essas virtudes consta a continuada, internacionalista e solidária presença cubana em reforço da educação e saúde em Angola (desde sempre presença nas campanhas de alfabetização), feitos que merecem muito mais divulgação pelos méritos que têm sido conseguidos, inclusive a redução do espaço mercenário em relação ao ensino e à saúde, num esforço que dá continuidade à estratégia do movimento de libertação que foi impulsionada em Janeiro de 1965, quando o Presidente Agostinho Neto se encontrou com Che Guevara em Brazzaville. (8)

Este tipo de “falhas de memória” fazem parte dos deliberados desequilíbrios “que estamos com eles”: duma forma contraditória, nunca os “discretos vasos comunicantes” da NATO e do AFRICOM foram tão “persuasivos”, “omnipresentes” e “elitistas” como agora, com todo o arsenal de ideologias, filosofias e conceitos que lhes são inerentes e em Angola há quem prefira isso a empenhar toda a experiência que advém do passado do movimento de libertação!...

A ponte que em Angola vem do passado tem sido quebrada e tem-se perdido muita energia em relação ao que deveria merecer atenção prioritária em benefício do homem e da vida, por que as estratégias amplas, seguindo processos de inteligência a curto, médio ou longo prazos, são aquelas que antes de mais beneficiarão todo o povo angolano em si e não como um subproduto do “mercado global”!

Os Institutos Angolanos que se reportam às “estratégias” e à “inteligência” deveriam ter a humildade e a perseverança de, honrando a vida e a paz ao mesmo tempo que se deveriam afastar dos falcões, também contribuírem entre outras opções para a estratégia da luta contra o analfabetismo, na sequência do que advém do movimento de libertação e da longa luta contra colonialismo e “apartheid”!

Martinho Júnior - 10 de Dezembro de 2010.

Notas:
- (1) – John Stockwell – Wikipedia –
http://en.wikipedia.org/wiki/John_Stockwell ; John Stockwell Page – Third World Traveler – http://www.thirdworldtraveler.com/Stockwell/John_Stockwell.html ; The secret wars of the CIA – Youtube – http://www.youtube.com/watch?v=FElp4V5YRi0 ; The secret wars of the CIA – http://www.serendipity.li/cia/stock1.html ; Americas third World War – http://www.informationclearinghouse.info/article4068.htm ; In search of enemies – http://en.wikipedia.org/wiki/Special:BookSources/0-393-00926-2
- (2) – Alphonse Tonta de Castro – UNHCR –
http://www.unhcr.org/refworld/country,COI,,QUERYRESPONSE,AGO,,3df4bdf94,0.html ; Divergências político-ideológicas entre movimentos de libertação geraram conflito interno – ANGOP – http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/politica/2010/10/44/Divergencias-politico-ideologicas-entre-movimentos-libertacao-geraram-conflito-interno,e76aacb1-fba5-43d3-864e-3da5d23f1b1d.html ; Kifangondo foi decisivo para liberdade de Angola – Jornal de Angola – http://jornaldeangola.sapo.ao/20/0/kifangondo_foi_decisivo_para_liberdade_de_angola ; Quifangondo - Martinho Júnior – Página Um – http://pagina--um.blogspot.com/2010/11/quifangondo.html
- (3) – COMIRA – Wikipedia –
http://en.wikipedia.org/wiki/Military_Council_for_Angolan_Resistance
- (4) – Trajectória das heroínas em novo livro – Jornal de Angola –
http://jornaldeangola.sapo.ao/20/0/trajectoria_das_heroinas_em_novo_livro ; Sukyo Mahikari homenageia mártires do Quifangondo – http://www.angolasite.com/Sociedade/Sukyo_Mahikari_homenageia_m_rtires_do_Kifangondo/related_links
- (5) – Embaixador de Cuba considera vitória do MPLA mais valia na cooperação bilateral –
http://mercosulcplp.blogspot.com/2008/09/angolaembaixador-de-cuba-considera.html ; Jorge Risquet, primeiro cubano que conheceu Agostinho Neto – http://www.outroladodanoticia.com.br/component/content/article/2-noticias/1834-jorge-risquet-primeiro-cubano-que-conheceu-agostinho-neto-.html ; Encontro entre Agostinho Neto e Che Guevara em Brazzaville, em Janeiro de 1965 – http://pt-pt.facebook.com/note.php?note_id=116975801672353 ; A guerra – 2º episódio (parte 2) – Joaquim Furtado – RTP – http://www.youtube.com/watch?v=exwgYo59jsA
- (6) – Batalha de Kifangondo subordina tema de Conferência –
http://www.angolasite.com/Poltica/Batalha_de_Kifangondo_subordina_tema_de_Confer_ncia/related_links ; Divergências político-ideológicas entre movimentos de libertação geraram conflito interno – Declarações do general Tonta Afonso de Castro – ANGOP – http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/politica/2010/10/44/Divergencias-politico-ideologicas-entre-movimentos-libertacao-geraram-conflito-interno,e76aacb1-fba5-43d3-864e-3da5d23f1b1d.html ; http://jaimagens.com/index.php?action=detail&id=3239
- (7) – Presidente da República delega competências do Ministro do Interior –
http://www.sapr.ao/imprensa/actividade/173 ; Ministro do Interior aposta no reforço da segurança dos cidadãos – Página Um – http://pagina--um.blogspot.com/2010/10/angola-ministro-do-interior-aposta-no.html ; O Ministro do Interior aponta prioridades – http://www.angolasite.com/Poltica/Ministro_do_Interior_aponta_prioridades/related_links
- (8) – Batalha da alfabetização constitui golpe profundo contra o analfabetismo – ANGOP –
http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/politica/2010/11/48/Batalha-Alfabetizacao-constituiu-golpe-profundo-contra-analfabetismo,ecf9b9cd-e71e-4ab5-8cdf-e38815fd8fb1.html ; A solidariedade de Cuba para com Angola! – http://convencao2009.blogspot.com/2010/11/solidariedade-de-cuba-para-com-angola.html ; Angola combate analfabetismo com a ajuda de Cuba – http://port.pravda.ru/busines/09-12-2010/30897-angola_cuba-0/
.